Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 3
Reencontros.


Notas iniciais do capítulo

às vezes costumo colocar o final do cap. anterior para iniciar o atual.



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Agora seria a hora de enfrentar novamente minha “ferinha” em forma de mãe.

Mas, espere! Quem vem lá?

Reencontros.

Avistei ao longe dois menininhos loiros vindo devagar. Era meu irmão José e… e… não podia ser! Eu estava ali em carne e osso, com meus pensamentos bobos. Não poderia estar vindo da escola junto com meu irmão mais velho.

Os dois já estavam passando ao meu lado, quase me atropelando sem me dar atenção. Sem ao menos perceberem que eu era… igualzinho a eles.

Puxei o menino menor pelo braço direito, ao qual ele protestou:

— Ei! O que tá fazendo?

Olhei bem para a cara dele, que tornou a protestar, enquanto o outro menino continuou caminhando:

— Nunca me viu!

Eu já! Todos os minutos e segundos do dia. Será que o idiota… quer dizer… retiro o idiota para não ofender a mim mesmo. Mas será que o pivetinho não reconhece sua própria fisionomia? Será que não tem espelho em casa?

— O que você quer comigo? — insistiu ele. — Eu nem te conheço!

— Será que não mesmo! — protestei irônico.

— Nunca vi você por aqui!

— Será que não!? Eu durmo com você! Eu tomo banho com você! Eu até choro com você!

— Eh! — estranhou o fulaninho. — Sou homem meu! Não sou de chorar como criancinha besta!

— Eu sei o homem que você é! Mas deixa pra lá! Olha bem na minha cara! O que você vê?

Ele olhou firme para meu rosto, franziu a cara e alegou:

— Um moleque branquelo!

— Branquelo sua mãe! — xinguei o safado. — Você nunca se vê no espelho!

Acho que ele (ou era eu) era o menino mais desligado desse mundo materialista.

— Reconhece estas roupas? — perguntei-lhe, dando chance do “burrinho” compreender.

— Sei lá! Parecem minhas roupas! O que faz com elas?

— Prazer! Regis Aparecido do Anjos, às suas ordens!

— Regis sou eu! Por que você tem o meu nome?

Que “eu” mais desligado, meu!

— Acorda, carinha! Eu sou você! Você é eu! Somos um só! A mesma pessoinha que mamãe está esperando pra levar uma surra!

— O quê!?

Acho que ele acordou para a vida. Depois de todas estas dicas ele me olhou espantado, como a imaginar que estava dormindo e tendo o sonho mais encantado (ou atrapalhado) de sua curta existência.

— É isso o que você ouviu! — ri irônico. — Você não está sonhando e nem ficando louco. Eu sou você e vim para repartirmos nossa mãe, pai e irmãozinhos queridos.

— Meus irmãozinhos não são queridos! — protestou o desligadinho do planeta Terra.

— E eu! Sou querido ou não?

Ele pensou um pouco e duvidou:

— Não sei! Acho que não!

— Querendo ou não, eu estou aqui e vou dormir em sua cama!

— E eu!?

— Sei lá! — dei de ombros irônico. — Dorme no quintal. Dorme com o Jerry. Você adora cachorro!

— Sai de mim! Você dorme com o cachorro! E ele nem se chama Jerry! Se chama Piloto.

É! Eu me enganara. O cachorro da família nessa época era o branquinho igual paina de algodão por nome Piloto; Jerry só vai nascer daqui a uns… cinco anos. Antes dele virá o pretinho Bilú.

— Veja bem… — insisti. — eu preciso ficar na nossa casa e, pelo menos por enquanto não vai dar para aparecer nós dois na frente de nossos pais. Eu acho que por isso é melhor você ir dormir… na casa de nosso padrinho… ou da vovó!

— Vou nada! Vá você! Quem é o intruso aqui?

— Você é o intruso! Estou aqui muito antes de você!

— Uma ova! Eu sempre estive aqui e você acabou de chegar!

— Olha bem, você tem mesmo que ir à escola todas as tardes, então vai dormir na casa da vovó. Ela vai gostar! Avós adoram netinhos pequenos! Ainda mais um loirinho lindo como você, que morava no sítio e ela quase nunca o via.

— Não vou não! — negou ele decididamente. — Vá você!

— Tudo bem! Eu vou hoje! Amanhã a gente reveza.

— Vou pensar — se atreveu o amigo da onça.

— Só quero ver o que você vai explicar pra nossa mãe quando chegar em casa.

— Explicar o quê?

— Ela viu você sair de lá as três horas da tarde com esta roupa aqui. Como explica chegar agora com este uniforme da escola?

— Eu saí de casa ao meio dia com o uniforme!

— Não saiu mesmo! As três horas você saiu de lá com estas roupas, pronto pra levar umas varadas na bunda ou nas pernas!

— Por que ela queria te bater?

— Porque é a coisa que ela mais adora fazer! — ri.

— A gente troca de roupa! — decidiu ele prontamente.

— Aqui! No meio da rua!? Você vai ficar peladão aqui no meio da rua? Se pelo menos usasse uma cueca!

Ele pensou um pouco e foi incisivo:

— A gente troca de roupas ali no meio do mato.

Tinha lógica. Eu não teria reparado, mas o local que a poucas horas estava repleto de casas de todos os formatos, agora se fazia repleto de… terrenos baldios, com matagal que nos encobria com certeza.

— Tudo bem! Trocarei com você. Desde que amanhã a gente inverta as condições.

Ele concordou duvidoso e seguimos a nos esconder no meio dos arbustos, onde nos despimos, barganhando as roupas.

Voltamos à rua e ele já seguia para casa, onde tornei a alertá-lo:

— Se prepare porque a mamãe está te esperando com uma varinha verde nas mãos!

— Por que irei apanhar? Não fiz nada de errado!

— Vai ter que explicar direitinho o que fazia as três horas da tarde em casa, sendo que deveria estar na escola.

— Eu estava na escola!

— Não estava não! — Ri irônico. — Estava em casa trocando de roupas!

— Não vou apanhar sem ter feito nada!

— Troque comigo! Vá dormir na casa da vovó e eu apanho em seu lugar!

— Apanha em meu lugar?! Quem fez a peraltice?

— O Regis! Quem é o Regis?

— Tudo bem! Vou dormir na vovó!… Só hoje!

— Tchau!

Foi melhor assim. Eu precisava mesmo dormir na minha casa, junto à minha família principal.

Ele, tristonho, tomava o caminho de volta para a casa de nossos avós, que estava então bem próxima ao grupo escolar Marcos Trench, onde eu supostamente ainda estudo.

Eu, animado seguia para minha casa, enfrentar a fera de nossa mãe, quando ele, ao longe gritou:

— Como vai explicar ter saído de casa com estas roupas? — apresentou a roupa em que usava.

O jeito foi voltarmos para o tal matinho protetor de corpos despidos.

Depois de destrocarmos nossas vestes, lhe pedi:

— Preciso ficar com sua bolsa!

— Acha! Vou com ela na escola amanhã!

— Eu levo ela pra você antes do horário das aulas.

— Preciso dela! Eu tenho que fazer tarefas!

— Faço a tarefa pra você!

— Você nem sabe o que estudei hoje!

— Garanto que acerto tudo! Bem melhor do que você!

— Vê quem fala! — Caçoou o bobinho, que na verdade nem me conhecia direito.

— A tarefa é sobre o quê?

— Linguagem e cálculos! — foi incisivo meu eu.

Traduzindo: Língua Portuguesa e Matemática.

— Quanto é duas vezes três? — perguntei-lhe no intuito de testá-lo.

Ele só pensou um pouquinho e respondeu convicto:

— Seis!

— Três vezes quatro!

Depois de pensar um tanto:

— Doze.

— Quatro vezes seis!

Um minuto depois:

— Vinte e dois.

— Certeza?

— Não! Vinte e quatro!

— Seis vezes nove!

— Ainda não estudei a tabuada do seis — negou. — Só até a do cinco.

— Pois é! — franzi a testa.

— Você sabe?

— A do seis!? Ou a do nove!? Ou seria talvez a do quinze!

— Ninguém sabe tabuada do quinze!

— Você não sabe! — ironizei. — Eu sei!

— Quanto é quinze vezes dois?

— Por que não pergunta mais difícil?

— Quinze vezes quatro!

— Mais ainda!

— Quinze vezes… — pensou um pouco. — quinze!

— Agora eu gostei! Vou só pensar cinco segundos e dizer… duzentos e vinte e… quatro!

Esperei ele falar algo, depois especulei:

— Acertei?

— Sei lá! — balançou os ombros. — Acho que não!

— Por que não!?

— Ela tem que terminar com cinco! Ou com zero!

Juro que fiquei orgulhoso! Ele não era tão ingênuo! Apenas nove anos de idade, início do segundo ano do fundamental. Embora tivesse reprovado o ano anterior, inteligente!

— Por que tem que terminar com cinco ou zero? — busquei testá-lo.

— Porque a tabuada do cinco tem que ser assim! A dona Maria do Carmo ensinou! E então a do dez também! — pensou um pouco. — Não! A do dez tem que terminar sempre com zero, ela disse! Mas a do quinze e do vinte e cinco e todas que têm o cinco, tem que ser assim. Entendeu?!

— Sim! — sorri satisfeito. — Eu errei de propósito pra ver se você pegaria alguma coisa e… de verdade, fiquei feliz por ver que você é bastante inteligente. A resposta correta é duzentos e vinte e cinco.

É®Ê

Adentrando devagar, receoso, pelo portão de casa, depois, de certa forma assustado, pela porta da sala onde avistei quatro de meus irmãos que brincavam no chão de concreto vermelho, faltando apenas o mais velho.

Lentamente segui para o meu quarto, jogando sobre a cama a bolsa de couro com laterais de ripa, a qual teria ganho de meu avô João Trofini e como estava rasgada, papai a consertou, transformando-a em uma valise.

Voltei o olhar surpreso para a porta de entrada do quarto, me deparando com minha mãe, batendo uma varinha de guanxuma verde e fina por entre as mãos.

— O que há, mamãe? — aleguei querendo chorar. — Não quer me bater, não é?

— Claro que eu quero te bater! E bastante!

— Por que uma criança pequena que nem fez nadinha de nada precisa de apanhar?

— Me diz qual é a criancinha pequenina que não fez nadinha e então não merece uma bela surra.

— Olha ele aqui! Eu só vim aqui àquela hora pra tomar um remedinho de nada e já voltei pra escola rapidinho!

— Voltou pra escola, é?!

— Sim! — abri a bolsa e apanhei os cadernos. — Veja meus cadernos. Fiz todas as lições que a professora mandou!

Folheei o caderno de classe diante dos olhos dela, apresentando as lições todas completas, depois apanhei o caderno de tarefas e mostrei a ela.

— Veja! Tenho até tarefas pra fazer!

— Na casa de qual coleguinha que você foi copiar toda a lição?

— Nenhum deles! – Neguei convicto. – Foi mesmo na escola!

— Está certo! Nem sei que professora maluca que deixa um aluno sair da sala pra andar três quilômetros e depois voltar, mas como as lições estão feitas eu acredito em você.

Suspirei aliviado. Porém, era cedo demais.

— Mas vai apanhar assim mesmo! — Foi incisiva ela.

— Por que apanhar se eu fiz tudo direitinho? — especulei assustado, guardando os cadernos na bolsa.

— Porque fugiu de mim!

— Lógico que eu fugi! A senhora iria me bater!

— Pois vou bater agora! Dobrado.

— Não quero apanhar, mamãe! — protestei com jeito de choro. — Apanhar dói!

— Ah dói! Eu sei que dói! E é esta a ideia! Doer mesmo!

— Machuca minhas pernas!

— Só fica marcas que depois de dois dias desaparecem!

— Meus coleguinhas caçoam de mim na escola! Fazem bulling!

— Fazem o quê?! — se surpreendeu ela com palavra que talvez nunca tinha ouvido falar.

Eu tentava falar como criança, mas as vezes, principalmente por causa do medo da varinha doída, acabava me esquecendo de meus nove anos de idade.

— Eles caçoam de mim! Não me bata, por favor! Eu amo você!

— Eu também te amo, meu anjinho! — ironizou ela. — Mas tenho que lhe educar com esse amor!

— Amor em forma de varinha doída nas pernas nuas?! Prefiro mais um amor de beijos e abraços.

— Darei apenas algumas varadinhas não muito forte na bunda, pra que os coleguinhas não vejam as marcas. E é bom irmos logo com isso, porque senão as varadinhas vão aumentar de quantidade e de força.

Já que não tinha mesmo como me livrar da fera, balancei os ombros franzindo o nariz de jeito comovente, deixei que segurasse em meu braço. Ela levantou a poderosa arma de tortura infantil e a deixou bater sobre minha calça curta apenas uma vez, bem devagar, depois soltou-me, dizendo brava:

— Agora faça sua lição de casa! Antes que a varinha volte a cantar forte de verdade nas pernas.

Novo suspiro aliviado, ao qual a abracei, dando em sua face um beijo daqueles que derrubam qualquer coração de pai, acompanhado de palavras que quebram:

— Amo tanto você, mamãezinha de meu coração malvado.

Na realidade estes gestos e estas palavras era mesmo surpresas à minha mãe, pois na minha verdadeira época de menino, isto não acontecia em nosso meio.

Todas as noites, na hora de dormirmos, cada um dos filhos, já na cama, iam se despedindo dos pais seguidamente, dizendo:

— Bença mãe!

— Deus te abençoe. — respondia ela.

— Bença pai!

— Durma com Deus.

Porém, este negócio de abraçar, beijar, dizer carinhosamente eu te amo ou chamá-los de mamãe e papai, de fato nunca existiu.

Ali mesmo, ajoelhado no chão diante da cama, tomei o caderno de tarefas e em menos de dois minutos estava tudo pronto.

Sei que estava sendo injusto com o aprendizado de meu outro eu, pois para minha mente evoluída fazer a tabuada do dois e três, depois os numerais de mil e um até mil e cem… era tudo automático, mas convenhamos que ele teria que entregar a lição pronta na aula seguinte e seu caderno não estava ao seu alcance.

Ao aparecer na cozinha para tomar um copo de água, minha mãe reclamou:

— O que está fazendo aqui?

— Não posso tomar água?!

Ela se calou e tomei apressado dois gigantes copos de água de um pote com filtro.

Lavei o copo no tanque que ela usava para lavar roupas e louças, apoiado por uma bacia de latão, já que em minha casa não tinha pia na cozinha, água encanada e chuveiro elétrico.

Segui para a sala e sentei no chão junto com os demais irmãos com intuito de me “enturmar”.

— Regis, o que você está fazendo aí? — protestou minha mãe, aparecendo na porta que separa tal sala com a cozinha.

— O que há, mamãe! — não compreendi. — Não posso brincar com meus irmãos?

— Pode! Claro que pode! Depois que terminar a tarefa de escola!

— Eu já fiz a tarefa da escola! A senhora não lembra!?

— Em um minuto! — protestou ela. — Pra quem demora meia hora todos os dias!

— Já fiz! Era pouca a tarefa!

— Duvido! Busque que eu quero ver! E se for mentira vai apanhar de verdade!

Levantei-me, corri até o quarto, trazendo-lhe o caderno, que ela folheou com atenção depois concordou:

— Está certo! Está pronta.

— Mamãe! Por que você gosta de bater nas crianças?!

— Pra vê-los me chamar de mamãe e me dar um beijo.

— Eu lhe darei muitos beijos, mamãe, porque eu te amo muito!

Acho que eu deveria parar de ser muito melindroso, senão acabaria criando ciúmes em meus irmãos. Além do mais, eu não vim para cá para me tornar anjo, mas sim, para ser eu mesmo.

Voltei a me sentar com os irmãos no chão da sala.

 


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Notas finais do capítulo

Que tal um comentário, mesmo que seja apenas "up" para que eu saiba que está acompanhando.



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