Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 20
Visita especial




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(Narrado por Marcelina)

Sou casada com meu velho Manoel já faz mais de quarenta anos. Temos três filhos homens, os quais, embora todos solteiros, dois moram conosco e um deles, o Mauro, mora na mesma olaria em que trabalho com meu velho. Aliás, também temos uma filha. Ela também mora na olaria, porém já é casada e nos deu dois lindos netinhos, o Caíque de oito anos e o Jonas de onze.

Caíque é uma graça; muito esperto e que adora ajudar o pai na árdua tarefa de preparar a argila para a fabricação de tijolos. Já o Jonas, que ajuda a mãe na fabricação, é um pouco, eu não diria preguiçoso, mas sim, querendo ser apenas a criança que tão cedo deixara de ser, para ajudar os pais no trabalho.

Meu esposo é assim de seu instinto meio que moleque. Adora fazer brincadeiras com tudo, praticamente nunca se sentindo triste e por isso faz amizade com todo mundo, adultos ou crianças.

E eu, já com quase sessenta anos, costumo manter meus cabelos presos por um tipo turbante, principalmente para que não se suje muito com o malvado pó de mico da fabricação dos tijolos. E… estou sempre ao lado de meu amado velho.

Agora recente, parece que nossa vida deu uma pequena mudada. Quer dizer… parece que foi nosso coração que mudou um pouco. Acabamos de ganhar mais dois netinhos.

Regis e Arthur acabaram de completar dez anos de idade e trabalham ajudando o irmão José, que já tem doze. Os dois meninos são loiros e gêmeos idênticos, embora, enquanto Regis usava seu cabelo em corte tipo soldadinho americano, Arthur prefere que os seus chegue a cobrir as orelhas. Isso até que era bom, pois se tornava mais fácil a gente separar os dois. Só que agora mais recente, os dois estão com os cabelos quase iguais.

Só que apesar de gêmeos idênticos, eles são diferentes: enquanto Regis é um menininho tímido, inocente, puro… Arthur é mais desinibido e esperto. Parece que o danadinho consegue até saber o que a gente está pensando. Parece que ele já passou por todos os anos da escola.

E por que eles se tornaram nossos netinhos?

Isso veio do coração e nem foi a gente que os cativou. Eles mesmo grudaram em nossos corações e nos prenderam para sempre, com seus jeito terno de ser.

Foi o próprio Arthur quem disse que iria nos prender pelo coração, fazendo o seguinte: grudou no pescoço de meu velho, abraçou-o e lhe deu em seu rosto o beijo que ele nunca recebera na vida. Depois fez o mesmo com esta boboca aqui.

Só que o Regis não trabalha mais na olaria e por isso nosso coração está batendo dolorido. De saudades daquele que nos cativou com carinho.

Só que mesmo que ele continuasse trabalhando lá, a saudade existiria, pois, ontem mesmo, Arthur foi no meio de nós dois, em nossa velha carroça, até longe na rodovia, onde fomos cortar capim colonião para a Princesa. Aquele trabalho para mim foi como um passeio alegre e eu nem queria que acabasse, mas infelizmente não teria como não acabar e confesso que na mesma hora em que deixamos o menino de volta próximo à sua casa, a saudade já começou.

Arthur, porém, prometeu que hoje à tarde trará seu irmão para nos visitar.

Acontece que ainda faltava bastante tempo para chegar tal horário, porém a ansiedade já tomava conta de meu coração que batia de um jeito, parece que assustado, com um certo receio de que eles não apareçam. Isso não poderá acontecer, senão eu ficarei maluca e… meu velho também acabe pirando, pois ele está mais bobão do que eu, andando para todos os cantos dessa casa, parece que procurando alguma coisa que nem existe.

Ele já foi até o mercado, onde comprou quatro garrafas de refrigerantes de guaraná e quatro pizzas pré-prontas. Ao chegar em casa, meu filho Alex, que apesar de ter mais de trinta anos de idade, como continua solteiro, ainda mora com a gente, resolveu ironiza-lo:

— O que houve, velho? Trocou a pinga pelo guaraná? Resolveu que não vai mais beber da branquinha?

— Hoje não! — negou meu velho, convicto.

— Vai aderir ao guaraná?

— Quem sabe! — balançou os ombros, ele.

Foi até o tanque de lavar roupas, encheu-o de água e colocou os refrigerantes para refrescar, já que não temos geladeira.

— O que está acontecendo com vocês dois, hoje? — insistiu meu filho. — O senhor tá parecendo babaca, a mãe tá lá perdida na cozinha, fazendo um doce que nunca fez! O que você tá fazendo, mãe?

— Pudim de leite de coco! — alegou ela. — E não quero que ninguém mexa nele antes da hora da janta!

— Por quê? A janta de hoje é especial?

— Todas as jantas são especiais! — aleguei.

— Então os almoços também são! — ironizou meu filho. — Comeremos seu pudim de leite de coco depois do almoço.

— Se atreva a colocar as patas nele pra ver só o que acontece!

E assim, sempre com muita ansiedade o dia foi passando bem devagar. Aliás, devagar demais.

A partir das quatro horas da tarde, meu velho coração idoso passou a pulsar ainda mais temeroso, pois a cada minuto que passava, eu sentia que já estava de tarde e temia que os meninos não fossem mesmo aparecer.

Meu velho sentava no sofá da sala, um minuto depois seguia até a rua, onde ficava olhando perdido para todos os lados durante uns dez minutos. Voltava, bebia água, seguia até o tanque, onde ficava alisando as garrafas de refrigerantes, depois voltava para a rua, tornava a entrar, sentava no sofá.

Enquanto isso aproveitei para tomar meu banho e confesso que fiquei bastante tempo no chuveiro, pois lá parecia que a ansiedade estava controlada.

Ao sair, convidei o velho:

— Vá logo tomar o seu banho! Daqui a pouco sua visita chega e você ficou sem o banho.

— É que… e se eles chegarem?

— Prometo que não os deixarei irem embora antes que você saia do banho.

Então ele acatou meu pedido, entrando para o chuveiro, de onde saiu em menos de cinco minutos.

— O loco, velho! — caçoou meu filho. — Isso lá foi banho?!

— Foi sim senhor! — foi convicto meu Manoel. — Não se precisa ficar o dia todo no chuveiro pra se tomar banho!

— Parece que os banhos dos outros dias demora um poucão a mais! — ironizou Alex.

— Os outros dias eu trabalho e me sujo! Hoje eu não fiz nada!

— Concordo! — disse o rapaz. — Nem mesmo dormiu na parte da tarde como sempre faz.

Depois de uma pequena pausa, Alex ainda insistiu:

— Vocês poderiam explicar que visita tão importante que estão esperando?

— Quem disse que estamos esperando alguma visita? — reclamou o pai.

As cinco horas chegou, o Sol já pensava em se pôr, indo embora lá pelos lados do Mato Grosso e os dois safadinhos não apareciam.

Seis horas da tarde, sentei-me ao lado de meu velho no sofá da sala e aleguei:

— Acho que eles não virão! Talvez seus pais não deixou que eles viessem.

— Devem ter esquecido! — alegou triste meu velho. — Crianças são assim mesmo. Sempre muito ocupadas. Ainda mais que, como trabalha no meio da semana, aproveita o dia de folga pra brincar o dia todo na rua.

— Mas o Arthur sabe que iríamos ficar ansiosos — aleguei convicta. — Ele até parece um hominho de esperteza. Por que sabendo disso iria nos fazer sofrer?

— Ele é só uma criança! Outro dia ele aparece.

— Pensando bem — decidi. — Talvez seja melhor assim. Caso eles tivessem vindos, quando fossem embora a saudade já começaria de novo.

Era quase seis e meia da tarde, já estava noite e a gente continuava triste, sentados no mesmo sofá, depois de meu velho já ter ido à rua diversas vezes.

Meu filho adentrou pela porta de saída da rua e nos vendo tristes nos especulou:

— O que está acontecendo com vocês dois, hoje?

— Nada — neguei. — Não podemos conversar juntos, como marido e mulher?

— Vocês não estão mesmo esperando alguém? Nenhuma visita especial?

— Não! — negou meu velho. — Não estamos esperando ninguém!

Ele puxou pelos braços os dois meninos que estavam escondidos do lado de fora da porta, ironizando:

— Então estes dois pivetes podem ir embora?

Foi como se o céu se abrisse e uma legião de anjos descessem sobre nós com uma bela canção. Eram apenas dois meninos… comuns… como quaisquer outros, mas para nossos corações, eram os mais especiais de todo o mundo.

Arthur foi o primeiro a incentivar um abraço demorado em mim e em meu velho, como se fizesse um século que a gente não se via. Regis, mais tímido, apenas seguiu o incentivo do irmão.

— Achávamos que vocês não viriam mais! — aleguei.

— Dissemos… de tarde! — explicou Arthur.

— Mas já está de noite — resmunguei.

— De tarde pros meus velhos — interferiu meu filho. — Está sendo desde o meio dia. Acho que até antes!

— Estão desde o meio dia esperando a gente? — estranhou Regis.

— Na verdade desde cedo — ironizou Alex.

— É que a gente quis judiar um pouquinho — alegou Arthur de seu jeito sapeca. — Sabemos que ficariam ansiosos e por isso demoramos.

— Não judiem assim deste coração velho! — protestou meu Manoel. — Ele pode não aguentar.

— Eu sei o quanto ele dói! — foi convicto Arthur. — Sei mesmo! Somos apenas meninos, mas pra vocês somos especiais.

— Estávamos com medo que não viessem! — insinuei.

— Eu não faria isso! — negou Arthur. — Não com quem a gente sabe que nos ama de verdade. E nós não demoramos pensando em judiar não. É que pra nós de tarde seria agora.

— O que vocês dois fizeram pra conquistar o duro coração destes velhos? — perguntou-lhes meu filho.

— Eu já sabia que iríamos cativá-los aos poucos, então dei uma aceleradinha no destino — ironizou Arthur, dizendo a verdade.

— Ãh! — estranhou meu filho, do jeito esperto de um menino de dez anos falar.

— Grudei no pescoço deles e não larguei mais.

Sentei com meu velho no sofá de dois lugares, enquanto os meninos sentaram juntos no de três lugares e meu filho se afastou para a cozinha.

— Regis — cobrou o irmão. — Dona Marcelina está morrendo de saudades de você. O senhor Manoel também! Sente no meio deles!

— O sofá é de dois lugares! — alegou Regis.

— Melhor ainda! — riu o irmão. — Sente no colo dela! Ela vai amar um pouco de seu carinho.

Com certeza iria amar.

O menino, embora um pouco acanhado sentou-se em meu colo, encostou seu rosto em meu peito e passei a acariciar seus cabelos suaves, como a muito tempo não fazia nem mesmo com meus legítimos netos, mesmo porque, apesar do mais novo ainda aceitar carinhos de avós, o mais velho malemá aceitava um pequeno afago na cabeça.

— A senhora não usa mais o pano na cabeça? — perguntou-me Regis, admirado pela falta do turbante.

— Viu só! —achei engraçado sua percepção. — Aqui em casa eu não preciso dele!

— O que você acha de minha véia? — ironizou meu velho, em pergunta ao menino. —Ela fica mais bonita com ou sem aquele pano encardido na cabeça?

— Encardido uma ova! — protestei. — Eu lavo o pano todos os dias?

— Ela é bonita dos dois jeitos — foi incisivo, Regis. — É que sem pano fica melhor. Eu não consegui nem conhecer a senhora! E depois, a beleza maior é aquela que está dentro do coração.

— Que lindo, maninho — caçoou Arthur. — Está aprendendo a ser romântico!

— Romântico não! — franziu o nariz o menino. — Verdadeiro.

Permanecemos ali juntinhos por uns cinco minutos, depois, sabendo que criança pode até gostar da gente e de carinho, mas não eternamente, então resolvi libertá-lo:

— Pronto! Já matou um pouco da saudade dessa vovozinha aqui. Agora pode ir se sentar ao lado do irmão.

Ele atendeu prontamente sentando-se no outro sofá, onde continuamos conversando, inclusive com meu marido fazendo suas peraltices de menino grande e meu filho, que de vez em quando aparecia na sala, conversando alto.

Metade de uma hora passou muito rápido.

Arthur, se levantando, disse:

— Agora a gente precisa ir.

— Por que tão cedo? — especulou surpreso meu velho. — Acabaram de chegar!

— É que já está passando da hora do jantar.

— Mas vocês irão jantar aqui conosco! — insistiu meu velho.

— Vamos!? — encantou-se Regis.

— Claro que vão! Chegaram agora! Não acabaram com minha saudade nem de minha véia! E já querem irem embora?

— Vocês avisaram a mamãe que viriam aqui e ela deixou — especulei. — Ou não?

— Claro que sim! A varinha verde dela dói muito. — exclamou peralta, Arthur, fazendo gestos de surra com as mãos.

— É!? — achei interessante, pois para mim eram dois anjos que não deveriam apanhar nunca. — E vocês apanham muito?

— Não! Só uma vez por dia! — disse como metáfora, Arthur.

— Jura! — espantei-me.

— É mentira dele, dona Marcelina! — interferiu Regis. — Mamãe às vezes bate em nós, mas não é todos os dias!

— Mas vocês dois são santinhos! Anjinhos!

— É que dentro de nós têm alguns diabinhos que prendem os anjinhos, aí então viramos anjinhos da cara suja — ironizou Arthur.

— Vocês dois fazem traquinagens, às vezes? — perguntou meu velho.

— Menos do que o senhor, pode acreditar! — foi incisivo Arthur.

Levantei-me, dizendo:

— Fiquem aqui conversando com meu velho, que vou preparar a janta pra nós.

— Não quero que tenha trabalho por nossa causa — alegou Arthur.

— Trabalho!? — fui incisiva. — Satisfação!

— Nada disso! — protestou meu filho, aparecendo na porta para a sala e me levando de volta ao sofá. — A senhora vai ficar quietinha aqui, paquerando estes dois… netos adotivos, enquanto o jantar é por minha conta. Até já estou preparando.


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