Sortner escrita por MonaLisa


Capítulo 4
Falsa normalidade




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Quando descobriu que compartilharia o mesmo espaço que Sherlock, John Watson recuou.

A lei os forçava a conviver na presença um do outro pelo maior tempo possível logo após se conhecerem, mas não os obrigava a morarem juntos e, ainda assim, lá estava o médico carregando suas caixas para o 221 B na Baker Street.

Suspirou contrariado.

Não que não quisesse morar com Sherlock ou ficar em sua presença, mas tinha plena consciência de que não era bem-vindo.

O primeiro sinal disso estava no apartamento.

John engoliu em seco enquanto olhava ao redor. O local estava uma completa bagunça. Havia livros empilhados e espalhados em quase todos os cantos da sala, também havia papéis soltos sobre a mesa e o chão e poeira cobrindo tudo o que via. Arriscou alguns passos cautelosos, tomando cuidado para não acertar a bengala em algo que parecesse importante, e viu que a cozinha não estava muito diferente, notando algo parecido com um mini laboratório de química acumulado sobre a mesa de jantar e potes no meio da bagunça, potes ocupados com alguma substancia que desconhecia.

Poderia estar errado, mas Sherlock não parecia fazer o tipo preguiçoso, talvez desinteressado ou indiferente, mas não preguiçoso. Foi essa conclusão que fez o médico deixar a caixa que carregava sobre a poltrona vermelha e olhar ao redor mais uma vez, dessa vez com outros olhos, tentando compreender seu par. Logo notou que uma das suas observações estava errada, porque não havia poeira sobre tudo o que via. Os livros estavam limpos, mesmo parecendo desorganizados e esquecidos, os papéis sobre a mesa ainda pareciam soltos, mas os que estavam no chão pareciam estar organizados em alguma ordem, como se estivessem interligados, e o sofá de couro estava marcado e quase desocupado, como se alguém deitasse ali com frequência.

Pensou por um momento. Sherlock era um detetive, certo? O melhor, de acordo com os jornais e Lestrade. Então deveria estar no meio de algum caso, um complicado se fosse considerar a bagunça daquele lugar.

― Sinta-se à vontade ― Sherlock disse entrando bruscamente e recolhendo suas coisas do sofá, para logo em seguida acumulá-los de qualquer jeito em outro canto.

John definitivamente não precisava da ligação para saber que não era bem-vindo. A irritação emanava do detetive e estava mais do que clara na voz do mesmo.

― Me sinto dentro da sua cabeça... ― murmurou sem jeito.

Era uma sensação intensa, porém desconfortável, como se estivesse invadindo um espaço extremamente particular.

― Bom, você já fazia isso antes de qualquer jeito, certo? ― o detetive rebateu ácido ―  E vai continuar fazendo até onde sei.

Lá estava novamente, a irritação, o claro sinal do desgosto. John engoliu em seco, observando-o continuar com a arrumação apressada e forçada. Por muitos anos se preocupou em criar barreiras, porque mesmo não o conhecendo, sabia que seu par estava em algum lugar, podia senti-lo com tanta facilidade que se tornou impossível não se preocupar. E se o seu par o sentisse da mesma maneira? E se sofresse com as dores causadas pelo seu pai? Não, não podia permitir tal injustiça. Ninguém sofreria por sua causa. Mesmo que fosse realmente difícil ir contra a ligação, John não desistia, reprimia a própria mente, esforçava-se para se isolar e sabia que tinha sucesso quando não sentia a confusão do outro.

Claro que fracassara algumas vezes, com sentimentos mais intensos ou inesperados, como o acidente onde perdera sua mãe e a bala que quase o matara. Sherlock teria sentido isso? Provavelmente, mas agora, vendo-o pessoalmente, John tinha certeza que o detetive não o sentia na mesma intensidade. Nem chegava perto.

Talvez o mesmo nem quisesse.

― Não precisa arrumar nada agora ― interviu o observando jogar os potes no lixo com o semblante fechado.

― Preciso ou logo a Sra. Hudson aparece e destrói tudo ― Sherlock rebateu sem fitá-lo.

― Certo... vou levar minhas coisas para o quarto. Com licença.

Abandonou a bengala sobre a poltrona, pegou sua mala e a caixa de tamanho médio que havia deixado ali e mancou até as escadas. Sua perna latejava de dor, mas não era nada que o impedisse, já tinha passado por resistência maior.

Colocou tudo sobre a cama e suspirou, pensando em como sobreviveria naquele apartamento. Sherlock o odiava? Não, não era um sentimento tão intenso. Talvez ele apenas não quisesse um par.Sim, com certeza não quer um par.Mas por qual motivo? Era tão ruim assim compartilhar uma vida? A ligação era incômoda? Ou o problema estava especificamente no par?

― Pare de pensar tanto.

John se sobressaltou de susto e virou para porta, encontrando Sherlock carregando três caixas de uma vez.

― O que... ―  rapidamente se aproximou dele para ajudar ― O que está fazendo?

― Não é obvio? Ajudando ― Sherlock respondeu indiferente ― Mancando desse jeito você não terminaria essa semana. Você sabe que esse mancar é psicossomático, certo?

O médico piscou tentando entender o que tinha ouvido. Como Sherlock sabia que estava pensando tanto? Pela ligação? Não, não era um evento forte o suficiente para passar pelas suas barreiras, provavelmente ele apenas deduzira. Mycroft havia dito, ainda na adolescência, que Sherlock era muito bom em deduzir com muito pouco, que o mundo era transparente aos seus olhos. Isso também lhe respondia como o detetive sabia do seu sintoma psicossomático e também lhe dava a garantia de que Sherlock não usufruía dos efeitos da ligação.

Afinal, se usufruísse o detetive saberia que além do sintoma psicossomático, a dor de um corte profundo e suturado o fazia mancar.

― Está fazendo novamente ― Sherlock o despertou com uma sobrancelha arqueada.

― O quê?

― Está pensando. Quase ouço a sua mente tentando funcionar.

John balançou a cabeça e pigarreou:

― Desculpe e... obrigado pela ajuda.

Sherlock o olhou com desconfiança por um momento e então lhe deu as costas, dizendo:

― Arrume suas coisas depois, precisamos ir.

― Para onde? ― John questionou confuso.

― Buscar seu cachorro no veterinário.

John franziu o cenho enquanto Sherlock descia as escadas.

― Buscar... meu cachorro? Espera, está falando do Stone?! Sherlock!

***

John tentava acompanhar seu par da melhor maneira que podia. Sherlock era maior e parecia correr mesmo só dando passos mais apressados enquanto o mais baixo praticamente precisava, de fato, correr para acompanhá-lo.

―  Por que não me disse antes que estava com meu cachorro?

Embora não entendesse o motivo da pressa, precisava começar a obter respostas e, quem sabe, aproximar-se um pouco mais do seu Sortner. Apesar da insistência de Mycroft em dizer que era uma tentativa inútil.

― Você não perguntou ― Sherlock respondeu indiferente.

― E por que eu perguntaria? Ele deveria estar com Harriet.

― Que tipo de pessoa não pergunta pelo próprio cão?

John revirou os olhos e resolveu ignorar, caso respondesse iriam passar o resto do dia naquela discussão vaga.

― Tudo bem, pelo menos me diga o motivo dele estar no veterinário.

― Ele... comeu o que não devia ― Sherlock respondeu incerto.

O ex-militar notou os seus olhos inquietos e o olhou com desconfiança enquanto pensava sobre a situação. Rapidamente sua mente o levou para o 221 B, mais especificamente para a mesa que suspendia o mini laboratório, onde também havia potes com conteúdos desconhecidos. Como ato contínuo, lembrou-se de como Stone adorava subir sobre a mesa para roubar sua comida.

― Ele comeu algum dos seus experimentos, não é?

― Como descobriu isso? ― Sherlock questionou, parando e o olhando surpreso.

John deu de ombros antes de responder:

― Stone adora roubar comida e sua mesa deve sempre ser aquela bagunça, o resultado parece obvio.

―  Sua irmã deveria ter me avisado que seu cachorro é um ladrão ― Sherlock rebateu crispando os lábios e voltando a andar.

John riu suavemente e ambos seguiram caminho, dessa vez com menos pressa. Tentava ser compreensivo. Sherlock estava meio arisco e indiferente, mas tudo poderia ser uma consequência da súbita chegada de um par em sua vida. Afinal, quem gostava de uma mudança brusca como essa depois dos vinte anos?

Era incrivelmente raro pares se encontrarem naquela idade, havia Centros de Encontros e meios de busca para evitar tanta demora justamente pela dificuldade que ambos tinham em se adaptar quando se encontravam repentinamente. Era uma carga muita intensa de pensamentos e sensações que compartilhavam entre si, muito maior e insistente do que quando eram simples desconhecidos. Sem esquecer que não era apenas um elo mental, mas também biológico, que os faziam saber quando o outro precisava de ajuda ou ficava doente. Tratava-se de um processo tão natural quanto silencioso, mas que ainda assim poderia confundir ou enlouquecer um dos pares quando demoravam a se encontrar e acabavam recebendo toda a carga de uma única vez.

Porque um nascia para proteger o outro, literalmente, e o processo precisa se completar de qualquer maneira.

Felizmente, ou não, não estava tendo esses problemas com Sherlock. Entretanto, ainda não havia descartado completamente os riscos. Era fato que o detetive não gostava de sua presença repentina no apartamento, ou em sua própria vida, mas John não notou nenhuma invasão violenta de informações quando se conheceram. Os sonhos e pensamentos ainda eram seus, sua mente não entrou em colapso.

Mas ainda estavam no primeiro dia de convivência.

― Boa tarde, Victor.

A voz de Sherlock o despertou, finalmente haviam chegado no veterinário, mas John nem se preocupou em olhar ao redor, sua atenção estava no seu par. Aparentemente nada havia mudado, nem o tom de voz, mas ele sentia que tinha algo diferente.

Então olhou para o veterinário que estava atrás do balcão e corou, entendendo a situação.

O tal Victor olhava para Sherlock como um fã olhava para um ídolo, um especialmente atrativo. Em seus lábios havia um sorriso discreto e em seus olhos um brilho bem conhecido, fazendo-o ser facilmente interpretado. John se sentiu estranho ao notar que não precisava fazer perguntas para deduzir o que estava acontecendo e pigarreou, chamando a atenção dos dois que permaneciam em silêncio.

― Eu vim buscar o Stone ― anunciou um pouco constrangido.

Nunca tinha passado por situação semelhante, obvio. Mas será que Sherlock tinha alguma noção do que estava acontecendo? John apostava que não.

― Ah, sim, eu já volto ― Victor despertou e saiu rapidamente.

John quase achou graça das bochechas pouco coradas dele.

― São amigos há quanto tempo? ― perguntou.

― Nos conhecemos desde a adolescência, não somos amigos ―  Sherlock respondeu estreitando os olhos com nova desconfiança ― Pensei ser o único a deduzir tudo por aqui.

Dessa vez John não se conteve e riu. Estava certo, Sherlock não tinha noção alguma daquele lado injusto do elo.

― Aqui está ― Victor anunciou voltando ao balcão e colocando o beagle sobre o mesmo ― Um animal bem dócil e animado, uma combinação perigosa.

― Um perfeito ladrão de comida também ― John complementou forçando um sorriso e se aproximando do cachorro que já estava animado ―  Qual o preço?

― Está tudo bem, Sherlock já pagou por tudo.

Franziu o cenho e lançou um olhar questionador a Sherlock, que apenas deu de ombros com normalidade. Logo sua atenção voltou a Victor que já voltara a olhar para o detetive. John o observou discretamente, desde o seu corpo magro até os cabelos castanhos claros. Não havia grande semelhança física entre ele e o médico veterinário, então a resposta deveria estar na personalidade. Decidiu arriscar.

― Gosta de rugby?

O veterinário o olhou com surpresa e logo um sorriso largo surgiu em seu rosto.

― Claro que gosto, por quê?

Finalmente encontrando a resposta que procurava, o médico também sorriu e retirou um par de ingressos de dentro carteira.

― Fique com esses ingressos para o jogo da semana que vem. Ganhei dos meus colegas, mas não tenho quem convidar, na verdade nem poderia assistir direito com essa perna e-

Antes que terminasse de falar Victor já tinha agarrado o par de ingressos e agora o abraçava com força, murmurando vários agradecimentos antes de se afastar e praticamente correr até Sherlock que arregalou os olhos com a súbita aproximação.

John desviou o olhar e rapidamente colocou Stone no chão, sentindo-se um tanto desconfortável com aquela situação inédita. Parecia que algum dos seus órgãos estava criando vida e se retorcendo com a cena.

― Vou deixar vocês conversando, até logo ― despediu-se enquanto Victor tentava convencer o detetive.

Movimentou-se pela calçada se sentindo um pouco mais pesado e até insatisfeito, pela primeira vez, com a Compensação.

A Lei da Compensação era, talvez, a mais polêmica e a mais contestada, e enunciava que uma pessoa sem um relacionamento romântico com seu Sortner se aproximaria ou sentiria atração pela pessoa mais semelhante a ele até que o relacionamento surgisse ou que um novo amor prevalecesse.

Apesar de não ser uma obrigação social, pares nasciam para manter um relacionamento fraternal e romântico entre si. Apaixonavam-se naturalmente, nasciam com a facilidade de proteger e entender um ao outro, chegava a ser perfeito. No entanto, era algo mais instintivo que obrigatório. Havia as exceções, aqueles onde o amor prevalecia por uma outra pessoa que não fosse seu Sortner, pares que mesmo desenvolvendo o amor fraternal não se apaixonavam e seguiam suas vidas normalmente.

Até então, era assim que John via a Compensação, uma normalidade. No final, mesmo com seu corpo tentando equilibrar o elo ao se aproximar de alguém semelhante ao seu par, você ainda possuía a chance de se apaixonar por qualquer um.

O que aconteceu na clínica veterinária o fez repensar essa normalidade.

Victor... qualquer que fosse seu sobrenome, provavelmente possui um par semelhante a Sherlock, emocionalmente ou fisicamente, por isso estava se sentindo tão atraído... ou realmente apaixonado, John não saberia dizer. Enquanto o detetive se sentia atraído pela personalidade do médico veterinário, que aparentemente possuía os mesmos gostos que os seus.

Não era coincidência, era o maldito equilíbrio da Compensação.

Mas o aborrecimento de John estava no quão desconfortável ficou com a situação. Onde estava a normalidade?

Incomodado com o rumo dos próprios pensamentos, decidiu ignorar tudo aquilo e entrou no apartamento. Sua perna latejava ao subir as escadas e seu ombro dava sinais de que logo voltaria a doer, indicando que seria uma noite longa. Mas seu corpo travou diante da porta que dava acesso a sala.

John piscou, atônito. A porta estava entreaberta e havia sangue na maçaneta. Olhando melhor, percebeu que sua mão também estava suja de sangue. Imediatamente levou a outra mão ao nariz que sangrava algumas raras vezes e com uma resposta negativa, concluiu que a maçaneta da porta da frente deveria estar no mesmo estado que aquela. Ficou em alerta, mas seus sentidos não encontravam perigo, então não ligou para Lestrade ou Sherlock, apenas abriu a porta com cautela.

O local parecia vazio, ainda assim pensou em sua arma guardada na mala que estava no seu quarto. Ergueu a muleta com as mãos, pronto para usá-la como arma e entrou com passos hesitantes. Não era muito bom de memória, mas a bagunça estava intacta e Stone não latia indicando algum invasor, no entanto, havia pingos de sangue no chão. John abaixou a muleta e seguiu a trilha de pingos com o olhar, indo da porta até a cozinha, então ergueu os olhos e engoliu em seco.

Por que infernos havia uma cabeça humana sobre a mesa?


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