Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 6
Revelando segredos




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— Regis… Entre!

 

Revelando segredos.

 

Abri o portão e entrei, seguindo ao seu encontro:

— Bença, madrinha — cumprimentei-a, tomando-lhe sua mão e depois a abraçando e beijando sua face. Estava mesmo com muitas saudades dela, que não a via a quase dez anos, quando ela partiu desse mundo e eu sequer ficara sabendo.

— Deus o abençoe — riu ela. — O que deu em você?

— O quê? Vir aqui na hora da escola? É que eu não tive aulas hoje.

Na verdade nem era mentira. Eu não tive mesmo aulas. Nem no tal hoje e nem a milhares de dias, desde que me formei em telecomunicações e ministrava aulas na empresa multinacional onde trabalhei por quase trinta anos.

— Não! — riu ela calmamente como tudo o que fazia. — Me abraçar e beijar! Não me lembro que já fizera isto alguma vez.

— Desculpe — pedi singelo. — É uma forma de dizer, eu te amo.

— O que há com você? — tornou a rir ela.

— Estou crescendo e descobrindo o quanto as pessoas gostam de serem amadas. Ou não?

— Claro! O coração da madrinha jamais esquecerá o dia de hoje.

— Onde está o padrinho?

— Trabalhando.

— Trabalhando?! — estranhei. Ele não trabalhava em nenhuma empresa.

— Saiu pra rua com seu carrinho pra vender coisas.

Coisas significava: vassouras que ele mesmo fabricava, verduras, canecos que ele também fazia à base de latas de leite em pó vazia…

— Estou com saudade dele! Faz muito tempo que não o vejo.

— Como faz tempo? Ele esteve em sua casa domingo.

— É que… eu tinha saído e nem vi ele!

— Então ele é um tremendo mentiroso! Eu mandei um bolo de fubá que ele disse ter entregue pessoalmente para seu afilhado.

— Ah tá! — preciso ter cuidado com o que falo. — Me lembrei agora. Eu só sai depois que ele chegou.

— Concordo — riu minha madrinha desconfiada. — Pode ser à noitinha, quando ele veio embora e você veio com ele até aqui.

Vixi!

Meu padrinho teria partido desta vida no início da década de noventa e eu sequer morava nesta cidade, devido meu trabalho na divisa de Minas Gerais com São Paulo.

Como não tinha mesmo o que fazer, fiquei ali na casa de minha madrinha, conversando assunto que conquistam corações de adultos e tomando seu delicioso café com bolo e biscoitos caseiros, durante todo o período de aulas do verdadeiro Regis desse tempo.

As quatro e meia da tarde reencontrara meu outro eu na frente do grande portão da escola.

Enquanto já caminhava para a casa da vovó, que era ali mesmo, cerca de trezentos metros da escola, o outro menino perguntou ansioso:

— Você quer mesmo que eu vá com você na casa da vovó?

— Claro! Pra isso estou aqui!

— Ela vai ter um troço quando ver uma cópia minha diante dela.

— Não se preocupe — aleguei. — A vovó é bem tranquila. O problema vai ser com a mamãe.

— Nós iremos juntos ver a mamãe, hoje!?

— Acho que não! Tenho que criar coragem primeiro.

Apesar de assustado (quer dizer, eu assustado, pois meu eu desligadinho sequer estava ansioso com isto), entramos juntos no portão de sua casa, depois da sala de estar atravessamos a copa, a cozinha e a encontramos vindo lá do fundo do quintal, já chegando à varanda, na lavanderia:

— Olá! — perguntou ela, sabe-se lá para quem de nós dois. — Vai dormir de novo aqui hoje?

— Quem de nós? — Perguntei.

Só então ela percebeu que eu não estava com um amigo. Nem mesmo com o irmão José, que embora fosse quase igual a mim, tinha três anos a mais de vida.

— O que é isso? — assustou-se ela.

— Lembra que ontem eu não podia contar algo pra senhora, pois não acreditaria em mim? Pois bem! Agora eu posso contar!

— Quem é este outro menino?

— Meu sósia!? — ri irônico, embora sabendo que talvez ela nem saiba o que significa tal palavra.

— Eu, vovó… — interferiu o outro menino. — sou o Regis verdadeiro. Este aqui é só um impostor.

— Impostor uma ova! — protestei. — Mas concordo, vovó, que é assim um pouco complicado pra entender.

— Que eu saiba a mãe de vocês não teve filho gêmeos! — negou vovó. — Ela sim foi filha gêmea! Só que a irmã dela morreu bebê.

— Não somos gêmeos, vó! — neguei. — Na verdade eu sou este mesmo menino aí. Vim de outra época lá do futuro, apenas pra recordar um pouquinho de minha infância. Não pensei que fosse reencontrá-lo por aqui, porque com isso estamos desobedecendo as leias da física e da relatividade de um tal de Isaac Newton. Já ouviu falar?

— Nunca fomos pro futuro! — negou o menino. — Não é mesmo, vó?

— Isaac Newton é do passado! Ignorantinho! Ele morreu em 1727.

O menino, se sentindo analfabeto apenas balançou os ombros.

— Não se preocupe — arrependi de tê-lo chamado assim (estava ofendendo a mim mesmo) — Com oito anos não é mesmo hora pra saber estas coisas.

— E como você sabe? — especulou vovó com jeito de aflição.

— Já estudei bastante, vovó! Meu corpo tem oito anos, minha mente tem mais de cinquenta!

— Eu não tenho oito anos, seu burro — protestou o outro menino. — Tenho nove.

— Grande diferença! — ri.

— Quer dizer que menininho anjinho aí é só sua carcaça? — ironizou vovó.

— Não gosto desse termo, mas concordo que menininho aqui seja apenas meu corpo. Só que eu gosto dele assim!

— Você veio do futuro?

— Exato! Ano dois mil e dezoito!

— Claro que é apenas brincadeira! — riu ela com jeito assustado.

— Não é brincadeira, vó! A senhora já ouviu falar que um tal de Armstrong foi à lua?

— Você tá biruta! Ninguém jamais poderá ir à lua! Como isso seria possível?

— A NASA já está preparando a viagem. Daqui a exatamente um ano, no dia vinte de julho, a senhora poderá ouvir no rádio ele dizer, “um pequeno passo para o homem, porém um grande salto para a humanidade”. Ele dirá isso quando pisar na lua e lá cravar a bandeira dos Estados Unidos da América.

— Se você é do futuro, por que veio parar aqui?

— Rever minha infância, como já disse! Só que também, como já disse, não esperava encontrar esse outro pivetinho aqui.

— Eu sou daqui! — protestou ele. — Onde você acha que eu estaria?

— Sua mãe já viu vocês dois?

— Ainda não tivemos coragem!

— Você não teve coragem! — exibiu-se ele. — Eu não tenho nada o que esconder.

— E por isso vocês estão dormindo aqui? Um dorme aqui e outro com sua mãe?! Um dia foi você e no primeiro dia foi o outro você?

— Isso! Não poderia dormir jogado na rua!

— E você é mais inteligente do que ele?

— Não! Sou mais estudado! Meu amiguinho aqui do lado é nerd!

— O quê!? — não entendeu ele. — Sou essa coisa bosta nenhuma!

— Embora você vá reprovar na escola este ano, nos demais será muito bom! Suas notas, principalmente de Língua Portuguesa e Matemática, será sempre dez.

— E por que ele vai reprovar este ano? — insistiu vovó.

Pensei um pouco e confessei:

— Brincadeiras! Quem sabe ele possa reverter essa perda, se evitar um tal de… Vinícius.

— Não vou reprovar de novo este ano! – protestou o outro menino. – Só tiro notas boas!

— Verdade — me lembrei. — você reprovou o ano passado. Preciso lhe dar conselhos. Se bem que isso poderá também alterar seu futuro.

— Por quê?! — franziu o nariz o outro menino.

— Se eu alterar uma palha velha aqui no passado, posso estar modificando todo um futuro. Preciso ter cuidado.

— Mas você já alterou coisas aqui no passado — analisou vovó.

— Não!

— A escova de dentes que era minha e passou a ser sua foi uma alteração. Afinal, ela é bem mais do que uma palha velha.

— Bem… — fiquei perdido.

Será que apenas uma escova de dentes que trocou de lugar entre proprietários poderia alterar mesmo o futuro? Inclusive porque este novo proprietário nem deveria estar aqui? Creio que não! Acho mesmo que só o fabricante é que vai vender uma escova a mais.

— Como pretende contar esta bonita novidade pra sua mãe?

— Ainda preciso analisar, vovó! — decidi. — Por enquanto o Reginaldo precisa dormir aqui novamente.

— Não me chamo Reginaldo! — negou o menino, fazendo cara de quem não gostou do nome.

— Regis é apenas o nome abreviado de Reginaldo — justifiquei.

— Então fique com esse nome pra você! — protestou ele. — Você é mais velho e em meu registro está escrito Regis Aparecido Albuquerque dos Anjos.

— É! — riu vovó. — Mas anjinho mesmo acho que seja só o nome.

— Posso não ser anjinho, mas meu nome é Regis — protestou meu eu.

— Não importa! Você dorme aqui na vó mais hoje!

— Eu não! Você dorme!

— Eu preciso preparar a mamãe e o papai pro nosso encontro.

— Eu faço isso! Você dorme na vó!

— Até parece que vou deixar esta responsabilidade pra um burrinho como você! — fui enfático. — Com certeza vai estragar tudo.

— Por que ninguém quer dormir na minha casa? — interferiu vovó se fazendo de brava. — Sou tão ruim assim?

— Eu gostei de dormir na casa da senhora, vó. É que eu preciso mesmo preparar a turma lá de casa pro nosso encontro — justifiquei. — E meu maninho desligadinho não serve pra isso.

— Eu também gosto da casa da senhora, vó! — balançou os ombros o outro menino. — É que eu nem tenho roupas pra ficar aqui!

— Você já sabia que iria dormir aqui! — insisti com ele. — por que não trouxe roupas escondida na bolsa da escola?

Ele só balançou os ombros.

— Pelo menos escova de dentes você pode usar a minha que ganhei da vó!

— Eu não, iéca!

— Iéca por quê? — protestei. — A sua boca é a minha boca! Seu corpinho que ficou sem banho é o meu corpo! Portanto, faz favor de lavá-lo e cuidar muito bem dele!

— E depois, você faz igual seu irmão (ela quis dizer, o eu), toma banho, lava a cueca e dorme só de cueca.

— Ele nem usa cueca, vó! — denunciei a mim mesmo.

— Não?! — achou estranho ela. — E como fica?

— Com as coisinhas balançando! — ri irônico.

— Cala a boca! — protestou.

— Menino — insistiu vovó. — Você precisa usar uma cueca. Imagine você brincando no recreio da escola e por algum motivo sua calça rasgar!

— Vai ficar com as coisinha de fora! — completei. — Eu tenho um exemplo disso! Depois revelo.

É®Ê

No caminho de volta para minha casa, meus pensamentos se concentravam de como preparar meus familiares para me aceitar em seu mundo durante o tempo que sei que permaneceria com eles. Sei que esse tempo não seria definitivo, pois eu estava vivendo em um conto de fadas ou sonho que em breve se acabaria e eu estaria de volta ao convívio de minha família real: minha esposa e meus três filhos (dois meninos e uma menina).

Adentrei ao portão de casa juntamente com papai, que acabava de entrar de uma forma um tanto estranha.

Estando apenas dois passos antes dele o acompanhei até a cozinha onde ele tomou o bule que estava sobre o fogão, tentou despejar um pouco de café em uma xícara, porém, ao perceber que tal reservatório estava vazio, nervoso xingou palavras sem nexo e meteu um chute no pobre do bule jogando-o quase aos fundos do quintal da casa.

Sei que não devia, mas naquela hora me dei conta do quanto eu seria mesmo um pivete encrenqueiro; o quanto meu corpo de criança não revelava minha verdadeira identidade:

— Ei, o que está se passando aqui?! — gritei com os olhos faiscando de raiva.

Ele me olhou com mais raiva do que os meus olhos; talvez não acreditando em minha intromissão de filho submisso que deveria ser.

— O senhor bebeu alguma pinga por ai e vai querer descontar no pobre do bule?

— Que respeito é esse, seu moleque?! — gritou ele, julgando que eu jamais devesse lhe dirigir a palavra.

— Que respeito é esse, seu moleque! — repeti as palavras com a mesma ira. — Vá já buscar aquele bule lá do quintal!

— Se você não buscar aquele bule agora, eu vou te bater de um jeito que você nunca apanhou em sua vida! — ameaçou ele.

— O café que foi feito de manhã em uma casa com oito pessoas, como o senhor espera que ainda tenha até a essa hora? Se o senhor não buscar aquele bule lá fora, amanhã cedo minha mãe não irá fazer café!

— Que molequinho atrevido que você é. Não!

Desabotoou e puxou tão rápido o cinto de sua calça que só não conseguiu desferi-lo fortemente em qualquer parte de meu corpo, porque mamãe entrou no meio, pedindo assustada:

— O que vocês dois pensam que estão fazendo?

— Sai fora daqui! — gritou ele, empurrando minha mãe, que quase cai. — Este moleque tá precisando de uma surra bem dada!

Mamãe voltou a interferir e ele, nervoso, com a mente dominada por um tal álcool destruidor de famílias, ameaçou espanca-la.

Eu, responsável por aquele drama, entrei no meio dos dois, empurrando-o.

— Que moleque mais safado do mundo! — gritou ele. — Que falta de surra!

— Que homem mais covarde do mundo! — gritei rangendo os dentes. — Ameaçar bater em mulheres!

— Machinho, você! Não!

— Sou machinho mesmo! Ou acha que vou deixar um homem barbado, com a cabeça cheia de pinga espancar a minha mãe?

— Não vou espancar sua mãe! Vou espancar até aprender a respeitar seu pai, é você!

Arrastei minha mãe para a sala, retornando a seguir para terminar o começado.

— Pode bater, papai! — cruzei os braços em sua frente. — Prefiro que o senhor bata em mim, do que em minha mãe!

Alguma coisa o desconsertou. Talvez ouvir ser chamado de papai, ou por perceber que eu de braços cruzados era apenas uma frágil criança, ou nem tanto, talvez ele não fosse mesmo era o homem para isso.

— Não bato em mulheres! — alegou ele em tom mais calmo.

— Eu sei que não! Te conheço muito mais do que o senhor imagina.

Ele abaixou o cinto ameaçando:

— Mas um menininho machinho como você, precisava apanhar.

— Sou machinho assim porque sei que o senhor também não bate em crianças, meu pai. O senhor nunca bateu em qualquer de meus irmãos. Já bateu uma vez em mim. Quase nem senti o tapa que deu em minha cara lá no sítio, mas confesso que dói até hoje e doerá pra sempre.

— Eu nunca dei um tapa em sua cara! — protestou ele.

— Quem bate esquece, porém quem apanha jamais esquecerá — aleguei tristemente. — Mas não se preocupe. Provavelmente eu tenha merecido. O senhor era apenas um pai que tem a obrigação de corrigir o filho. Eu tinha só seis anos de idade e no meio de seus peões que pesavam a colheita diária do algodão eu devo ter ofendido um deles. Ou quem sabe, devo ter pensado ser um machinho lá também.

Ele se afastou, jogou o cinto sobre uma cadeira da sala de estar e foi preparar seu próprio banho.

Eu o acompanhei exigindo:

— Depois o senhor vai apanhar aquele bule lá do quintal, ou amanhã cedo não terá café.

— Você não acha que está exagerando em sua macheza, dando ordens a um pai a quem deve respeito?

— Para se ter respeito é preciso conquista-lo primeiro.

— Se eu não tiver o respeito de um filho de oito anos de idade, de quem irei tê-lo?

— Da pinga que o senhor bebeu acima da conta — fui incisivo. — Quer dizer… nem dela! E eu não tenho oito anos. Tenho quase dez.

Retornei à sala e cobrei de minha mãe:

— Mamãe, se a senhora apanhar aquele bule lá do quintal, eu ficarei muito triste com a senhora.

— Não vou buscar — alegou ela.

Mas mãe é mãe. Esposa é esposa.

As mulheres desta época se sentem submissa ao esposo e acabam fazendo coisas as quais deixam os safados se julgando como reis diante de um trono de mentiras.


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Notas finais do capítulo

Ah se eu recebesse um comentário.



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