Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 22
Carinho de tio




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Claro que nenhuma criança recusa refrigerante. Sendo assim, os dois concordaram em perder mais um tempinho com esses dois vovôs do coração.

 

Carinho de tio.

 

(Narrado por Arthur)

Na sexta feira seguinte, pedi ao casal de vovôs e eles concordaram em levar Regis com eles na hora de colher o capim para sua égua Princesa.

O maninho saiu normalmente da escola as dezesseis e trinta horas e ansioso, antes das cinco, já teria passado em casa e estávamos na olaria, onde encontramos o casal pronto para ir colher a tal refeição de seu animal.

O único problema foi que Caíque, o verdadeiro neto do casal, resolveu que iria com os avós.

— Filho — pediu dona Marcelina com simpatia. — Você deixa o Regis ir conosco hoje. Na semana que vem você vai.

— Não, vovó — recusou o menino. —Eu quero ir hoje!

— Sabe o que é — insistiu ela. — O Regis nunca foi lá com a gente. Você sempre vai.

— É que eu quero ir com vocês, hoje.

— Você sente ciúmes que a vovó leve o Regis com eles, Caíque? — perguntei—lhe.

— Eu nem sei o que é ciúmes! — protestou o pequeno. — Só quero ir com eles!

— Façamos o seguinte — insisti. — Eles irão e nós dois ficamos aqui! Enquanto isso a gente brinca juntos.

O menino franziu o nariz, pensou um pouco e concordou:

— Tá bom então! Na semana que vem você me leva, né vovó!

— Claro que sim! — concordou dona Marcelina. — É que o Regis nunca andou em nossa carruagem mágica. Por isso queremos que ele passeie um pouco com a gente.

Eles se foram e eu acabei arrumando uma obrigação, pajear um menino menor do que eu.

Claro que não era de tudo um grande sacrifício. Eu também, sendo criança adorava brincar. Do quê?

Por acaso encontrei uma pequena tábua quadrada de material em fórmica. Tive uma ideia na mesma hora. Segui com Caíque até o forno de tijolos, encontrei um pedaço de carvão, dividi a tábua em oito filas de oito quadrinhos cada fila, pintei alternadamente um quadrinho sim e outro não com o carvão e pedi ao menino:

— Em sua casa tem milhos e feijões?

— Sim! — foi incisivo.

— Você pode pegar doze de cada pra nós brincarmos?

— Espere aqui! — E saiu correndo para sua casa.

Quando ele retornou eu já teria terminado de melhorar nosso tabuleiro de jogos.

Sentamos os dois no chão, um de frente para o outro, com o tabuleiro no meio, onde perguntei:

— Sabe jogar damas?

— Sei! — Confirmou ele, corrigindo depois. — Não muito!

— Eu lhe ajudo.

Preparamos o jogo e já iniciávamos a partida quando acabei por perceber alguma coisa estranha.

O menino, sentado no chão, de frente para mim, com uma calça tão curta quanto as que eu também costumava usar, um pouco larga, sem cuecas, deixava transparecer suas partes intimas toda rabiscada com, talvez caneta esferográfica preta.

— O que é isso em seu corpo? — Perguntei-lhe, enquanto mudava uma pedra do jogo, de certa forma preocupado com, não o quê, mas o porquê.

Ele forçou a roupa, observou direito, deu certo sorriso peralta e alegou:

— São pelos!

— Pelos? Por quê?

— Pra ser adulto!

— Você quer ser adulto?

— Sim! — foi incisivo ele, mudando uma pedra. — Todo mundo quer!

— Eu não quero! — neguei convicto. — Quero ser criança!

— Não quer!? — estranhou ele.

— Todo mundo será adulto um dia. Mas por enquanto, sejamos apenas crianças! É melhor!

Ele tentou esticar as roupas, para evitar ficar tipo… exposto.

— Quem rabiscou pelos em você? — Insisti, mexendo outra pedra do jogo.

— Quem? — se atrapalhou um pouco. — Eu!

— Seus pais já viram?

— Já!

— E o que eles acham?

— Engraçado — deu de ombros, mudando sua pedra do tabuleiro.

— Foi mesmo você quem fez isto? Por quê?

— Pra ser adulto! Eu já disse!

— Quem quer que você seja adulto?

— Quem quer? — estranhou ele de minha insistência. — Eu mesmo!

— Ninguém ajudou você a rabiscar isso aí?

Ele pensou um pouco e respondeu:

— Sim, meu tio!

— Seu tio? — meu coração bateu assustado. — E seu pai acha engraçado?

Ele não respondeu. Era cruel.

— Seu pai sabe que foi seu tio quem rabiscou com canetas seu corpo?

— Não! — se preocupou o menino. — Meu tio disse que não pode contar pras pessoas, nem pro meu pai, senão ele me bate.

— Caíque! Ouça com atenção. Você não pode ficar perto de seu tio nunca mais! Ele não pode ficar rabiscando seu corpo com canetas. Ele não pode sequer abraçar você!

— Ele é meu tio! E gosta de mim!

— Ele não gosta de você de verdade! Um tio não pode ficar pedindo pro sobrinho tirar a roupa…

— Ele é muito bom pra mim! Me dá coisas!

— Te dá coisas? Que coisas?

— Doces, balas e também algum brinquedo.

— E pro seu irmão, ele dá alguma coisa?

— Não! Meu irmão não vai na casa dele!

— Ouça aqui, Caíque! Eu sou seu amigo! Gosto de você! E nem por isso a gente pede pra tirar a roupa! Isso não é gostar! Um adulto não pode pedir pra uma criança tirar a roupa! Você nunca mais chegue perto de seu tio, senão eu mesmo vou contar pro seu pai.

Ele esfregou as mãos sobre o tabuleiro em nosso meio, desmanchando as jogadas e protestando:

— Não quero mais jogar com você!

Se levantou emburrado e se afastou em direção à sua casa.

Era de fato cruel. Eu teria afastado meu maninho do perigo, mas outro inocente estava em poder do mesmo perigo e meus simples dez anos de idade não poderia fazer nada, a não ser contar aos pais do menino.

E quando ele já atravessava a rua, onde terminava a olaria em direção à sua casa, Mauro saiu de trás do forno de tijolos, olhou em minha direção, abraçou o menino, acompanhando-o.

— Caíque! — gritei, na intenção de impedi-lo do que estava prestes a acontecer-lhe.

O menino olhou para trás, o rapaz também, dando um sorriso de deboche, forçou o menino junto a si e continuou caminhando juntos até entrar na porta de… sua casa, que era praticamente grudada à casa dos pais do menino, que não estavam em casa, pois estavam ali na olaria, preparando o serviço que seria executado na segunda-feira.

Segui até o ponto de depósito de argila, onde a família trabalhava, me aproximei do outro menino, dizendo:

Jonas, seu tio está caído dentro da casa dele. Não sei o que aconteceu. Seria bom você ir lá ver.

O menino se assustou um pouco e ansioso saiu correndo para tal local.

Confesso que fiquei assustado com o que fiz; por outro lado, também senti aliviado por ter transferido minha responsabilidade para outra pessoa. Tudo bem que era só outra criança, mas era mais velho do que eu e com certeza saberia como agir.

Acreditando que tal menino fizesse alguma coisa em prol do irmãozinho, resolvi ir embora.

É®Ê

Como meu irmão Regis estava demorando para voltar, resolvi sozinho preparar meu banho, pedindo ajuda de mamãe apenas na hora de subir o tal chuveiro improvisado e assim que me despi para entrar debaixo d’água ele chegou.

— Ei! Não me esperou não! — reclamou ele se despindo, já que éramos companheiros de banho juntos. Pois, unidos, não precisávamos de ajuda com o peso.

— Gostou do passeio?

— Legal! — foi eufórico, enquanto esperava eu me molhar primeiro, antes de fazer uso de sabonete. — Outro dia, a dona Marcelina disse que vai ficar, então iremos nós dois!

— Epa! — protestei. — Está esquecendo do verdadeiro neto deles!

—Bem! — pensou melhor. — Pode ir você e o Caíque!

— Ou você e o Caíque! — Cedi o lugar no chuveiro para ele se molhar, enquanto eu me esfregava. — Eles te deixaram na olaria?

— Não! Me deixou aqui na porta de casa.

É®Ê

Durante praticamente toda a noite não consegui dormir, preocupado com o que teria acontecido na olaria depois que saí de lá.

Na manhã de sábado, apesar de eu e meu irmão não trabalhar em respeito à nossa pouca idade, os pais de Caíque trabalhavam pelo menos até às dez horas e então resolvi ir até lá, fingindo que teria algo para terminar; porém o verdadeiro intuito era o de saber o que teria acontecido na tarde anterior.

Embora não tenha visto o menino menor, tive sorte, pois encontrei o irmão maior, ao qual perguntei:

— O que aconteceu ontem com seu tio?

Ele me olhou, de certa forma revoltado e perguntou:

— Você sabia o que estava acontecendo lá?

— Não de verdade! — neguei. — Achei estranho o jeito que ele tratava seu irmão, por isso pedi que você fosse lá. Onde eles estão?

— Meu irmão está em casa. Ele não quer sair. Meu tio foi embora. Nunca mais vai voltar.

O menino pequeno era o que mais ajudava o pai. Sempre animado, parecendo que aquele árduo trabalho de oleiro fosse uma mera brincadeira.

— Você sabia o que acontecia? — insistiu o menino. — Porque não foi a primeira vez!

— Desculpe — pedi tristonho. — Eu não sabia direito o que acontecia, mas sabia que tinha alguma coisa errada. É por esse motivo que meu irmão Regis não volta mais aqui.

— Meu tio… fazia a mesma coisa com Regis?

Acenei que sim e emendei:

— Como está seu irmão?

— Com vergonha — deu de ombros, o menino. — Mas ele ficará bem. E o Regis? Nunca contou pra ninguém?

— Eu vi acontecer! Acho que com meu irmão só aconteceu uma vez.

— Por que meu tio tem esse modo idiota de ficar mexendo com crianças? — estava chorando o menino. — Se quisesse ser bicha, por que não procurou um adulto?

— Isso que ele tem é um tipo de doença mental — tentei explicar tal fato cruel. — Pessoas assim não gostam de adultos; só de crianças!

— Deveria ir pra cadeia!

— No futuro irá! Eu acho que deveria ir pra um hospício e nunca mais sair de lá! Essa doença não tem cura.

— Doença uma pinoia! — reclamou o menino. — Precisa de uma surra bem forte.

— E com você? Ele nunca ameaçou fazer nada com você?

— Acha! Se ele relasse a mão em mim eu dava um murro na cara dele!

— Mesmo quando você era mais novo… ele nunca mexeu com você?

— Claro que não! A gente nem morava perto! Não sei como o Caíque não contou pro meu pai! Ele conta tudo pro meu pai.

— Essas coisas, infelizmente as crianças não contam. Sentem vergonha. Ou medo mesmo. Ele me disse que seu tio falou pra ele que nunca podia contar pra ninguém adulto.

— Por que ele não contou pelo menos pra mim?

 — Não sei! Ele não contou nem pra mim! Descobri por acaso. Tenho tantas coisas que eu precisava contar, Jonas, mas eu não posso.

— Como assim?

— Cuide muito de seu irmãozinho — pedi, sabendo de coisas graves. — Cuide sempre. E nem é por isso.

Ele não me entendeu e eu continuei:

— E seus avós? — me preocupei. — Vocês contaram a eles?

— Não! Acho que minha mãe não quer contar. Tem medo que minha avó sinta mal.

— Também acho melhor não contar. Sua avó é muito boa e acredito que não suportará saber algo tão cruel do filho com o próprio sobrinho.

— Você deveria ter me contado — cobrou o menino.

— Eu só fiquei sabendo naquela hora. Até então, acreditava que seu tio só mexera com meu irmão.

É®Ê

Sendo assim, já na segunda-feira, meu maninho Regis resolveu voltar ao trabalho conosco.

Duas coisas o incentivavam a aquele trabalho que não era nada divertido. O primeiro motivo era o dinheiro que era repartido entre nós e mamãe. Embora eu prometera que a metade do meu seria entregue a ele, com sua ajuda o montante seria maior. O segundo motivo era o de estar sempre junto comigo, que ele, embora reclamasse, me chamando inclusive de impostor, era assim, como se fosse da boca pra fora. No fundo ele me adorava. E não poderia ser diferente.

Outros que também adoraram a volta do maninho ao trabalho, foi nossos queridos vovôs adotivos, que continuavam não sabendo a verdadeira razão da partida inesperada do filho. Julgavam que ele teria ido em busca de melhores oportunidades de trabalho.

É®Ê

Teria se passado uns quinze dias, desde a partida de Mauro, quando, era quase hora de meus dois irmãos saírem da escola e eu seguia para a olaria, no intuito de iniciar os trabalhos de empilhamento de nossa produção diária, trabalho este que a gente chamava de engambetar (e nem me perguntem o que significa pois eu garanto que não sei. Nem mesmo no dicionário existe tal palavra).

Nesta tarde teríamos combinado que os dois parceiros seguiriam direto da escola para tal missão.

Uma quadra antes da olaria encontrei Mauro, que vinha mesmo a meu encontro.

Sentindo certo receio, parei, acreditando que ele simplesmente passaria por mim sem falar qualquer palavra.

Ele parou diante de mim, apontou-me o dedo indicador, protestando nervoso:

— Você… destruiu a minha família!

— Não… — neguei receoso. — Você se destruiu diante de sua família. E pode ter certeza que foi melhor assim. Pelo menos pra duas crianças que jamais esquecerão o que aconteceu a elas nestes dias.

— Eu vou cortar o seu saco!

— Ai é que está! — ironizei. — Se fosse qualquer outra pessoa que estivesse com ódio de mim, diria, eu vou enfiar uma faca em seu coração. Você diz, eu vou cortar o seu saco. Por quê? Porque você sente prazer, não em cortar, mas que para cortar será preciso pegar…

— Eu vou cortar e guardar de lembrança de um pivete que destruiu a minha família — prostrou as mãos na cintura, levantando um pouco a camisa, fazendo questão que eu notasse que ele estava de posse de um canivete grande.

— Ouça um conselho — insisti, embora assustado. — Você não é uma pessoa má! Nem sequer bebe. Se fosse outro, só teria vindo me encontrar com a cara cheia de cachaça. Você é só uma pessoa doente. Sente prazer em mexer com crianças. Pense no trauma que você causa a elas. São seres sagrados e inocentes. Não estão preparadas pra esse tipo de brincadeira cruel. Meu irmão nunca vai esquecer o que você fez com ele. Nem seu sobrinho vai.

Me calei por um instante e como ele nada disse, continuei:

— Cara, você vem de uma família honrada. Seus pais e pelo menos um de seus irmãos nos adoram!

— Pois é! — ironizou ele. — Está roubando até meus pais!

— Que isso, cara! — ri, de certa forma irônico também. — Você não é criancinha pra sentir ciúmes do carinho que seus pais têm pela gente não. O que quero dizer, é que você vem de boa índole. É só um cara doente! Se fosse em outra era, no futuro, você iria parar na cadeia pelo que fez, ou ainda faz aonde está morando, não sei.

— Aonde você acha que estou morando? Debaixo da ponte?

— Me disseram que você foi pra outra cidade. Está na casa de parentes. Isso não importa pra mim! Siga o conselho de um menininho de dez anos de idade, mas que tem a vivência maior do que a sua; vá se tratar, cara. Procure um psicólogo, ou um psiquiatra. Se interne se for preciso. Cure sua cabeça com desejos cruéis contra inocentes, depois volte e peça perdão à sua família… a seu sobrinho e volte a conviver com todos.

— Minha família nunca vai me perdoar, por sua culpa.

— Não foi minha culpa — neguei. — Foi sua culpa e você sabe disso! Se fosse normal o que fazia com Caíque e meu irmão, sua família não teria ficado magoado contigo.

Ele se afastou sem dizer mais nada.


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