Através das barreiras do tempo escrita por Celso Innocente


Capítulo 10
Cuécas


Notas iniciais do capítulo

Demorei um pouco, mas estou de volta.



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— Pra que você quer cueca?

— Experimente o senhor ficar sem!

— Se acha mesmo um hominho?

— Sim! Eu sou hominho! Detesto ficar sem cueca! O mesmo que o senhor tem debaixo da calça eu também tenho. Apesar de ser um pouquinho menor, mas eu tenho e o Regis também tem!

— Ainda bem que tem! — Riu ele se afastando para a cozinha com a cadeira nas mãos. — Um pouquinho menor…

 

Cuecas.

 

Domingo depois do almoço, mamãe deu a mim, ao Regis e ao José, Cinco Cruzeiros, o qual já era mesmo seu costume de todos os domingos, como se fosse uma pequena mesada. Esse dinheiro já tinha o destino certo, então, arrastado pelos dois, seguimos juntos à Sorveteria Azul, do senhor Amado, na Rua Amazonas.

José Carlos, já chegou pedindo um sorvete de casquinha de sabores diversos.

Arrastei Regis, intimando-o:

— Você não vai comprar sorvete!

— Por que não?! — espantou-se ele. — É o que mais gosto!

— Nós dois estamos em jejum de guloseimas!

— O que é… guloseimas? — franziu o nariz.

— Sorvetes! Por exemplo!

— O que é… jejum?

— Ficar sem comer o que mais gosta.

— Lógico que vou comprar sorvetes! Dois!

— Vai nada! Seu sorvete se transformará em… cueca!

— Até parece! Nem gosto de cueca!

— Enfie a mão no bolso de sua linda calcinha curta — ironizei.

— Pra quê?

— Enfie!

Ele enfiou a mão no bolso esquerdo e deu de ombros como quem não encontrou nada.

— No outro bolso!

Ele obedeceu e tornou a dar de ombros como não encontrar nada.

— Não encontrou nada?

— Não!

— Nem duas bolinhas?

— Ãh!

— Mesmo que você tivesse guardado algo aí, o que encontraria agora seria apenas seu saquinho. Seu bolso está furado e está chegando o dia em que em sala de aulas alguém vai sair por este bolso para tomar ar.

— O quê?! — não entendeu ele.

— Nós dois vamos fazer sacrifício do sorvete para amanhã cedo ir comprar pelo menos uma cueca cada um.

— Está bem! — entristeceu-se ele. — Vamos embora!

— Confie em mim! Não quero que mostre sem querer, seus documentos de machinho pra garota Fatima Pesqueiro, dentro da sala de aulas!

— Não vou fazer isso! O que você pensa que sou? Tarado!

— Não é! Pelo contrário. É bastante tímido e vai sentir a maior vergonha de sua vida quando tal fato ocorrer por culpa de um bolso furado.

E assim, apesar da inveja de assistir o irmão José Carlos se deliciar com dois deliciosos sorvetes de casquinha, retornamos sedentos para casa, onde encontramos vovô João Trofini sentado na cozinha, conversando com mamãe, como sei que ele fazia a cada quinze dias (na verdade duas semanas), se revezando com mamãe, que então iria à sua casa com sua tropinha de filhos menores (só não o Leonardo, com treze anos, que já se achava hominho para andar nas saias da mãe).

Antes das nove horas da manhã de segunda feira, estava com Regis, em busca de uma boa loja de roupas (a mais barateira) no centro da cidade.

Concluímos que a melhor seria aquela que está ali na esquina esquerda (para quem sobe) no início da curta Rua São Francisco, que, tendo apenas duas quadras, termina defronte ao bonito Santuário de São Francisco de Assis, residência oficial dos padres franciscanos.

Entramos cautelosos, sem ser incomodados ou atendidos por quaisquer dos vendedores, que, lógico, não daria atenção para dois pivetinhos que… nunca compram nada.

Procuramos com muita atenção nas bancas de roupas: shorts, camisetas, camisas, calças-curtas (não tão curta como a que estávamos usando). Nenhuma nos agradou. Quer dizer: nenhuma agradou a nossos bolsos com apenas cinco Cruzeiros cada.

Seguimos para a banca de roupas íntimas infantil masculina, tomando nas mãos e olhando com atenção para diversas, que, com certeza seria o nosso tamanho.

Corrigindo: Eu olhava com atenção. Regis parecia julgar que aquilo seria um gasto desnecessário. Por que vestir uma roupa em lugar onde ninguém irá ver?

O preço: Três Cruzeiros e vinte centavos cada uma.

Tínhamos dinheiro para apenas três. Íamos ter que compartilhar cueca. Tudo bem que éramos nós mesmos, como diz um dito popular: cara de um, focinho de outro. Mas… roupas íntimas, escovas de dentes não se compartilha.

Nem sei por que, mas então uma vendedora jovenzinha, simpática, acho que pelo magnetismo que dois gêmeos idênticos representa para as pessoas, resolveu nos atender, brincando:

— Que lindo! Dois geminhos iguaizinhos! Onde está a mamãe?

— Em casa, trabalhando pra limpar a bagunça dos pequeninos — respondi com sorriso conquistador de adultos.

— E você estão sozinhos?! — estranhou ela.

— Sim! Sabemos o caminho!

— A questão não é só saber o caminho! A questão é o perigo em andar sozinhos! — protestou ela.

— A gente olha pros dois lados para atravessar as ruas e também foge dos… — pensei antes de concluir. — Sabe de quem, né?

— Sei sim! — riu ela. — Precisa cuidado mesmo! Eu se fosse a mamãe não deixaria vocês saírem sozinhos por ai. Moram longe?

— Não! Pertinho!

— Por que cortaram os cabelos de jeito diferente?

— Pra ficar diferente! — ironizei. — É esquisito as pessoas me chamar de Regis e chamar ele de Arthur.

— Isso quer dizer que você seja o Arthur e ele o Regis? — arriscou ela. — Vocês querem comprar alguma coisa?

— Sim! Cuecas!

— Muito bem! — riu ela. — Já escolheu?

— Não muito! — fiz carinha de piedade. — Nosso dinheiro só dá pra comprar três. Como iremos dividir três cuecas para dois?

— Quanto dinheiro vocês tem?

— Dez Cruzeiros! — Finalmente Regis falou alguma coisa.

— Se vocês comprarem quatro cuecas, quanto isto custaria?

Deixei o maninho idêntico responder. Ele, porém, pensou e decidiu:

— Se custasse três Cruzeiros cada, seria doze, mas custa mais de três.

— Quanto é três e vinte vezes quatro, maninho? — forcei seu cérebro do segundo ano primário.

— Eu não sei mesmo! — negou ele.

— Se você já chegou aos doze Cruzeiros, agora descubra os vinte centavos vezes quatro.

Ele pensou bastante, contou nos dedos e arriscou:

— Oitenta centavos.

— Mais doze Cruzeiros? — insisti sendo observado pacientemente pela jovem vendedora.

— Oitenta centavos e doze Cruzeiros — alegou ele. — Quer dizer… Doze Cruzeiros e oitenta centavos.

— Parabéns, meninos! — riu a jovem.

O maninho adotado se sentiu realizado.

A jovenzinha decidiu:

— Como recompensa consigo um desconto. Vocês vão levar quatro cuecas e pagarão três. Topam?

— Claro! — Concordei.

— Desde que me falem quanto vai custar as três!

— É com você, maninho — cobrei-o. — Três vezes três e vinte.

— Éééé… nove… eee… — contou nos dedos. — Vinte… quarenta… sessenta… isso, nove Cruzeiros e sessenta centavos.

— Parabéns, maninho! Você é inteligente!

— Você sabia a resposta antes dele? — estranhou a moça.

—Sim! Quer dizer… faço as contas um pouco mais rápido! É que eu nasci primeiro!

— Muito bem! — Concordou ela. — Pode escolher.

Apanhei duas cuecas brancas tamanho infantil P enquanto Regis escolheu uma preta e outra branca.

— Não senhor! — protestei. — Você não pode levar cueca branca!

— Por que não? Você escolhe as suas e eu escolhos as minhas!

— É! Ai mistura nas gavetas e eu acabo usando as suas, fedidinhas!

— Não sou fedido! — protestou ele trocando a cueca branca por uma vermelha.

— A moça apanhou as quatro peças de roupas, anotando o valor em um papel, depois perguntando:

— Precisam de algo mais? Camiseta, short…

— Sim! — concordei rindo. — Mas a mesada foi pequena.

— Infelizmente não podemos conceder crédito aos dois jovens clientes — ironizou ela. — Suponho que não tenham emprego fixo.

— E nem ce pe efe — emendei.

— Sabe o que é ce pe efe? — estranhou ela.

— Cadastro de pessoa física — dei de ombros.

— Como?!

— É que na escola apareceu umas pessoas nos distribuindo revistas do compadre tatú e comadre formiga, falando sobre o imposto de renda. Também acho que como nós crianças não pagamos imposto de renda, então os caras deveriam mandar as revistas para nossos pais. Mas eles são espertos — ri convicto. — mexem no psicológico das crianças, falando da braveza do leão, fazendo nós explicarmos quem é esse leãozinho feroz para nossos pais.

— O que é psicológico? — testou-me ela.

— Os neurônios alterados por algum trauma, menina! — franzi a cara. — E nem adianta perguntar o que é neurônio ou trauma que eu lhe falarei outras.

— O que são neurônios? – riu ela com jeito em testar este nerd.

— Se você estiver em um sítio muito escuro e olhar para o céu, o que verás?

— Estrelas. Milhões de estrelas!

— Pois é, dentro de sua cabecinha existe uma massa cinzenta que chamamos de cérebro. Imagine todas as bilhões, não milhões, de estrelas do céu, interligadas entre si dentro de sua pequena cabeça. Ou da minha, menor ainda.

— Você é muito inteligente.

— Todo mundo é inteligente! Ler e estudar é que desenvolve a capacidade do aprender.

— Está bem! — deu-me seu papelzinho com o preço e as cuecas. — Pode pagar no caixa. Quanto receber outra mesada, volte que lhes darei um bom desconto.

— Voltaremos sim!

Depois de pagarmos pela compra no caixa e receber o embrulho, saindo pela porta da loja, onde Regis protestou:

— Não vai ter próxima vez! Com meu dinheiro eu vou tomar sorvetes!

Chegando em casa, rasguei o embrulho e corri ao tanque de mamãe, onde ao lavar as peças íntimas, Regis tornou a protestar:

— O que está fazendo? Por que foi lavar uma coisa que ninguém usou?

— Ninguém usou! Mas quantas pessoas pôs as mãos? Não quer pegar bactérias nas suas coisinhas, quer?!

Assim que ele foi vestir seu uniforme escolar, foi minha vez de protestar:

— Não está faltando algo?

— Ãh!? — Não entendeu.

Corri ao varal, apanhei as quatro peças já secas e lhe joguei a vermelha, emendando:

— Vista!

Ele a vestiu, ajeitando direito no corpo pequeno.

— Gostou? — perguntei.

— Não! Está apertada!

— Apertada uma ova! É que você nunca usou! Terá que se adaptar a ela.

— Não posso começar a usar amanhã?

— Por que começar amanhã o que já está em seu corpo? E depois… quem garante que o dia fatídico em que seu foguetinho resolver sair pra tomar ar não seja o hoje?

Ele deu de ombros e acabou de se vestir, enfiando as mãos nos bolsos de sua calça curta azul marinho, revirando para fora, mostrando-me que nenhum deles estava furado.

©®©

Agora, como mamãe sabia quem era eu, sabia também que durante o horário de aulas eu continuaria em casa e assim, para não ser tão ocioso ou vagabundo, a ajudava nos afazeres domésticos. Quer dizer… depois do almoço não tinha tantas atividades na casa, pois, apesar do grande número de pessoas, nove comigo, mamãe fazia a maior parte de seu trabalho pela manhã. Depois do almoço restava apenas lavar a louça de tal refeição, ao qual decidi fazer para ela, ficando apenas de calça curta, para não molhar a camiseta.

À tarde, assim que papai terminou de tomar o seu banho e no fogão já tinha outra chaleira de água fervente, convidei meu “maninho idêntico”:

— Vamos tomar banho!

— Por que, vamos? — estranhou ele.

— Você me ajuda a subir o chuveiro, com isso, colocamos um pouco a mais de água e aproveitamos pra tomar banho juntos.

— Acha! Não sou bicha!

— Que mania de bicha, cara! — protestei. — Somos irmãos! Podemos ficar peladões juntos! Além do mais, somos idênticos e também, criança não tem esse negócio de pudor!

— O que é… pudor? — franziu o nariz.

— Vergonha! Criança não tem diferença entre estar de roupa ou não estar! Ela usa roupas por ser costume. Nada a ver por causa de sexo.

— Uhm! — franziu o nariz.

— Você, por exemplo. Nem gosta de usar cuecas! Eu detesto ficar sem elas.

Ele acabou, mesmo um pouco contrariado, aceitando minha ideia. Me ajudou a puxar água no poço de cordas e sarilho, ajudou a encher até quase a boca o chuveiro improvisado, depois, eu mesmo, usando um velho pano pra segurar o cabo quente da chaleira, adicionei a água fervente, deixando nosso banho uma delícia.

Nós dois juntos subimos o chuveiro, com a polia rangendo um pouco por falta de lubrificação, nos despimos por completo e então, entrei embaixo da água, me molhando bastante, enquanto Regis, protegendo um pouco suas regiões proibidas, aguardava.

Depois de ter o corpo inteiro, inclusive a cabeça bem molhados, sai debaixo do chuveiro, dando lugar a ele, que se molhava enquanto me esfregava com bucha do mato e sabonete.

Depois disso tornamos a inverter: enquanto ele se esfregava eu me enxaguei; depois, aguardei ele se enxaguar e, os dois juntos voltamos para debaixo da água, fazendo algazarra, com o objetivo de gastar toda a água. Até que ele… se mostrou inteligente, dizendo, apesar de rindo bastante:

— Acho que a gente não deveria gastar toda a água.

— Como assim? — estranhei.

— Poderíamos economizar pra outro aproveitar.

Desliguei o chuveiro, elogiando-o:

— Parabéns! Excelente iniciativa. Me ajude aqui! — Comecei a descer o chuveiro.

— Pra que abaixar o chuveiro? — estranhou ele.

— Pra ver o tanto de água que sobrou. Amanhã a gente coloca a menos.

Depois de verificar que havia sobrado em torno de um quarto de água, perguntei-lhe:

— Como hoje enchemos o chuveiro até a boca, quanto acha que deveremos colocar amanhã?

— Até aqui! — mostrou-me a posição referente a três quartos de tal balde chuveiro.

— Isso mesmo!

Enrolamos na toalha e ao abrir a porta para sair, ele ainda questionou:

— Não vai subir o chuveiro?

— Pra quê? — dei de ombros. — O próximo que for tomar banho já o encontrará abaixado.

Seguimos ao quarto, onde fomos nos enxugar melhor e vestir nossas roupas.

A primeira peça que vesti, foi minha mais jovem cuequinha branca, enquanto ele… vestiu sua calça curta sem fazer uso de tal acessório, sendo interrompido por mim:

— Já vai ficar sem usar a cueca?!

— Ninguém merece dormir apertado! Amanhã eu visto pra ir na escola!

Talvez ele tivesse razão. Pra dormir é bom mesmo que estejamos muito confortável. Mas poderia tirá-la na hora do dormir! Ainda faltava muito.


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Notas finais do capítulo

Ah se eu conseguisse um comentário!



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