Storge escrita por Nat King


Capítulo 2
Capítulo 2 - Final


Notas iniciais do capítulo

OLÁÁÁÁÁ!!!!!!

Galera, tô entupida até a garganta de coisa pra fazer, por isso estou atrasando tanto as respostas aos comentários e mensagens :'D Queria pedir desculpa pela ausência... Espero que o capítulo de hoje compense a espera!! ♥

Esse é o capítulo final de Storge, PORÉM teremos um capítulos bônus, sem data prevista para postagem (desculpa, Mileh ;-;) onde teremos aí alguma coisa com Nina Plisetskaya. Culpem dona Diamante, ela deu corda pros meus headcanons de um OC falecido, so... xD Mas a leitura ou não desse bônus em nada compromete a compreensão da história, é apenas, como o nome diz, um bônus :3

Antes que eu me esqueça, vocês já leram Two Shades of Blue? Desculpa, aqui eu trabalho com panfletagem :v VÃO LER QUE É A COISA MAIS PURA DA VIDA!!! ♥

Tenham uma boa leitura!! ♥

((Soundtrack recomendada: Pai - Fábio Júnior qq))



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Chegando em casa, Yuri tirou o par de tênis e os deixou alinhados ao lado da porta. Depois de um ano, mais adaptado à rotina puxada de treinos e estudo, e encorajado pelo bom desempenho nas competições em que havia participado, ele já conseguia voltar para o lar sem cair desmaiado em qualquer canto, ajudando a não manter o apartamento uma bagunça para Yuuri arrumar. Só de lembrar que, diferente de quando viviam em Moscou, era seu padrasto quem cuidava de toda a limpeza e organização, o garoto sentia-se culpado.

Bom seria se a culpa fosse “apenas” aquela. Mudança de cidade, horas extras de trabalho para cobrir os gastos adicionais da nova carreira de Yurio, Katsuki fazia sacrifício atrás de sacrifício para financiar o futuro do enteado. E ele reclamava? Claro que não. Katsudon respondia a tudo com sorrisos e poucas palavras que minimizavam seus esforços, como “está tudo bem”, “não estou assim tão cansado”, “isso não é nada” e a dispensa que Yuri mais odiava no mundo: o “você não precisa se preocupar.”

É lógico que ele se preocupava! Seu padrasto não tinha mais vida, esgotando-se em suas horas de trabalho e trabalhando no que deveria ser seu descanso. Como um ser humano normal podia fazer tudo isso e ainda ter a audácia de negar cansaço ou ajuda?! Agora ele entendia porque Nina vivia dizendo precisar ficar de olho no marido, Yuuri sozinho era capaz de esconder muito bem um problema, isso quando não era o próprio que se escondia. Que leitãozinho teimoso...

— Cheguei! — Estranhando a falta de um “okaeri” recepcionando sua chegada, Yuri anunciou sua presença, parando no meio do corredor e ficando no aguardo. Nada. Era só o que faltava, Yuuri não estar em casa.

Ou pior. Muito pior.

Descobrir que que um de seus técnicos tinha, nas vergonhosas palavras de Mila, um crush pelo seu padrasto, revelou-se o pior e mais tragicômico tipo de pesadelo para Yuri. Victor sabia ser profissional e nunca rondou o aluno para saber mais sobre Katsuki, mas Plisetsky não era burro, podia ver muito bem, mesmo por trás da franja lhe tapando um olho — aquilo era estilo, pessoas básicas como Mila Babicheva jamais entenderiam a pegada fashion de seu cabelo comprido e estampa felina —, quando Victor ficava olhando ao redor, suspirando para as paredes na esperança romântica de rever o japonês, que até então ele pensava ser algum estranho de uma aldeia perdida no extremo oriente russo. Oh, seu técnico era mesmo uma porta.

Por outro lado, Yuuri não era uma pessoa curta e grossa como o garoto que criava, se enfiando em todo tipo de imprevisto por não saber negar nada a ninguém. E se Victor, por alguma artimanha do destino, tivesse encontrado Yuuri no meio tempo em que Yurio deixava a escola para ir embora, encurralando Katsuki com todo aquele jeito espalhafatoso e sorridente, fazendo com que ele inevitavelmente aceitasse seu convite para qualquer coisa almofadinha que Victor gostasse de fazer? E se Yuuri estivesse, naquele exato momento, de bermuda e moletom em um restaurante cheio de rococós albinos como Nikiforov, passando a maior vergonha de sua vida só porque não conseguia negar nada ao sorrisinho estúpido do mais velho? Oh, merda, ele precisava descobrir onde ficava esse maldito lugar, precisava ligar para Mila, precisava logo salvar o seu pa-!

— Yurio? — A voz dormente o chamou, interrompendo o desespero crescente de Yuri e congelando o pavor em seu rosto. — Eu acabei cochilando, não te ouvi entrar, me desculpe… — O rosto vincado pela mania de Yuuri em dormir abraçado com o travesseiro, confirmava aquela história. Nada de restaurantes do terror, pelo menos… — Está tudo bem? Parece que viu um fantasma…

Se estivesse devidamente desperto, Yuuri começaria a fazer um escândalo, desesperado com a palidez do filho e sua expressão de horror. Notando a brecha sonolenta, Plisetsky tratou de se recompor, forçando por cima de seus devaneios com Victor Nikiforov como o vilão sequestrador, o pensamento de que tudo estava bem, quando tudo não estava lá tão bem assim. Nina diria que ele reclama muito do padrasto para ser exatamente como ele.

— Não… — Irrelevando o pavor de antes com um elevar de ombros, o garoto negou. — Eu achei que tivesse esquecido a carteira no rinque, só isso.

A carteira estava muito bem guardada dentro de sua mochila, mas ninguém precisava saber disso.

— Menos mal, foi só um susto. — Despertando lentamente, Yuuri voltava à clareza, recordando-se do porquê ter cochilado enquanto esperava por Yuri. — Meus pais mandaram algo para nós…

Os olhos de Yuri voltaram a arregalar, dessa vez de animação. Tendo ideia do que poderia ser, ele correu até a pequena cozinha, para ver as caixinhas de pocky com chocolate e pacotes de arroz em cima da mesa. Há quanto tempo eles não comiam arroz japonês, vindo diretamente de solo nipônico?

— Pensei em te esperar para fazermos katsudon — explicou Yuuri, feliz com a alegria estampada nos olhos do enteado. — Eu sei que você não pode sair muito da dieta e que já fomos ao Mc Donalds na semana passada-

— Mas é katsudon!! — comemorou empolgado, interrompendo o padrasto sem perceber. — Sempre tem uma brecha para katsudon!!

Yuuri riu alto. Nisso ele também tinha que concordar.

— Que bom que está animado! Eu já adiantei o arroz na panela elétrica e deixei a carne de porco descongelando na geladeira, se você puder pegar para mim-

Sem esperar mais nenhuma outra instrução, Yuri se adiantou em pegar carne, cebolinha e ovos, em sua pressa de começar logo a preparação do jantar. Para Yuuri, era sempre bom ver Yuri feliz daquele jeito.

Quando Yurio era menor, Nina sempre vetava a participação do filho na cozinha, principalmente perto de objetos cortantes e panelas em temperaturas elevadas, o que não deixava o garoto muito feliz. A preparação de katsudon também levava óleo quente, um motivo extra para o grande NOPE da moça, mas, de algum jeito, Yuuri conseguiu contornar os receios da esposa ao mostrar pequenas coisas que a criança podia fazer, como martelar a carne para amaciar e ajudar a empanar as peças cortadas em ovo e farinha. Parecia inofensivo, na cabeça de Yuuri, revelando-se uma realidade catastrófica quando Yuri, em toda sua experiência martelando castelinhos de areia, transformou a carne em um filé deformado de pancadas e a mistura de ovo esparramou-se por todo o tampo da mesa, com Katsuki tentando minimizar a sujeira enquanto Nina ria ao fundo. Eram bons tempos.

— Anda, Katsudon, eu estou com fome!

E em momentos como aquele, Yuri, aos seus olhos, ainda parecia ter quatro anos de idade.

.:.

Plisetsky apenas abriu mão de escolher qual tema apresentaria em sua estreia na categoria sênior, porque as promessas de Lilia Baranovskaya para ele eram grandes. A ex-esposa de Yakov, como ele logo descobriu, era conhecida por não ser nada delicada com a educação profissional de seus alunos e essa pouca sensibilidade com certeza havia diminuído ao longo dos anos, principalmente considerando que ela teve a aposentadoria interrompida para fazer um favor ao ex-marido. Era muita sorte Yuri não ser mais tão flexível quanto antes, ou ele tinha certeza que ela daria um laço em suas duas pernas.

Não foi difícil pegar a coreografia e ritmo do Allegro Appassionato, nem tão insuportável assim aguentar o reforço em balé clássico enquanto Lilia esganiçava em cada pirueta mal feita, difícil mesmo foi entender qual era a proposta do programa curto. O que raios era ágape?!

— Yuri, pode parar um pouco, por favor? — pediu Victor, pela sétima vez desde o começo do treino. A cada interrupção do mais velho, o garoto sentia sua paciência se esvair tanto quanto os cabelos de Feltsman.

— Qual foi o problema, agora?

Não era sua intenção soar tão rude, mas ele já estava cansado de parar a coreografia antes da metade. O programa tinha apenas dois minutos e mesmo assim, Plisetsky não conseguia chegar ao fim dele desde que Victor, a pedido de Yakov, deixou o protegido de lado para avaliar seu desempenho. Yuri achava que estava muito bem, obrigado, sem Victor Nikiforov.

— O problema está aí! — De forma bem humorada, Victor esticou ambas as mãos em direção a Yuri. Espera, era ele o problema?! — Você não está chiando apenas para mim, está com essa cara a performance toda!

— É a única cara que eu tenho!

Victor olhou para Georgi, arqueando as sobrancelha. “Seu escolhido” dizia o julgamento. Popovich revirou os olhos e voltou a atenção para Altin.

— Não precisa mudar de rosto, apenas a expressão… — O conselho não fez Yuri atenuar o cenho franzido. — Interpretar faz parte de uma apresentação. Não se esqueça que a parte artística também vale ponto, o que Gosha te ensinou antes de mim?

A provocação não era séria, fazia parte da falsa competição daquela amizade de anos.

— Que tal a centralizar spins? — Com elegância e um tom minimamente irônico, Georgi rebateu. Mais a frente, Otabek fazia o pior low back que Nikiforov já havia visto. Era melhor ele permanecer quieto.

— Ganhei o último mundial júnior sem essa besteira toda.

O descaso com a pontuação artística teria matado Georgi se ele tivesse ouvido.

— Na verdade, não. The Dance of Knights combina com essa sua cara invocada, conquistou pontos na interpretação porque os jurados não te conheciam fora do rinque. Se soubessem que estavam vendo Yuri Plisetsky ao invés de um guerreiro, não teria levado o ouro para casa. — A expressão de Yurio ficou ainda pior ao ouvir aquilo. — Se continuar com essa careta, tanto no programa curto quanto no livre, lamento, você não terá tantas chances assim.

Certo, depois daquilo Victor estava esperando uma careta, ver o menino arremessar os patins como fazia com o celular quando perdia alguma fase do Candy Crush, mas, para seu visível alívio, Yuri resmungou para o gelo, resistindo em dar razão ao técnico.

— Tá, o que eu tenho que fazer para ágape?

Esperançoso com a pequena abertura dada pelo adolescente, Victor sorriu, recuperando o tom divertido.

— É bem mais do que fazer, Yurio, é sentir.

Indignado, a expressão de Plisetsky voltou a fechar — para receio de Victor, que nunca sabia o que esperar do aluno — e ele ainda puxou o fôlego antes de responder, completamente contrariado;

— Meu nome não é Yurio!

— Oh, bem, me desculpe… — riu Victor. Ele estava esperando uma reação muito pior. — Não sabia que não gostava do apelido, é que das vezes que vi seu pai, ele só te chamava assim.

— Que vezes?! Você anda vendo ele?! Isso não é antiético?!

— … Desculpe? — sorriu amarelo, começando a ficar com medo dos punhos fechados de Yuri e o rosnar por trás dos dentes fechados. — Foi apenas um mal entendido, não estou seguindo Yuuri nem nada do tipo. — O menino não pareceu nenhum pouco convencido. — Tudo bem, não vou repetir mais. Vamos tentar concentrar no seu programa, está bem?

Os olhos verdes o mediram de cima a baixo. É, aquilo podia funcionar.

— Tudo bem. Afinal, é para isso, e apenas para isso, que estamos aqui.

Victor sentiu um arrepio desconfortável subir pela espinha. Ele já conseguia ver as notas nos sites de notícias sobre seu corpo achado sem a arcada dentária, boiando em algum rio para fora de São Petersburgo. Certo, talvez “ver” não fosse bem a palavra, já que estaria morto.

Que aluno difícil! Quão seguro seria tê-lo como enteado no futuro?

— Pensando alto de novo, Nikiforov… — pigarreou consigo mesmo, tratando de se recuperar logo depois. — Bom, Yuri, vamos combinar o seguinte: o treino de hoje está terminado e sua lição de casa é fazer uma pesquisa sobre ágape e trazer sua interpretação disso para amanhã.

A tarefa mais parecia um castigo para Yuri do que ajuda na compreensão de como deveria patinar. Além dele perder tempo precioso onde poderia treinar e aprimorar seus saltos, não seria infinitamente mais fácil se Victor apenas lhe dissesse o que precisava fazer? Depois eram os adolescentes que dificultavam tudo!

— Não pode só me dizer no que estou errando? — Tentando soar um pouco menos nervoso, Yuri resmungou a pergunta.

— Falta sentimento, mas eu não posso sentir por você, Yuri. — Para o garoto, parecia bem mais confuso do que Nikiforov queria dizer. — Vá para casa. Espero por você amanhã.

Plisetsky tentou uma última vez olhar para Georgi, mas daquela vez, não recebeu intervenção nenhuma. Mais desapontado que irritado, ele deixou a pista em silêncio, ignorando o olhar do jovem cazaque com o qual nunca havia conversado e a tentativa de despedida de Mila. Se seu isolamento não fosse preocupar Yuuri, ele passaria o resto do dia sem falar nada, aguardando pelo dia seguinte.

Chegar em casa bem mais cedo que o habitual certamente surpreenderia Katsuki e Yuri já esperava todo o interrogatório sobre sua disposição e o apreensivo discurso paterno sobre sua saúde, com ameaças de ligar para Yakov para saber se o garoto havia passado mal ou algo do tipo. Assim que segurou o trinco da porta, Yuri esperou ver o padrasto saltar em sua frente.

Para sua surpresa, não foi isso que aconteceu.

O apartamento cheirava a chá de canela, o chá preferido de sua mãe e, talvez não por coincidência, seu chá preferido também. Nina dizia que ter de passar toda a gestação longe de tudo o que levava canela, despertou vontade também no filho, tornando a família adoradora desse tempero usado em quase tudo na culinária dos Plisetsky. Antes mesmo de Yuuri fazer parte da família, ele também já era fã do uso da canela e Yuri tinha sérias suspeitas que havia sido isso a fazer sua mãe cair apaixonada pelo japonês.

E como tudo o que ligava às memórias de Nina, lá estava Yuuri, entretido com as fotos do passado, em frente a duas canecas cheias de chá perfumado. Yuri sabia que aquela caneca sobrando não era para ele.

— Sério, quem achou que era uma boa ideia colocar uma gravata borboleta em mim?

Desperto do transe como quem é desperto do sono, Yuuri piscou lentamente, demorando para entender estar vendo o enteado.

— Oh, Yurio… Bem-vindo. — Sorrindo, Yuuri voltou a olhar para a foto na qual mantinha sua atenção há vários minutos, quem sabe até uma hora inteira. Nela, registrada no dia de seu casamento com Nina, estavam Nikolai, Yuuri, Nina e Yuri, no colo da moça. O menino não estava nada feliz com a gravata vermelha, mas nem mesmo a careta do filho conseguiu tirar o grande sorriso dela. — Sua mãe achou que ficaria fofo.

— Eu com certeza não achei. — Ouvir a risada contida de Yuuri aliviou um pouco a preocupação do adolescente. O padrasto ficava deprimido por dias quando resgatava as fotos de família.

— Ela estava linda, não estava?

Yuri lembrava coisas demais para quem havia perdido a mãe com apenas seis anos, mas, é claro, não lembrava de tudo. Isso o fazia suspeitar do porquê para Katsuki era tão difícil superar o passado, uma vez que o japonês se lembrava de tudo, com detalhes demais. Não que Yurio não sentisse falta de Nina, mas com Yuuri parecia algo tão maior e tão difícil de alcançar! Ele só não queria ver o padrasto triste daquela forma…

— A mamãe estava sempre linda. — Deixando a mochila pendurada nas costas da cadeira, Yurio tomou o assento ao lado de Yuuri. — Posso?

O dedo pálido apontava para o chá, pedindo permissão para tomá-lo, para fazer parte daquele momento. Era um tipo meio estranho de reunião de família e, por mais que não admitisse abertamente, Yurio não queria ser deixado de fora disso.

— É claro. — Mais atento ao redor, finalmente Yuuri percebeu os ponteiros do relógio marcando um horário cedo demais para seu filho estar em casa. — Voltou antes, hoje, aconteceu alguma coisa?

Ah, se Yuri ganhasse um rublo para cada pergunta que ele adivinhava…

— Disseram que era lição de casa, eu chamo de castigo — reclamou, bebericando o chá. Observando Yuuri de soslaio, percebeu que a atenção do padrasto não era mais nas fotos.

— Que tipo de castigo?

— Ah, o meu técnico! — Yuri não diria o nome de Victor enquanto este apresentasse uma ameaça. — Ele acha que eu não estou me expressando o suficiente no programa curto!

— Mesmo? — Tal como o enteado, Katsuki também estranhava aquela cobrança. — Você é um patinador excelente, o que falta?

— Falta “sentir” — desdenhou, reproduzindo as aspas com os dedos. — Segundo V-, ah, você sabe, o treinador — gaguejou, tratando de recuperar logo. — Ele disse que eu não me expresso o suficiente na parte artística. Acho que ele está me perseguindo.

— Também não é assim, Yurio… — Tentando apaziguar para o lado do pobre técnico, Yuuri deixou a caneca de lado. — Eles estão fazendo o melhor para te orientar e ajudar a crescer, foi por orientação deles que você saiu vitorioso da categoria júnior. E eles não estão assim tão errados em chamar sua atenção na parte artística, você entra no gelo com cara de quem vai morder quem tentar te tirar a medalha de ouro…

— Não entro, não! — protestou, teimoso em admitir aquele traço de sua insegurança agressiva.

— Está com essa cara agora! — Oh, certo, não tinha muito o que esconder do padrasto, tinha? — Mas não é algo impossível de melhorar, você sempre conseguiu superar tudo o que te foi sugerido todos esses anos, não é? Lembra quando você reclamou que nunca ia conseguir fazer um salto duplo e depois estava tentando fazer quádruplos sem supervisão? — Vendo por aquele lado, de fato, não parecia assim tão ruim…

— É, pode ser. — Plisetsky ainda estava contrariado, não podia deixar que vissem ter sido dobrado. — Mas nem sei por onde começar, ninguém me ajuda naquele lugar!

— Dependendo do que for, pode ser que não dependa deles te ajudarem, mas do seu próprio ponto de vista. — Yuri queria entender como seu padrasto sempre fazia as coisas parecerem melhores do que realmente eram. — O que você acha que sentir pode significar? Qual o tema do programa curto?

Yurio gostava de fazer de suas apresentações, surpresas para o padrasto, com desculpas como querer guardar o melhor até a apresentação, ou ver a reação de Yuuri quando os programas fossem executados. A verdade era que ele queria surpreender Katsuki e revelar o tema antes da hora, quebrava essa sensação de surpresa. Daquela vez, por outro lado, Plisetsky não estava muito empenhado em fazer daquilo um segredo, não quando sentia que não conseguiria sozinho descobrir o que faltava melhorar. O que era ágape?

— Ágape? — Surpreso, Yuri se deu conta de ter pensado tudo aquilo em voz alta. — É um tema muito bonito, Yurio! Qual a dificuldade?

— Ah, eu sei lá! Faço tudo direito, eu juro! Desde o começo da coreografia, as transições foram elogiadas até pelo Yakov! E Lilia nunca mais me segurou para nenhuma aula de reforço depois que eu melhorei o Biellmann!

— Então…?

Yuri hesitou um pouco antes de falar. Era difícil admitir aquilo tão abertamente, mas…

— Eu não sei. — … ele não fazia ideia do que Victor esperava. Sinceramente, Yuri não sabia nem o que esperava de si mesmo. — O que mais eu deveria expressar além de tudo o que eu já sei?

Yuuri ouviu a confusão do filho atentamente, sem demonstrar em nenhum momento reprovação ou divertimento com uma dúvida que pudesse ser banal. Ele nunca demonstrava nada que pudesse fechar Yuri ainda mais em seu casulo protegido de toda manifestação sentimental desnecessária.

— Ágape é o amor incondicional, aquele que dá sem esperar nada em troca — refletiu, o que não ajudava Yuri em muita coisa.

— A teoria é fácil, mas não posso recitar isso na apresentação. — Daquela vez, Yuuri riu, mas Plisetsky não conseguiu ficar chateado com o padrasto.

— Acho que você consegue expressar isso quando sente — explicou. — Patinar tendo em mente o que te desperta o sentimento. É assim que você explica ágape a quem assiste.

O tom usado por Yuuri, por si só, carregava toda a intensidade de ágape. Yuri agora conseguia entender um pouco melhor como se mostrava o sentimento, só faltava achar a demonstração abnegada que era ágape.

— E como eu acho isso? — Existia receio na pergunta, feita em voz baixa.

Existia medo em não ser amado daquela forma.

— Ora! — Virando a foto para o enteado, Katsuki mostrou o que para ele era óbvio: — Mas você cresceu cercado de ágape!

A foto era uma velha conhecida, entretanto, por mais que já tivesse a visto tantas vezes, sempre tinha algo novo a ser reparado. Estavam todos felizes naquela ocasião tão importante, ele ainda lembrava, mesmo borrado e um pouco distante, da correria que havia sido aquele dia, de vovô Kolya pacientemente passando a melhor camisa xadrez que tinha em seu guarda-roupa e da mãe aproveitando o calor da chapa cilíndrica do babyliss, para alisar o enrugado da barra do vestido curto, guardado há tantos anos que apresentava um tom amarelado, muito próximo ao bege. Ele também lembrava de estranhar os cachos feitos nas pontas curtas do cabelo loiro e de tê-los puxado com insistência a cerimônia toda até ver as pontas esticadas novamente, desmanchando metade do penteado da mãe, um desastre capilar registrado naquela foto, assim como o largo e incansável sorriso dela e de todos os presentes, com exceção, claro, de Yuri, rabugento desde pequeno. E mesmo arredio daquela forma, resmungando para tudo e reclamando a gravata no pescoço, Nina não deixava de sorrir. Ela não deixou de sorrir nem quando ele arruinou seu cabelo arrumado ou quando Yuri reclamou em alto e bom som, no meio da palestra do juiz de paz, como aquilo tudo era chato e ele preferia ir embora.

Nina nunca deixou de amá-lo, independente de toda a vergonha que a criança a fez passar ou as dificuldades e barreiras que encontrou por ter decidido levar sua criação até o fim. Ela sorriu enquanto lágrimas deixavam seus olhos, o deixando sempre confuso com o significado daquilo tudo, mas agora, Yuri conseguia classificar aquele misto de sorriso e choro como a corajosa demonstração em atos de ágape. Em um resumo muito simples, ágape era o sorriso incansável, nos mais diversos obstáculos da vida.

— Yurio? — Desperto da enfim compreensão do sentimento, Plisetsky olhou para o padrasto, pego de surpresa por algo tão presente em seus cotidianos, tão comum, que ele sentiu-se estúpido por não ter notado antes, por não ter, nas palavras de Victor, sentido antes.

Yuuri também, sempre lhe sorria.

— Eu acho que já entendi. — Abandonando a cadeira, Yuri puxou a mochila ali encostada, certo do que deveria fazer. — Vou voltar para o rinque!

— O quê? Mas por quê? — Sem conseguir acompanhar o raciocínio do enteado, tão ligeiro quanto o garoto que já estava no fim do corredor, Yuuri se viu deixado para trás, com suas fotos e canecas de chá. — Yurio?!

— Depois eu volto!!

Não houve tempo para Katsuki contestar.

Se nem Yuuri, seu padrasto, contestou, muito menos o faria Nikiforov. Entrando o mais silenciosamente possível no vestiário para não ser barrado e poder calçar o par de patins em paz, Yuri fez questão que pelo menos a entrada no gelo fosse triunfal — ou barulhenta, para ele era a mesma coisa. O intuito deu certo; Victor, que do lado de fora do rinque conversava com o mesmo garoto que Georgi orientava mais cedo, expressou o mais profundo choque assim que se deparou com Plisetsky na pista, espantado como se tivesse visto um fantasma loiro. Tão logo se recuperou do susto, Yuri percebeu que Victor suspirou, apoiando aquela enorme e reluzente outdoor que ele chamava de testa, em uma das mãos.

— Yuri, eu não pedi para você voltar amanhã?

— Eu já entendi ágape!

O sorriso que acompanhava aquela afirmação, não era convencido como era comum de Plisetsky. Tinha algo mais suave na postura competitiva do garoto, um brilho nos olhos atenuado pelo sorriso genuinamente contente. Não era bem o ágape que Victor havia dito, mas era uma mudança gritante em tão pouco tempo.

— Certo. Deixe Otabek terminar de passar a coreografia dele, depois você me mostra o que tem.

Concordando, Yuri deslizou até o canto do gelo, para onde Mila já o esperava cheia de perguntas para fazer. Era a primeira vez que Nikiforov percebia que Plisetsky não se importava em não ser o primeiro em alguma coisa.

.:.

Certos tipos de conversa exigiam preparo. Enganava-se quem pensava que esse preparo era algo superficial, quando na verdade todo o planejamento exigia múltiplas camadas. Era preciso tomar cuidado com o tipo de abordagem e o tom usado nela, pensar em todas as entonações usadas ao longo da conversa e estar sempre atento para qualquer alteração emocional da outra parte que exigisse um plano B ou até mesmo uma manobra evasiva. O local também era de extrema importância, de preferência um local reservado, quem sabe até a própria casa da pessoa intimada à conversa, uma forma de evitar a fuga do assunto.

Perfeito.

— Hey, Katsudon, posso te perguntar uma coisa?

Ter tudo tão detalhadamente esquematizado dentro de sua cabeça, contudo, não serviu de absolutamente nada, já que Yuri Plisetsky, em uma completa falta de noção, não desconfiou que iniciar aquela conversa no meio do corredor de frios e congelados do supermercado era uma péssima decisão.

— Claro, o que é? — A resposta de Yuuri foi automática. Depois de descobrir quão prejudiciais podiam ser as barras protéicas consumidas pela maioria dos atletas, cheias de conservantes, hormônios e partículas plásticas, Katsuki se tornou especialista em fórmulas e composições, um exímio leitor de rótulos que muitas vezes triplicava seu tempo de permanência em lojas e supermercados. Yurio queria aproveitar aquela atenção às embalagens para que sua vergonha não fosse flagrada. — Esse iogurte tem uma fórmula ótima, e os sabores vêm da adição de frutas frescas! Qual você vai querer?

O plano já dava sinais de insucesso. Mesmo sem ser sua intenção, Yuuri estava conseguindo fugir do assunto com sua lista de compras.

— Tanto faz… — Katsuki ignorou o enteado e colocou um sabor de cada no carrinho. Melhor sobrar do que faltar. — Sabe, a coisa que eu queria perguntar, não é para me achar estranho, hein?

— Ok.

— Nem para pensar alguma besteira, é só uma dúvida que eu tenho.

— Claro.

— Porque eu acho importante esclarecermos todo o possível, entende, para mantermos uma boa convivência.

— Uhum…

Yuri sentiu-se profundamente idiota quando se deu conta que o padrasto sequer o encarava enquanto o respondia monossilábico. Aquele leitão estava muito mais interessado nos rótulos químicos que no enteado!

Bom, talvez não fosse assim tão ruim, talvez significasse que ele também não estava se distraindo com nada além daquilo, Yurio podia enfim acalmar o coração e desconsiderar qualquer problema. Porém, ainda assim, tinha uma parte de si que queria tanto, que precisava tirar aquilo a limpo. Poderia ser em um momento mais propício? Bobagem! O corredor de um mercado caberia na proposta, não tão perfeitamente quanto gostaria, mas nada que não pudesse adaptar, era só ignorar os demais transeuntes, ninguém prestaria atenção na conversa. É, tinha tudo para funcionar.

— O que você acha de pessoas que namoram o mesmo sexo?

Quando seu deu conta, os olhos de Yuuri já estava fitando os seus. O padrasto não estava tão distraído quanto pensava…

— Normal. Há pessoas que gostam do mesmo sexo ou de ambos, há também aqueles que sentem atração independente disso, orientações que nem sempre cabem no resumo LGBT — explicou, com mais conhecimento do que Yuri podia prever.

— Então você não liga?

— Não. Eu namorei um garoto nos tempos de escola, sabe? — O vermelhidão nas bochechas de Katsuki se davam mais por ter confessado algo de sua adolescência que vergonha por usar a si mesmo como exemplo de bissexualidade. Pelo misto de emoções que Yuri não conseguia expressar direito, ele não sabia dizer o que o enteado queria.

— Então um namoro entre dois homens não seria um problema para você?

— De forma alguma. — Os olhos verdes de Yuri estava arregalados e ele parecia muito perdido para continuar sozinho. Suspeitando o que o garoto queria dizer, Yuuri tomou a iniciativa de perguntar; — Você está gostando de algum garoto?

Depois de poucos segundos absorvendo a pergunta, a expressão de Yuri se transformou de receosa para horrorizada, e ele quase saltou mais alto que as prateleiras pelo alarde.

— O quê?! É claro que não! Eu não tenho tempo para essas besteiras, sou um patinador!

Onde já se viu Yuuri pensar que o enteado tinha tempo para se dedicar a algo além da patinação artística?! Um ultraje!

— Ora, você veio com esse assunto, eu pensei que estava esperando algum apoio, conselho…

— Conselho? Seu? — desdenhou de brincadeira. — Foi minha mãe quem te pediu em namoro, tenho certeza!

— Hey! — protestou Yuuri, seguindo o filho que acabara de se afastar do setor congelado. Ao recordar como havia sido uma das etapas de seu relacionamento com Nina, ele acabou se dando por vencido. — Certo, foi ela quem me convidou para sair pela primeira vez, mas fui eu que tomei a iniciativa de beijar ela antes.

— Que nojo! — A cena imaginária daqueles dois trocando saliva, encheu Yuri de repulsa. Como adultos podiam ver uma demonstração de amor nisso?

— Então, vai me dizer por que quis saber minha opinião sobre isso?

Uma coisa que Plisetsky fazia com frequência, mesmo com lembretes imaginários tentando orientá-lo o contrário, era sobre como Yuri subestimava demais a perspicácia de Katsuki. Era óbvio, como tudo quase sempre foi para o japonês, que ele não deixaria nada daquilo passar em branco. Se Yurio tinha uma dúvida, seu padrasto queria saber qual era, mas ele jamais poderia dizer que sua dúvida era muito mais o receio de saber, agora, que seu técnico tinha chances reais com Yuuri. O namoro daqueles dois seria um pesadelo, a simples ideia daquilo acontecer já estava sendo um.

— Ah, só curiosidade… — mentiu, enfiando a cara em uma embalagem brilhante qualquer. — A Mila comentou que têm alguns parentes que não aceitam o filho homossexual e eu fiquei pensando se talvez não era seu caso, só isso.

— Essas coisas são complicadas… Infelizmente, não são todas as pessoas que entendem ou que querem mudar uma visão preconceituosa. — Calado, Yuri concordou, um pouco culpado pela pequena mentira. — E você teria algum problema com isso?

O rosto de Nikiforov surgiu em sua mente, tomando todo o espaço e quase forçando caminho para fora. O problema com certeza não estava no gênero da pessoa, mas com certeza morava na pessoa.

— Depende. — Sim, dependia muito do Nikiforov envolvido na questão. — Se a pessoa fosse insuportável, eu bateria em vocês dois, nela por ser chata e em você por ter escolhido tão mal. — Yuuri riu alto, não esperando aquela resposta.

Na verdade, Yurio não queria nem pensar no padrasto namorando Victor ou qualquer outra pessoa que pudesse distraí-lo. Imagine só, aquele porco mal sabia andar por São Petersburgo sem Yuri por perto, se o japonês se envolvesse em alguma paixonite, Plisetsky teria que andar pelas ruas com o padrasto em uma coleira!

(Porque aquela era a única preocupação dele, claro.)

— Mas me conta — pediu Yuri, fugindo daquelas ideias melosas que o deixavam fraco. — Como foi namorar esse garoto dos tempos de escola?

— Uma droga. — Divertido pela careta do padrasto, Yuri sorriu. — A pior experiência da minha vida, eu não tinha maturidade nenhuma, devia ter ouvido quando me avisaram! Teve uma vez…

E enquanto destilava veneno sobre seu mais traumático caso passado e lamentava a própria imaturidade para lidar com um namorico de ensino médio, Yuri ouvia a tudo com um riso nos lábios, satisfeito por terem deixado aquele assunto espinhoso no setor de congelados.

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Se na compreensão grega do amor existiam tantos nomes e significados, Yuri Plisetsky estava curioso para saber se existia algum significado para desespero. Onde estava seu padrasto?!

Aquele seria o primeiro campeonato do qual participaria, a competição regional de São Petersburgo que revelaria quão apto estaria Yuri pela corrida ao Campeonato Europeu. A pedido de Georgi, ele deveria estar no local da competição com pelo menos uma hora de antecedência e, de acordo com o horário marcado na tela inicial de seu celular, faltava exatamente os sessenta minutos para a apresentação e Yuuri ainda não havia chegado para buscá-lo. E se ele tivesse se esquecido?!

Eu sempre assisto às suas apresentações!”

Lembrar daquela afirmação não estava ajudando em nada. O combinado havia sido Katsuki buscá-lo após o expediente para que juntos eles fossem até o ginásio onde aconteceria a competição. Enquanto aguardava o padrasto, Yurio usaria as horas antes do campeonato para realizar o aquecimento na escola onde costumava treinar, onde teria a pista toda disponível para repassar a coreografia. Popovich o supervisionaria um pouco antes de precisar se ausentar para representar Yakov e deixaria que o aluno fosse depois, junto ao padrasto. O plano era simples e havia sido repassado ao longo do mês inteiro por Yurio, mas pelo jeito não havia sido o bastante. O leitão de seu padrasto não estava ali ainda e Plisetsky não sabia se tremia de frio ou de nervoso.

O celular vibrou em sua mão e por pouco não passou despercebido. Sua esperança estava por um triz, assim como a bateria do telefone, e esgotou-se por completo quando ele viu a mensagem de Mila o questionando com emojis demais, onde ele estava.

— Abandonado no meio da rua!! — foi a resposta mal educada gritada para o nada, dada antes que desligasse o aparelho e poupasse a carga restante.

Talvez fosse melhor voltar para dentro da escola, pedir o telefone da recepção e tentar ligar para o padrasto mais uma vez… Mas e se Yuuri ainda estivesse ocupado? Merda! Por que aquele leitão estava sempre aceitando o que o impunham goela abaixo, sem nunca negar os trabalhos extras?! Por que Katsuki tinha sempre que ser tão certinho?!

— Yuri? — Ter uma voz totalmente desconhecida o chamando, arrepiou a nuca de Yurio. Com sua melhor cara invocada, ele olhou para o rapaz poucos centímetros mais alto, questionando naquela careta quem era o intruso e como ele sabia seu nome. — Está tudo bem?

— Por que quer saber?

Com o que parecia ser um grande ponto de interrogação imaginário em cima da cabeça, o rapaz arqueou uma das sobrancelhas, não entendendo o comportamento arredio.

— Bom, você parece nervoso…

— Eu tenho um par de patins na bolsa!

Aquela era a ameaça mais aterrorizante que Yurio tinha no momento. As lâminas não eram como facas, mas era tipo um parente meio próximo, devia servir.

— É, eu também. — O rapaz puxou a jaqueta, mostrando o emblema da escola de Yakov em seu peito.

— Ah… — murmurou em um fio de voz. O mal encarado era de confiança? — Você é novo aqui?

Yurio ignorou totalmente que era ele o próprio mal encarado. Detalhes, detalhes...

— Não lembra de mim? — o rapaz estranhou, um pouco de decepção na voz. Diante da estranheza de Yuri, ele percebeu ser mesmo necessário se apresentar. — Otabek Altin, sou da equipe do Victor, mas costumo treinar no mesmo horário que você às terças-feiras.

— Ah é?

— É… Apresento hoje, inclusive. — Para reforçar aquela afirmação, Otabek puxou o crachá de dentro do casaco, exibindo as credenciais e a bandeira do Cazaquistão. — Represento meu país.

Algo na frase de Altin despertou as lembranças de Yuri, que fez um imenso alarde interno, expressado nos olhos muito arregalados. Agora sim ele se lembrava de onde conhecia o outro garoto, só não podia dizer as circunstâncias… Ficaria muito feio para Mila se Yuri dissesse ao cazaque como a ruiva era admiradora de suas nádegas — e das fotos clandestinas que havia tirado delas.

— Está esperando alguém?

A breve distração de seu nervosismo só serviu para piorar    o sentimento quando Yuri voltou a pensar nele. A preocupação visível em mais uma de suas tantas caretas era algo para provocar risos, mas Otabek não estava disposto a tentar a sorte, Yuri ainda tinha o par de patins na bolsa.

— Até ele chegar, a apresentação já terá acontecido!

— Se você quiser carona — ofereceu, mostrando o capacete que levava encaixado em um dos braços. — Eu estou indo para lá agora. Tenho um capacete extra, também.

Aquilo só podia ser um final, um bondoso sinal que o divino estava dando a Yuri, a chance de ser salvo do atraso de Yuuri e chegar no local da competição a tempo de disputar o ouro.

— Se não quiser, tudo be-

— Vamos logo!

Yuri não podia deixar que o cazaque mudasse de ideia. Andando em direção onde pensava estar a moto, ele seguiu sem rumo até Altin apontar para o lado contrário. Nada que Plisetsky não pudesse ignorar e fingir que não aconteceu.

Entretanto, ainda tinha algo que o incomodava, a incerteza do abandono que levantava uma única e dolorosa questão; Yuuri teria esquecido dele?

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Victor gostava de contornar as acusações de seu atraso com o presunçoso argumento de que ele fazia os próprios horários. Parafraseando Gandalf em um dos intermináveis filmes de O Senhor dos Anéis que seu pupilo Altin adorava, ele nunca chegava atrasado ou adiantado, Victor chegava exatamente quando pretendia chegar, ou algo do tipo.

Ou será que o filme era O Hobbit? Precisava perguntar para Otabek, depois.

Fato é que faltava cerca de meia hora para o início da competição e ele não estava lá. Atraso? De modo algum, seu aluno entraria apenas no penúltimo grupo, Victor tinha tempo de sobra até lá, não tinha necessidade de assistir outros competidores sem talento, orientados por treinadores com o qual não tinha a menor simpatia. Interação e educação com aquele tipinho esnobe era tarefa — ou sacrifício — de Georgi, que Deus o ajudasse. Além disso, Victor tinha que cuidar da deliciosa e divertidíssima (mas não) parte administrativa da escola e usaria do tempo livre antes do programa de Otabek para enfiar o calhamaço de papéis no fundo da pasta e levar para casa depois. Quem disse que quanto mais se estuda, menos trabalha, havia mentido em escala estratosférica.

Mal ele colocou o pé no freio, seus olhos perceberam uma agitação asiática que ele não conhecia tão bem quanto gostaria, mas ainda roubava sua atenção de vez em quando. Yuuri Katsuki andava de um lado para o outro com as velhas botas de lã arrastando pela calçada, enquanto trazia o celular colado à orelha. Pela expressão dorida, algo não estava certo.

Estacionando o carro do outro lado da sua e se lembrando dessa vez de trancar o veículo, resultado das constantes insistências do patinador cazaque, Victor se aproximou como quem não quer o telefone do pai de um de seus alunos, espantando-se ao perceber as lágrimas ameaçando cair dos olhos puxados.

— Yuuri? Aconteceu alguma coisa?

— Victor! — deixando que o celular, emitindo em loop a mensagem gravada de número fora da área de cobertura, caísse no chão, Katsuki agarrou a lapela do casaco escuro com tamanha força que parecia estar se escorando para não cair. — O Yuri! Você viu o Yuri?!

Desconcertado pela voz quebrada do pedido desesperado, Victor só conseguiu dar seu silêncio como resposta e isso revelava o que Yuuri mais temia, a falta de notícias de seu filho.

— Meu filho… — Soltando a roupa de Victor, ele cobriu o rosto com ambas as mãos, mas infelizmente só aquilo não servia para apagar todas as opções catastróficas que sua mente imaginava. E se tivessem o sequestrado? E se ele tivesse ido sem Yuuri, acabando atropelado no meio do caminho? Ele já podia imaginar o enteado estirado no meio da rua e o resgate sem ter como contatá-lo. — Eu perdi o meu filho…

— Yuuri, calma, tente me contar o que aconteceu…

Indo de um extremo melancólico ao outro, Katsuki voltou a encarar Nikiforov com os olhos arregalados de puro pavor, a respiração acelerada piorando à medida que o japonês se entregava ao desespero.

— Nós tínhamos combinado de nos encontrar aqui antes da apresentação, mas o Yuri não está aqui, ele não está em lugar nenhum! Ele não está no rinque, não está no vestiário, não está me esperando! E ninguém dessa merda de lugar viu o meu filho!! — Gritando, revoltado para a fachada da escola, Yuuri tentava buscar alguém a quem culpar, quando era ele quem se sentia o único culpado.

— Será que ele já não foi para o ginásio onde terá a competição? — Agitado, Yuuri negou com todos os gestos que sabia.

— Yuri não iria sozinho, passamos o mês todo combinando isso!

— Certo, certo… — Tentar acalmar o japonês não estava dando certo… — Já tentou ligar para ele?

— É lógico que eu já tentei, seu imbecil! Você acha que eu sou que tipo de idiota?! O que você acha que eu estive fazendo até agora?! — Ouch! Que resposta! E Yuuri pareceu se dar conta rápido demais do que tinha falado. — Céus, não, me desculpe… — Se afastando, ele tentou recuperar a calma, totalmente em vão. — Eu não queria ter gritado, me desculpe, eu não queria…!

— Tudo bem, eu entendo que esteja agitado… — O susto havia sido grande, mais por nunca ter imaginado o sempre calmo e pacífico Yuuri chamando alguém de “imbecil” do que por falta de costume com gritos. Ele conhecia Yakov há anos, já estava vacinado. — Você veio de veículo próprio?

— O quê? N-não, eu vim de táxi, mas até o motorista desistiu de mim e foi embora…

— Certo, venha comigo então, podemos dar uma volta e buscar por ele, se quiser.

A sugestão não foi sequer contestada. Ainda com lágrimas nos olhos, Yuuri prontamente concordou com gestos nervosos e ligeiros; se abrisse a boca para demonstrar quão grato estava, acabaria por chorar ali mesmo.

O silêncio dentro do carro estava próximo de ser fúnebre, com direito a soluços baixos e lamentos murmurados junto a pedidos em outro idioma, que bem poderia ser uma oração. Assim como o pai do garoto, Victor esperava que Yuri estivesse bem. Sua preocupação com o aluno se intensificava à medida que as ruas vizinhas cresciam para quarteirões inteiros sem um único rastro da jaqueta tigrada. Yuuri segurava o celular, arranhado pela queda presenciada por Victor e tantas outras antes que ele não tinha visto, quase quebrando o aparelho pela força usada. Então aquele era o reflexo de se ter um filho?

Levado pela emoção e por quatro diferentes cabeleiras loiras, Victor viu os olhos puxados de Yuuri encherem-se de esperança, para tornarem-se novamente opacos pela desilusão. Era doloroso vê-lo daquela maneira. E se Yurio estivesse mesmo perdido? Estaria na mesma situação que o pai?

— Eu queria tentar procurar pelo meu filho no nosso apartamento. — A voz de Yuuri quase não existia mais, um murmúrio jogado apressado, evitando provocar o choro mais uma vez. — Se você não se importar, será que poderíamos…?

— É claro — Victor seria incapaz de negar qualquer coisa a Yuuri naquele momento. — Apenas me indique o caminho.

O percurso para o apartamento alugado deu a oportunidade de Nikiforov assistir o japonês ser quebrado de novo e de novo. Se prestasse atenção, conseguiria ouvir todos os cacos se partindo e caindo, empilhando-se em um amontoado cristalino de vidro e lágrimas. Mãos nos olhos, dedos apertados em volta da cabeça em uma desesperada tentativa de conter ali dentro a crise ansiosa que ainda o mataria… Victor já estava quase começando a se quebrar, também.

Chegando em frente ao prédio, Yuuri deixou o motorista para trás com um agradecimento entrecortado, correndo até a entrada e desaparecendo assim que passou pela porta. Esparramando-se contra o encosto acolchoado, Victor respirou fundo, sem saber se contatava Georgi para informar o ocorrido, ou a escola, para saber se Plisetsky por acaso havia voltado.

No que parecia a vida escolhendo por ele, o celular de Victor vibrou com a ligação recebida, o nome da escola quicando na tela, aguardando atendimento. Respirando fundo, engolindo o coração quase saltando pela boca, enfim atendeu;

— Nikiforov na linha.

Victor, aqui é a Lana — identificou-se uma das garotas da recepção. — Recuperamos algumas imagens da entrada da escola e, ao que parece, o aluno Yuri Plisetsky deixou o local de moto, na companhia de uma pessoa que ainda não conseguimos identificar.

Provavelmente contagiado pela preocupação de Yuuri, Victor pensou os piores cenários possíveis para aquela informação.

— Você tem certeza?

As gravações que antecedem a partida dele ainda não foram recuperadas, quem cuida da sala de segurança saiu, levou a chave e não sabemos quando volta. Infelizmente é a única informação que podemos dar no momento, desculpe, Vitya…

E agora? O que ele diria a Yuuri?

— Certo, Lana, obrigado pelas informações. Se souber de mais alguma coisa, por favor, me avise, eu também ficarei alerta.

Pode deixar.

Paralisado pelo medo que aquela notícia havia lhe dado, Victor continuou olhando para a tela apagada do celular, sem ter forças para sair daquele estado catatônico. Eles nunca haviam passado por uma situação como aquela, nem dentro da escola, nem fora dela. Sequestros e crimes do tipo volta e meia apareciam na televisão, mas ninguém esperava ver isso acontecer de tão perto, parecia uma realidade tão longínqua! E agora? Como passar aquela informação para Yuuri? Deveria avisá-lo logo ou esperar uma notícia mais animadora? Aquele pai já estava tomado pela aflição, diante de uma notícia daquelas, Victor não imaginava como ele poderia ficar…

Esforçando-se para manter a calma e reagir antes que Yuuri voltasse, Victor buscou pelo nome de Georgi e digitou uma mensagem rápida. Não estava em condições de falar para manter uma conversa e Popovich em uma hora como aquela deveria estar lidando com os patinadores.

“Gosha, imprevisto, você pode acompanhar Otabek no programa curto?”

Prontamente a mensagem foi visualizada. Nikiforov apenas torcia para que Georgi não quisesse saber qual era o imprevisto.

“Aconteceu alguma coisa séria, Vitya?” Por que ele ainda se iludia? “Se não se importa, eu vou passar esse favor ao Yakov, estou cuidando de Plisetsky, agora, ele não parece muito bem.”

Victor levou alguns segundos para entender que Plisetsky era o mesmo Plisetsky que ele estava ajudando a procurar. Era como levar um soco e só no chão entender de onde o punho tinha vindo. Ele queria estar aliviado, mas só conseguia expressar alarde e indignação quando finalmente conectou a localização de Yuri com a informação passada por Lana: o garoto foi visto pela última vez pegando carona em uma moto. E logo quem havia sido extra o bastante para presentear o aluno com uma Harley-Davidson que Victor apenas comprou porque era a única marca de moto que sabia de cabeça? E logo quem ele tinha presenteado?

“Avise Altin que ele está de castigo, um mês sem aquela moto.”

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A roupa branca lhe caía bem, o fazia parecer um anjo — aquelas eram as palavras cafonas do próprio Yuuri quando levou o enteado para a prova final de seu figurino para Ágape. Katsuki esteve ao lado de Yuri desde as medidas, acenando e sorrindo para o croqui da roupa e amostras de tecido, elogiando as provas quando a roupa não passava de um punhado de alfinetes marcando pontos a serem feitos e barras para ajuste.

Yuuri esteve lá desde o começo, e quando Yurio pensava em começo, era carregado para lembranças anteriores a São Petersburgo, anteriores à sua dedicação ao gelo, anteriores à tragédia que os deixou sozinhos no mundo. Podia não ser exatamente o começo propriamente dito, uma vez que ele já tinha dois anos quando Katsuki chegou em Moscou, mas, como Nina teria sido de acordo, tudo de fato começou ali, naquele inesperado encontro na Praça Vermelha. Sua idade tão prematura não o permitia recordar tudo, mas tudo o que ele era capaz de lembrar, tinha o rosto do padrasto. Ele se lembrava de Yuuri orientando alunos no gelo enquanto a mãe suspirava do lado de fora do rinque, se lembrava de Nikolai o ensinando a preparar piroshki, se lembrava de todas as tentativas de conversa que Yurio não tinha muito interesse em manter e das vezes em que Katsuki o colocou em seus ombros para que a criança tivesse altura o suficiente para alcançar o topo do pinheirinho de ano novo que o japonês mantinha em seu apartamento, onde ele havia encaixado de forma torta, uma estrela cintilante. A estrela permaneceu torta durante todo o tempo em que a árvore esteve armada.

Yuri se lembrava de como ficava bravo quando Yuuri dormia antes do fim de seus desenhos favoritos e da forma que ele segurava sua mão, quando decidia junto de Nina, erguer a criança do chão, em uma das raras brincadeiras que faziam Plisetsky sorrir. E ele se lembrava, principalmente, como foi difícil soltar aquela mão em seu primeiro dia de aula de volta à uma Rússia sem Nina Plisetskaya-Katsuki. Mas, por pior que fosse estar recomeçando, Yuri conseguia ver o padrasto, não importando para onde ele olhasse. Yuuri o esperava do lado de fora das escolas, o esperava nas compras, em casa com algo para comer, sempre ali, cumprindo em gestos a promessa feita há muitos anos:

“Eu nunca vou te abandonar…”

— Yuri, você não precisa entrar se não estiver bem para isso.

Yuri sentia-se patético por estar preocupando Popovich daquela forma, por estar tão abalado que as pessoas estavam notando isso. E tudo isso porque, pela primeira vez em sua jovem existência, Yuuri Katsuki não estava lá.

— Eu posso fazer isso.

— Não duvido que possa, Yuri, mas você não está nada bem… — As palavras eram consoladoras e o olhar suave. Georgi não o condenaria se ele simplesmente se fechasse no vestiário e só saísse de lá quando não houvesse mais ninguém para testemunhar sua desistência. — Não quer me contar o que está sentindo?

Rejeição? Abandono? Vontade de chorar? Menos mal Georgi pensava que suas dores eram físicas.

— Ficarei melhor depois que apresentar — garantiu, trancando o emocional por trás do semblante tenso. Era assim, era sempre assim que ele escondia o que sentia. — Estou pronto.

Não houve tempo ou argumento de Popovich que fizesse o garoto reconsiderar. Com pressa, Yuri seguiu para o rinque, sendo recepcionado ao lado dos outros competidores com uma tímida salva de palmas. Enquanto fazia o reconhecimento da pista, ele aproveitou para repassar alguns elementos da coreografia e, o mais discretamente que pôde, buscar pelo padrasto em alguns dos tantos presentes com seus rostos colados aos celulares e filmadoras.

Nada.

Pedimos que os demais competidores deixem o rinque, agora, para darmos início à apresentação deste último grupo. — A voz no auto-falante ecoou por todo o ginásio. — O primeiro a se apresentar será Yuri Plisetsky, de quinze anos, que tem como tema In Regards to Love: Ágape.

O programa de Yuri tinha quase tudo; o garoto possuía técnica, agilidade, altura nos saltos, flexibilidade brindada pela idade e transições polidas, o melhor que os treinamentos de Feltsman podiam lapidar. No entanto…

“Eu nunca vou te abandonar…”

Faltava o ágape.

O rosto sério e os olhos apertados, mascaravam quão desolado estava Plisetsky, perdido em memórias que deveriam ser o significado do tal amor abnegado, que não ocupava nenhum dos lugares vagos na plateia. “Eu sempre assisto às suas apresentações”, é? Existia uma exceção para aquele “sempre”?

Houve aplauso no fim da apresentação, ovações em forma de assobio e pelúcias consideráveis, mas a amargura em seu rosto não melhorou nem com os agradecimentos no Kiss and Cry. Ele podia ouvir um burburinho ou outro sobre sua inexpressividade e já esperava, preparado para perder pontos na parte artística, quando a nota foi mostrada, uma pontuação capaz de sobrepor-se a doze competidores, mas que não era o bastante para alcançar as três primeiras colocações. Yuri Plisetsky ocupava o quarto lugar e ainda faltava a participação de cinco patinadores. Ele jamais chegaria naquele pódio.

E Yuuri ainda não estava lá.

— Você foi ótimo, hoje — elogiou Georgi, mas não importava quão sincero era aquele apoio, Yuri não estava feliz. — Vamos, você pode sorrir um pouco, agora…

Não era sua intenção ser grosseiro com Popovich ao ignorá-lo, nem deixar uma frenética Mila saltitando de empolgação e pedindo para ser apresentada formalmente ao herói do Cazaquistão falando sozinha, mas estava tão abalado… Tão triste e irritado… Ele sabia que Yuuri não ficaria para sempre por perto. Se nem sua família de sangue ficou, por que um leitão japonês ficaria?

Sem serem capazes de saber o que se passava dentro da cabeça e coração do jovem estreante da categoria sênior, muitos interpretaram seu afastamento como desgosto pela quinta colocação conquistada ao fim do primeiro dia, a soberba de um garoto inconformado com a diferença de nota de uma categoria para outra. Se ao menos Yuuri estivesse ali…

— Yuri!!

Seu nome sendo chamado pela voz do padrasto foi o suficiente para desestabilizá-lo de sua auto-piedade. Ignorando todas as pessoas a sua volta, ele buscou por Katsuki, girando o pescoço para todos os lados, ousando sentir-se feliz e até mesmo sorrir quando enfim localizou Yuuri.

— Onde você estava?! — pediu em voz aflita.

— Onde você estava?!

Notar que o tom usado pelo padrasto era muito diferente do que ele estava acostumado, foi a pior experiência experimentada por Yurio em todos aqueles anos sem Nina, pior até que o sentimento de fracasso após a porca execução de seu ágape. Yuuri jamais havia usado tal tom colérico com ele antes, muito menos franzido as sobrancelhas daquela forma, verdadeiramente irritado enquanto gritava um sermão nervoso sobre sua irresponsabilidade, que misturava repreensão com o pânico de qualquer besteira trágica que apenas a cabeça daquele Katsudon medroso podia exagerar.

— Nós tínhamos um combinado, Yuri, você não cumpre com suas promessas?!

Quem ele pensava que era para brigar com Yuri daquele jeito?

— Foi você que não cumpriu com a sua, Katsudon!!

Logo ele que não esteve lá quando o enteado mais precisou?

— Victor e eu rodamos metade dessa cidade buscando por você, Yuri! E você nem para se dar o trabalho de tentar me avisar que tinha aceito carona de outra pessoa!

Logo ele que depois de prometer não abandoná-lo, havia feito exatamente assim?

— Não foi minha culpa, você não chegava nunca!

Yuuri Katsuki não tinha esse direito!

— Pra quê você carrega esse celular, se quando a gente precisa falar com você, ele está desligado?!

Yuuri Katsuki não deveria sequer existir!

— Não grite comigo!

Yuuri Katsuki não era relevante!

— Não tentou me avisar, não avisou a escola, não avisou seu técnico…!

Yuuri Katsuki era um desperdício em sua vida!

— Pare de gritar!!

Yuuri Katsuki era um intruso em sua família!

— Você deve explicações para todos nós!

Yuuri Katsuki não era nada!

— Você não manda em mim!

Yuuri Katsuki não tinha direito de nada!

— Se acha tão adulto assim, então comece a se comportar como um e assuma seus erros!

Yuuri Katsuki não era…!

— Você não é o meu pai!!

Yuri Plisetsky não queria ter dito aquilo.

Seu impensado acesso de fúria calou o padrasto e quem mais conseguiu ouvir. Não existia mais nenhuma troca de gritos e, desarmados pela discussão, também os técnicos não sabiam como lidar com aquilo, uma novidade desconcertante em suas carreiras.

Era a primeira briga entre Plisetsky e Katsuki desde sempre. Já aconteceram castigos por desenhar na parede antes, o completo silêncio e desprezo por parte do menor quando Yuuri chamou sua atenção no meio do shopping certa vez, mas nada daquele jeito. Parecia muito grave. Havia sido assim tão ruim? Yuri não conseguia olhar para o padrasto, mas quem sabe uma espiada, apenas para saber o que tanto havia estragado daquela vez, quão encrencado ele estaria… Não tinha tanto o que temer, Yuuri Katsuki sempre foi uma boa e compreensível alma, Yuuri Katsuki chegava até a ser bobo de tão bom que era, Yuuri Katsuki...

...Yuuri Katsuki estava chorando.

Há quanto tempo Yuri não o via chorar? Um ano? Dois? Pra quê fingir não saber? A última vez que Katsudon derrubou lágrimas como aquelas, foi quando lhe contou sobre a morte de Nina. Yuuri era a única pessoa que de todas as quais ele foi apegado, permaneceu ali, do lado, para qualquer emergência que tivesse. Foi ele quem desistiu da possibilidade de uma vida normal no Japão, que assumiu o filho da esposa falecida, que se desdobrou de inúmeras formas para criá-lo, um moleque pirracento e difícil que havia anulado todos aqueles anos de sacrifício ao ser, mais uma vez, ingrato. Como seu dedushka podia amá-lo? Como a mãe podia amá-lo? E por que Yuuri o amaria? Ainda mais agora?

Yuri correu; queria fugir, sair correndo para longe daquele ginásio, fugir de São Petersburgo, se perder na Sibéria e nunca mais precisar voltar. O máximo que ele conseguiu foi se trancar no vestiário e nenhuma só pessoa conseguiu tirá-lo de lá, nem mesmo Yuuri e seus incansáveis pedidos emocionados — simplesmente não dava para acreditar na sinceridade de ninguém, naquele momento.

Depois de muito insistir, chorar e implorar, o melhor a se fazer foi se render ao cansaço e aos conselhos recebidos e deixar que o tempo tomasse a decisão. Com o coração pesado, ambos aceitaram que aquele dia não podia mais ser salvo. Ambos temiam que nada mais pudesse ser salvo.

Aquela foi a primeira vez que Yuuri voltou para casa sem Yurio.

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O dormitório de Otabek conseguia ser mais simples que qualquer outro, ainda que o desenho de todos os quartos fosse exatamente o mesmo. Com exceção a um pôster de uma enorme motocicleta atrás da porta e um ursinho de pelúcia em cima do gaveteiro bege, o cômodo era simples e bem organizado, sem nenhuma decoração que o diferenciasse.

Yuri não conhecia nenhum outro cômodo além do de Mila, mas ele era tão enfeitado e decorado que parecia até um anexo da casa da garota ali encaixado, com fios brilhantes em volta da cortina azul com estampa de galáxia, luminária giratória de um globo purpurinado, muitas fotografias em um varal de pisca-pisca e a eterna bagunça na cama de solteiro, isso sem falar do guarda-roupa que não fechava a porta, devido a zona de roupas dentro dele. Com certeza a paixonite de sua amiga — ou crush, como quisessem chamar — era mais organizado que ela, ou talvez tivesse menos roupas, Yuri que não abriria a porta para conferir.

— Acha que ficará bem, aqui?

Por menos que quisesse admitir, Victor estava sendo bom para ele. Podia ser por causa de Yuuri, mas Plisetsky não queria lembrar disso no momento.

— Fico sim, obrigado. — Em nenhum momento o garoto ousava olhar diretamente para o técnico.

— Vou puxar a orelha de Otabek por ter te arranjado problemas, prometo. — Aquele era um compromisso sério, que Victor estava mais do que disposto a cumprir.

— Não precisa, a culpa foi minha.

Era muito difícil lidar com uma juventude que carregava tantas responsabilidades sobre os ombros. Não que com Nikiforov e Popovich tivesse sido diferente, mas eles conseguiam fugir — literalmente — quando precisavam de um pouco de ar, respirar fundo daquela rotina sufocante, resgatar a si mesmo do cotidiano. No entanto, eles ainda tinham para quem correr em caso de um joelho ralado, um braço deslocado — proezas de Cialdino… — ou chiclete colado no cabelo, uma das maiores tragédias da vida de Victor.

Plisetsky era um sortudo caso de pessoas que possuem família, um lar, um abraço apertado para pertencer, mas naquele momento, ele não parecia acreditar nisso, como se a briga com o pai tivesse sido o último contato com Katsuki, para nunca mais. Victor nunca tinha visto algo daquele jeito antes.

— Diga para ele que eu agradeço pelo quarto.

— É o mínimo que Beka poderia fazer depois de participar indiretamente do mal entendido. — Nikiforov não estava assim tão chateado com seu protegido, mas precisou puni-lo sem a moto, por mais que doesse por o garoto de castigo. Ele precisava repreender o jovem, ou as pessoas não o levariam a sério como adulto; n o caso, o adulto era para ser Victor. — Já falou com seu pai? — Calado, Yuri continuou sem olhar para o mais velho. — Ele vai gostar de ter notícias suas.

— Ele foi embora.

— Por insistência minha e de Georgi — esclareceu logo, evitando que a ideia de ter sido deixado de lado se estendesse por mais tempo. — Você se recusava a deixar o vestiário, trancou-se em uma das cabines do banheiro e disse não querer ver ninguém… — À medida que falava, ele percebia o aluno se encolhendo. — Achamos que seria melhor te abrigarmos em um dos nossos dormitórios, já que é nosso aluno e temos responsabilidades por você, na ausência do seu responsável.

— Ele… Ele não disse nada?

Por pior que fosse lidar com Yuri Plisetsky, algo nele era facilmente identificável, o medo. Ele nunca demonstrava essa fraqueza, por isso era simples de notar esse desequilíbrio em sua fachada forte e independente. Daquela vez, ele estava com muito medo.

— Ele ficou quase duas horas conversando com o Georgi, mas eu não sei nenhum detalhe além o dele estar muito preocupado com você.

— Eu duvido. — E aquela recusa em acreditar na preocupação paterna estava carregada de remorso.

— Palavras de Georgi Popovich, você não acredita nele? — brincou, sem obter resposta. — Sabe que na primeira vez que eu vi o seu pai, ele estava muito ocupado comprando coisas para você, pra me dar atenção? — Yuri lhe ofereceu um olhar de esguelha, mostrando estar atento à informação. — E na segunda vez ele estava quase abraçando o pacote de ração da sua gata, de tanta saudade do filho longe! Você tinha que ver como ele falava de você, até mostrou uma foto!

— Uma foto?! — A surpresa era curiosa, animada e um tanto vergonhosa.

— Oh, me desculpe, acho que Yuuri disse alguma coisa de você achar “um mico” toda essa coisa de foto com o pai, ou algo do tipo…

Yuri considerou cada uma daquelas informações, completamente novas. Embora não gostasse muito da ideia de Victor ter esbarrado em Katsuki mais de uma vez fora do ambiente escolar, existia valor naquela confissão. Ele terminaria de arrancar os cabelos prateados de Victor se aquilo fosse mentira.

— Por que não liga para ele? — Sorrindo, como quem não planeja nenhuma estratégia para reconciliar o abalo na relação pai e filho, Victor sugeriu.

O telefone estava na mão de Yuri, bastava buscar o contato de Katsuki, era o primeiro da lista...

— Talvez amanhã. — ...mas Plisetsky não fez isso.

— Como achar melhor. — De acordo e sem ter como convencê-lo do contrário, Victor se deu conta que nada mais tinha o que fazer ali. Como aprendeu há muito tempo, era melhor deixar para o tempo decidir. — Até amanhã, Plisetsky. Estaremos te esperando no refeitório.

Com um concordar tímido, ele se despediu em silêncio, observando a porta se fechar e podendo ouvir o eco do longo corredor carregar os passos de Victor para longe. Era um lugar muito grande para quem estava acostumado a espaços pequenos. Espaços pequenos com Yuuri Katsuki.

Deitado na estranha cama de solteiro, Yuri reviveu a briga daquele dia em uma dolorosa sequência emendada uma na outra, a culpa recusando-se a deixar sua mente até, exausto, ele dormir.

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Yuuri estava com muito sono para abrir os olhos, mas desperto o suficiente para não conseguir mais voltar a dormir. O conhecendo muito bem, Nina riu preguiçosamente, fazendo o marido sorrir também ao senti-la se espreguiçando de forma contida para não sair do abraço, se aconchegando para mais perto. Eles adoravam poder passar mais tempo daquele jeito, deitados sem fazer nada, apenas aproveitando a falta de responsabilidades de um domingo de manhã. Ainda era domingo, certo?

Ainda de olhos fechados, sentia a respiração da esposa próximo a seu rosto, dado os centímetros que Nina possuía a mais que ele, e aquela sensação era reconfortante. Era muito bom ter alguém assim tão próximo, ao alcance de seu toque, uma pessoa a quem pertencer, uma família para chamar de sua. E como se Nina pudesse ler seus pensamentos românticos e de fundo dramático, Yuuri sentiu o abraço estreitar ainda mais, no que ele retribuiu com a mesma força de carinho e gratidão.

— Aishi...teru? — tentou ela, rindo sozinha da própria pronúncia falha. — Não, não, acho que era koshiteru.

— Koishiteru — corrigiu Yuuri, com a voz baixa e rouca pelo recém-despertar.

— Koishiteru… — Ouvir aquilo na voz de Nina, estava fazendo lágrimas brotarem embaixo das pálpebras fechadas. — Ko-i-shi-te-ru? — Mais lúcida que o marido, ela repetiu aquela declaração em sílabas cantaroladas, provocando um sorriso maior em Katsuki.

— Daiji ni shitai — respondeu, ouvindo uma gargalhada com a declaração.

— Assim não vale, Yuuri, eu não entendo! O que quer dizer?!

— Mamoritai… — continuou, salvo na ignorância da esposa que já começava a pirraçar em brincadeira.

— Yuuri!!

— Zutto issho ni itai…

— Você quer ficar solteiro, por acaso? — e no meio da divertida bronca, batidas na porta decidiram fazer parte do momento. — Pelo jeito acordamos o Yura…

Tudo bem… — Rindo, finalmente ele decidiu abrir os olhos, deparar-se com a careta manhosa de Nina, quando ele pediria desculpas entre risos e ela fingiria de forma cômica como estava chateada com o marido que zombava de seu analfabetismo em japonês...

— Deixa que eu cuido dele.

Mas tudo o que Yuuri viu foi um travesseiro.

O sorriso provocado por seu sonho, morreu na realidade. Ele ainda não havia perdido a mania de dormir daquela forma, como se tivesse nos braços a esposa para proteger e dividir sua vida. Tudo o que ele queria era Nina ali, do seu lado, vê-la dormindo com a boca meio aberta e os cabelos desalinhados, murmurando vez ou outra alguma palavra que só existia no dialeto de seus sonhos, todas as peculiaridades que faziam dela a mulher que ele amava.

Contudo, novamente, tudo o que Yuuri tinha era um travesseiro.

Watashi wa anata o wasureru koto wa dekimasen — murmurou a última declaração em japonês que podia lembrar, as palavras que nunca traduziu para conhecimento da esposa. O consolava saber que mesmo sem entender, ele foi capaz de demonstrar tudo o que dizia. Ele havia, certo?

Não… Ele tinha falhado com Yuri. Quem podia garantir que não havia falhado com a esposa, bem antes daquilo?

Já bastasse não ter Nina em casa, também Yuri não estava. Tão desolador quanto as crises que o atingiam quando se via sozinho no que deveria ser um quarto de casal, era deixar o cômodo para ver o do filho vazio, a bagunça da cama de solteiro intocada desde o dia anterior. Era a primeira vez em doze anos que Yuri dormia fora de casa, quando Nina e Yurio se instalaram no pequeno apartamento de Katsuki para o que o casal chamou de processo de adaptação antes de enfim assinarem os papéis do casamento. Plisetskaya nunca soube que desde aquele momento, Yuuri já os via como uma família.

Mas e Yuri? Ele por acaso alguma vez o considerou como uma?

Yuuri engoliu o soluço quando as batidas na porta se repetiram e ele se deu conta que o chamado em seus sonhos não eram limitados à ilusão; alguém batia à sua porta e, mesmo ingrata, a esperança encheu seu peito. Os poucos segundos que levou para ir à entrada, foram usados para tentar parecer mais disposto e desperto — Yuuri em nenhum momento lembrou que Yurio sempre tinha a chave de casa consigo.

Katsuki tentou não se mostrar decepcionado com a visita de Popovich, mas pela expressão de Georgi, soube ter falhado miseravelmente.

— Me desculpe senhor Katsuki, eu não queria incomodar...

— Aconteceu alguma coisa com o Yuri?

A preocupação era tamanha que o técnico se sentiu culpado por não ter conseguido avisar sua visita antes. Mais um pouco e Georgi teve certeza de que veria o japonês chorar.

— Embora um pouco agitado por ontem, conseguimos acomodá-lo bem, já tinha lanchado e estava passando o programa de hoje quando eu vim — esclareceu Popovich, envergonhado por ter causado tanta comoção sem dar-se o trabalho de esclarecer as coisas antes.. — Me perdoe, inclusive, ter vindo sem avisar, é que o senhor não atendia as chamadas...

— Não, tudo bem, sou eu quem peço desculpas por não reagir bem… Por favor, entre. — Constrangido com a situação, Georgi respeitou o convite de Yuuri e entrou no apartamento, fechando a porta logo em seguida. Já imaginava uma recepção não muito animada, mas a dor que tinha visto nos olhos rasgados foi mais do que o desalento de uma briga com o filho, ele estava tão ferido quanto Yuri, tanto que permaneceu recluso no dormitório de Altin. — Acho que não tive a oportunidade de me desculpar pela cena de ontem, não? — lamentou com um sorriso triste. — Me perdoe.

— O senhor estava nervoso, é normal que exista algum mal entendido, ninguém culpou o senhor ou seu filho.

Pelo que pôde perceber, “filho” chamou mais atenção de Yuuri que qualquer outra palavra naquela frase. Katsuki expressou surpresa antes da dor voltar a franzir suas sobrancelhas, pesando seu corpo para baixo até que encontrasse apoio no sofá, sofá esse escolhido com a ajuda de Yuri.

— Senhor Katsuki, eu vim aqui hoje, pois nós ficamos preocupados com o senhor, também.

— Comigo? — riu Yuuri, dando de ombros. — Yurio é quem tem quinze anos, eu sou um homem adulto, embora… — prosseguindo com a piada sobre si mesmo, ele desviou o olhar, evitando confrontar-se com o olhar piedoso de Georgi. — Embora seja essa amostra vergonhosa do que era para ser um homem crescido. — A baixa risada continuou, o sorriso por fora o matando por dentro. — Patético.

— De forma alguma, senhor Katsuki.

— Não estou te perguntando isso — continuou, esfregando as mãos com força sobre os olhos húmidos. — Não há dúvidas sobre isso e está tudo bem, existem pessoas que simplesmente não conseguem ser melhores, eu estou bem sendo fraco.

— Senhor Katsuki, — desobedecendo os protocolos sociais nos quais era extremamente apegado, Georgi não esperou nenhum convite para sentar-se ao lado do japonês. —, não, Yuuri, você não fraco! Uma pessoa fraca não lutaria tanto quanto o senhor para se adaptar à uma cultura totalmente diferente, mudar de país, de cidade! — Para cada afirmação contrária ao sentimento de inferioridade, Yuuri reagia negando em silêncio. — Uma pessoa fraca não estaria ajudando aquele adolescente incrível a crescer profissionalmente, não daria todo o apoio familiar que apenas um pai pode dar a um filho!

— Mas eu não sou o pai dele… — Finalmente com aquelas palavras, Yuuri deixou que as lágrimas caíssem. — Você ouviu ontem, não ouviu? Acho que todo o ginásio ouviu, deve ter saído até na televisão… Yuri não me considera seu… — ...pai. Ele não conseguia nem mesmo dizer a palavra sem sentir dor. — Eu falhei com ele, falhei com ela…

— Eu imagino como essa briga deve ter te afetado, mas tenha certeza de que isso afetou Yuri também — apaziguou com cuidado. — Adolescentes são instáveis, o senhor sabe, esteve nessa fase, os sentimentos são todos à flor da pele, muitas vezes dizemos algo mesmo sem a intenção de dizê-lo…

— Não é culpa dele — concordou. — Yuri viu um completo estranho entrar na casa dele, perdeu o avô e depois a mãe, obrigado a ser criado por esse mesmo estranho que nada tem a ver com ele… — Dar voz ao medo guardado durante todos aqueles anos, o fazia tremer. Os soluços contidos ao longo daquele tempo, estavam inflamados, parecendo agarrar sua garganta com as duas mãos. — Mas eu não queria que ele parasse em um orfanato, eu só achei que ficar perto de mim seria o melhor… A mãe dele achava isso, mas agora, depois de tudo… Eu me pergunto se de onde Nina pode estar agora, ela não se arrepende de ter deixado o filho dela comigo…

Para Georgi, romântico incorrigível e irresponsável, era impossível ouvir tudo aquilo sem se emocionar. Ele sabia do falecimento de Nina Plisetskaya-Katsuki, uma vez que precisou dos documentos legais de Yuri para executar sua inscrição no curso de Yakov e o cadastro nos demais eventos esportivos, mas a morte em si era um assunto tão delicado, ele nunca ousou cutucar aquela ferida que, descobria agora, ainda estava aberta para Yuuri.

— Nina… — começou Yuuri, sorrindo para as lembranças que tinha da esposa. — Ela gostava da cor verde, de piano e Britney Spears — riu, lembrando-se de todos os detalhes aleatórios que compunham a falecida esposa. — Eu não gosto de nenhuma outra foto em que estamos todos juntos, mais do que gosto essa, sabia? — A bagunça emocional levava Yuuri para diferentes lados; o do momento foi desbloquear a tela inicial do celular para mostrar a foto de fundo. — Ela não aparece, mas eu gosto porque foi ela quem tirou — riu, tão envergonhado quanto o registro de mais de uma década atrás. — Logo depois disso eu a pedi em casamento e… Nina aceitou! — O tom de Yuuri recordando aquilo, ainda era incrédulo. — Ela aceitou, ela quis passar a vida dela comigo, ela quis que eu fizesse parte do crescimento de Yuri! Mas foi tudo tão rápido! — Tantos anos sem falar o que o afetava, ecoavam agora como um grito engasgado por soluços e lágrimas. — Se eu não tivesse tido a ideia de irmos para o Japão...! Mas ela estava tão triste pela morte do pai, eu fiquei com medo que ela ficasse pior, aquilo já estava afetando o Yuri e... Parece que não deu tempo de vivermos o que planejamos, o que queríamos para o futuro e a pior parte de termos pensado tão longe, é que, pelas contas, ela ainda deveria estar aqui!

Georgi não interferiu no desabafo. Calado, ele ouviu atentamente cada palavra e sentiu no próprio peito todo aquele sofrimento. Como era guardar tudo aquilo sem nunca contar para ninguém, nem com ninguém? Seu aluno também passava pelo mesmo?

Depois de um tempo, os soluços reduziram, restando apenas suspiros e lágrimas silenciosas, que escorriam constantemente pelo rosto abatido.

— Quando anunciei meu casamento para os colegas de trabalho, alguns me perguntaram se eu tinha certeza, se… Se eu queria mesmo uma mulher com um “brinde”. Eu não tinha entendido na hora, porque, para mim… — Envergonhado, ele buscava as melhores palavras para dizer. — Para mim já não era mais “o filho de Nina”, ele era o nosso filho e…

“Você não é o meu pai!”

— Mas teve uma vez que ele me chamou de pai.

Naquela hora, Georgi percebeu que na verdade Yuuri estava mostrando todas aquelas palavras, aquele desabafo e argumentos, para si mesmo, tentando convencer uma voz negativa dentro de si de alguma coisa. Porém, era certo que o inimigo dentro da cabeça de Katsuki era mais forte, pois ele já estava voltando ao mesmo estado desolado que eles testemunharam no dia anterior. Teria alguma forma de ajudar? A menos que…

— Yuuri, eu gostaria que você olhasse uma coisa aqui — pediu ele, procurando algo no celular. — Se você estiver em condições, é claro, mas garanto que é importante.

Cansado de tanta exposição emocional, ele só teve forças para concordar e aceitar o aparelho, aberto em uma tela cheia de fotos.

— Você não tem instagram, tem?

— Ah, não, meu celular é do tipo flip…

— É muito simples de mexer, olha. — Deslizando o dedo pela tela, Georgi mostrava a simplicidade do feed atualizado, encorajando Yuuri a tentar. O japonês percebeu que tocar repetidamente em uma das imagens fazia um coração surgiu no meio da tela e quase levou um susto. — Você acabou de curtir uma imagem.

— Fiz mal?

— Não, não mesmo — sorriu Georgi, tocando em pequenos avatares para mudar de página, até chegar em uma conta com miniaturas de fotos cheias de filtro e estampa tigrada. — Reconhece o nome desse usuário? — O nome era yuri_plisetsky. — Acho que vai gostar de dar uma olhada, tem fotos, vídeos curtos…

— Não é errado? Eu devia ter acesso a isso? — Yuri nunca havia lhe contado sobre o tal instagram, o que fazia Yuuri imaginar que tinha um motivo para não ser de seu conhecimento.

— É um perfil público, qualquer um pode olhar. Aqui, se clicar em uma das imagens, elas ficam maiores e você consegue ver a legenda.

O registro mais recente era de Yuri treinando saltos para a apresentação do dia anterior, um vídeo muito curto, aparentemente um gif, do momento do salto até a finalização. Na legenda, algumas figurinhas que ele sabia serem emojis e tags como #countdown e #triplesalchow. Deslizando mais a tela, Yuuri podia ver imagens de muitas situações que ele temia, há alguns anos, não ver Yuri fazer parte. Felizmente, muitas eram as fotos ao lado de Mila Babicheva, diferentes ângulos da pista de patinação, sequências mostrando todos os lados de seus patins, sua prova de figurino com Yuuri atrás…

Perceber estar em uma das fotos pareceu tontear seus sentidos, o fazendo ver nublado. A ponta do indicador já estava tremendo e ele precisou tocar logo a tela do telefone para disfarçar a insegurança. Com a imagem aberta, Yuuri notou que não era apenas uma foto, mas uma sequência de imagens onde ele aparecia ao fundo, distraído com uma das inúmeras revistas desatualizadas, ou cochilando, enquanto esperava Plisetsky. Na legenda, um “zZzz” descrevia a cena e um “LOL xD” era comentado por Babicheva. O que devia significar aquilo? Era algo bom? Ruim?

Curioso em saber se aquela era uma única exceção, ele continuou pesquisando pela conta, imagens de cenários diferentes, seu caminho para a escola, a vista de seu quarto, fotos da televisão em algum programa que gostava e, novamente, Yuuri. E aquela era uma foto que ele nem se lembrava de ter tirado, embora se lembrasse da ocasião, seu aniversário. Eles haviam saído juntos para comer em um restaurante japonês que servia o pior sushi do mundo, mas a péssima experiência rendeu muitas risadas e aquela foto. O “Seria melhor ter feito Katsudon em casa :P” fez Yuuri rir, mas foi a frase seguida “Feliz aniversário, pai” que o pegou de surpresa.

Pai?

As tags acompanhando o registro confirmavam que ele não tinha lido errado: #birthday #happybirthdaydad #birthdayboy #dad #worstsushiever

Yuuri respirou fundo, naquela tentativa de evitar as lágrimas que já era seu cacoete. Buscando por mais fotos, ele não conseguia disfarçar o interesse, a necessidade em achar mais provas que refutassem sua mente insistente no argumento de que Yuri o odiava. E ele encontrou, bem mais do que podia esperar, imagens que flagravam Katsuki dormindo todo torto no sofá e em cima da ficha dos alunos, as chamadas — e acidentais — photobombs nas selfies do filho em frente ao espelho… Mas foi uma das últimas postagens no perfil do garoto que mais lhe chamou atenção, uma foto de Nina segurando um pequeno e recém-nascido Yuri, ainda na maca hospitalar. Yuuri sabia disso porque guardava aquela fotografia.

Não era apenas aquela foto salva na publicação; arrastando a imagem para o lado tinha também uma foto do casamento de Katsuki com Plisetskaya, a tentativa de uma valsa a três, com um sonolento e engravatado Yuri cochilando no ombro da mãe e, na terceira e última figura, um registro de Yuuri ao lado do enteado, sendo premiado pela primeira vez em uma competição oficial, que servia também como lembrete de que Nina não estava mais lá. Era a sequência mais dolorosa dos fatos que ele podia testemunhar, porém a dor foi amenizada quando Yuuri notou a legenda.

“É difícil sem você, mas seria pior sem ele. Feliz dia das mães, mãe. Feliz dia das “pães”, pai.”

Yuuri não conseguia deixar de olhar para aquelas fotos e reler a legenda delas, completamente mexido, seu estado emocional dedurado pelas lágrimas que já não tinha mais forças para segurar.

— Eu não conheço vocês o bastante para poder opinar na relação que têm… — Julgando poder falar, Georgi foi cuidadoso na escolha de suas palavras. — Mas nunca foi segredo para nós o quanto esse garoto te ama e precisa de você. Tenho certeza que ele apreciaria muito que fosse assisti-lo, hoje.

— Yuri não ficará bravo…?

— É algo que apenas vocês dois poderão conversar. — Popovich tentou ser o mais neutro possível. — Mas pelo que pode ver aqui no que a gente chama de stories… — Com o toque de Georgi, um curto vídeo do dia anterior mostrava Yuri revezando a entrada do centro de treinamento com seu rosto chateado, acompanhado de um “esperando pelo pai…” — Ele está sempre esperando por você.

— Eu queria ter visto o programa curto, queria mesmo… — lamentou Yuuri, lembrando do mal entendido anterior que havia culminado em tudo aquilo.

— Pode ver na próxima competição, seu filho com certeza se classificará para competições maiores. Além disso, ainda tem o programa livre de hoje.

Contraído, Katsuki limpou as lágrimas insistentes e começou a se agitar.

— Eu preciso trocar de roupa, lavar meu rosto… — De repente, ele se deu conta do horário e da urgência naquela decisão. —  Quanto- quanto tempo ainda temos para a apresentação de Yuri?

— Pela programação, temos meia hora, ainda.

— Não vai dar tempo! — desesperou-se, deixando Georgi sozinho na sala quando correu revirar as gavetas em seu quarto.

Sorrindo aliviado, Georgi encaminhou uma mensagem a Victor, avisando que em breve, ele apareceria com o pai de Yuri.

.:.

Os olhares sobre Plisetsky ainda eram meio esquisitos, julgadores em sua maioria, condenando a explosão do dia anterior até aquela hora. Ele não duvidava que se fosse julgado por simpatia, acabaria desclassificado pelo júri.

Desanimado, dependeu da ajuda de Mila para arrumar o cabelo. Em qualquer outra circunstância, a garota aproveitaria a situação para provocá-lo e tentar alguma coisa diferente que ferisse a imagem do punk russo que ele adorava, mas como a boa amiga que era — e Yuri sabia disso, ele só precisava descobrir como falar com ela, falar com todo mundo —, Babicheva respeitou seu silêncio com o próprio, arrumando os fios loiros da forma mais simples e limpa que seu gosto por exageros permitia. Yuri não soube se pela discreta gratidão com a ajuda ou o desânimo ainda presente, mas ele não se assustou com o que viu no espelho. Era um penteado ótimo, na verdade.

— Obrigado, Mila. — Preocupada com o amigo, quase seu irmãozinho mais novo, a ruiva o abraçou comovida e só aquilo já trouxe um pouco do rabugento Yuri de volta. — Tá, chega de exagero e me solta, baba.

— Oh, graças a Deus! — riu ela, comemorando vê-lo voltando ao normal. — Estava ficando preocupada, se você não me xingasse em cinco minutos, eu chamaria um médico!

— Exagerada.

— Espero que retribua a ajuda vindo me assistir amanhã, hein? E que torça por mim, porque eu fiz até um cartaz para você!

Ele sabia que ela estava gentil demais para ser verdade.

— Vou pensar no seu caso.

— E tenta trazer o herói do Cazaquistão, agora que são amigos! — pediu, nada discreta, puxando a bolsa colorida. — Vou lá antes que peguem meu lugar, vê se não me decepciona e destrua a equipe do Krovopuskov, não gosto deles.

— Tchau, Mila...

No reconhecimento da pista, Yuri tentou não olhar para a plateia, mas foi impossível ignorar a torcida de uma pessoa só que vinha de Mila — ele, na verdade, estava acostumado com a de Yuuri.

Lembrar do padrasto traiu a ideia inicial de entrar cego e sair vendado da apresentação, pois logo, lá estava Plisetsky, fingindo alongamentos para estudar o público, preparando saltos com os olhos focados na primeira fileira, deixando o aquecimento do rinque olhando ao redor… Nada. Sequer uma sombra.

Quem o acompanhava naquele dia era Yakov e ele não sabia se o silêncio do velho técnico era bem-vindo ou uma tortura. Ele nunca queria ou conseguia falar sobre as próprias aflições, mas não ter quem lhe perguntasse como estava, também não era muito legal. Yuri precisava aprender a valorizar mais a forma como as pessoas se preocupavam com ele.

Plisetsky precisava falar com Yuuri, mas como? Daria tempo? Ele até tinha conseguido um carregador emprestado para recarregar a bateria do telefone, mas estava com tanto medo do que poderia encontrar quando ligasse o aparelho… Pior do que mil mensagens e ligações perdidas, seria não encontrar nada daquilo, nenhum interesse de Yuuri em procurá-lo depois da briga, receber um recado informando que mandaria suas malas depois… O pânico tornou-se crescente apenas por pensar naquilo. Era um tipo muito estranho de sorte seu ágape não precisar ser interpretado naquele dia, a interpretação com certeza seria infinitamente pior.

— Vamos, Yuri? — Ele estava tão compenetrado em amargar sua dor enquanto alongava uma das pernas na altura da orelha, que por pouco não respondeu ao chamado de Yakov com outra pergunta: ir para onde?

Lembrar do que precisava fazer foi quase uma surpresa. Mas já estava na hora de apresentar? Quanto tempo havia se passado desde o reconhecimento da pista? E, inferno, como Yuri se apresentaria estando com o coração pesado daquele jeito? Era bem provável que fizesse o gelo afundar!

Enquanto caminhava para a pista, seu cérebro resgatava passagens nada agradáveis para o momento, um filme de mal gosto que zombava de si mesmo, rindo maleficamente para sua careta interna. A produção cinematográfica de gênero duvidoso nada mais era que todos os momentos ao lado de Yuuri que ele conseguiu estragar, a resistência em aceitar e demonstrar afeto, as vezes que negou se importar e todas as garantias de que podia fazer qualquer coisa sem tê-lo por perto.  Yuri estava tão arrependido que seu esTômago chegava a doer.

— Sabe o que fazer, não? — questionou Yakov, recebendo uma afirmação não tão certa… — Apenas entre lá e faça o melhor que puder. Você sempre pode fazer melhor na próxima.

Aquele parecia o tipo de coisa que Katsuki lhe diria.

— Obrigado.

O agradecimento era como um treino para quando pudesse falar aquilo ao padrasto, isso se o visse novamente. Ele faria isso sempre que se lembrasse ou tivesse a oportunidade, era uma promessa, uma promessa…!

— Está na hora.

Respirando fundo, Yuri entrou na pista, deslizando sob o anúncio de seu nome e apresentação. Seus olhos correram superficialmente a multidão, agarrado a um último fio de esperança de ver Katsuki ali; a realidade foi a afiada tesoura a romper com aquela linha.

Se a vida não se compadecia de um adolescente arrependido, o começo da música também não. As explosivas notas iniciais do Allegro Appassionato calaram o filho e puxaram o patinador, o guiando pela coreografia tantas vezes ensaiada. Yuri envolveu a plateia com o deslizar alinhado, a coreografia flexível, segurando o fôlego quando Plisetsky preparou-se para o primeiro salto do programa livre;

Yurio, ganbatte!!!

A torcida tão conhecida sua, ecoou pelo ginásio antes da finalização do triple axel que arrancaria aplausos e gritos da multidão. Mas quem se importava?! Yuuri estava lá, em pé e esbaforido, com cara de quem havia acabado de chegar de uma maratona, vibrando e torcendo o que nem uma plateia em final de Grand Prix poderia expressar. Nessa hora Yuri sorriu; ele iria patinar o seu melhor para mostrar ao atrasado, o que ele não teve oportunidade de ver no dia anterior.

De onde estava, longe de sua câmera profissional, longe até da credencial que o autorizava no kiss and cry, Yuuri assistiu ao borrão da apresentação de Yuri — culpa de suas lágrimas — aos soluços, pensando em um emaranhado de coisas e em nada ao mesmo tempo. Yuri havia crescido tanto! Seu filho estava chegando tão longe! Como não se comover e fazer um escândalo com cada aplauso lhe adormecendo os dedos e uma torcida inflamada? Aquele era seu Yura, seu maior orgulho! E aqueles quatro minutos de apresentação faziam valer todos os anos de luta e incerteza; Yuri valeu tudo isso, Yuri valia muito mais.

Yuuri Katsuki gritou para cada nota alta que jogou seu filho na liderança e vaiou vergonhosamente quando um dos elementos recebeu punição dos juízes, a ponto de Georgi precisar pedir para que se acalmasse, ou o japonês seria convidado a se retirar de forma não muito gentil.

Se o dia anterior passado um sem o outro se mostrou difícil, pior estava sendo não poder comemorarem juntos. Separados por quatro apresentações remanescentes mais a cerimônia de premiação, Yuuri morreria desidratado de tanto chorar até poder encontrar o filho, e também Yuri acabaria por desistir de esperar, passando por cima da mesa de avaliadores, pisoteando com a lâmina de seus patins o placar eletrônico e a cabeça de quem mais estivesse no caminho. Talvez nem tanto. A verdade era que por mais desejado que fosse o reencontro, nenhum dos dois sabia muito o que dizer sobre o que tinha passado, mal acostumados com os anos em dúvida e silêncio. Tal pai, tal filho.

— Yuuri, você quer me acompanhar? — pediu Georgi, notando a relutância de Katsuki em olhá-lo, mesmo que Yuri não estivesse mais visível da plateia.

— Para onde?

— Eu posso dar um jeito de fazer você chegar até o Yuri — o alarde silencioso do japonês por pouco não atraiu a atenção de uma dúzia de curiosos. —, mas o senhor vai ter que me prometer ser discreto.

Aquilo seria difícil, mas Yuuri prometeu, mesmo assim.

Enquanto Popovich guiava Yuuri pelos corredores dos bastidores, ao lado dos demais competidores das três primeiras colocações, Yuri aguardava o resultado final, aguardava o momento que poderia mostrar a medalha de ouro ao pai e voltar para casa, onde comemorariam com katsudon-piroshki e toda aquela discussão não sendo mais que o passado, perdida e escondida nele. Bastava a última apresentação, mais uma nota que não pudesse bater a soma da sua e Yurio cumpriria o roteiro mental que retomaria o rumo de sua vida, só mais um programa, só mais um competidor…

E em uma reviravolta admirável, Otabek Altin, do Cazaquistão, bate a nota do líder da disputa, Yuri Plisetsky, e se estabelece em primeiro lugar!! — O quê?! — E seu técnico, Victor Nikiforov, parece bem feliz com a conquista do rapaz!

No corredor, Yuuri assistindo à transmissão, tinha a mesma expressão de Yuri, os dois olhos arregalados e a incredulidade parada na garganta. Seria aquilo o gosto amargo da petulância ou o costume às primeiras colocações os traindo?

Altin, que começou tímido no último ano, conseguiu, através da equipe de Yakov Feltsman, ficar no top 10 em competições internacionais, preparando terreno para o resultado que vimos hoje! — continuou o outro narrador televisivo. — O desempenho mediano de Plisetsky no dia de ontem, aliviou o caminho para o topo do pódio, mas a soma de pontos que destacou Altin nessa edição com certeza foi merecedora.

Essa temporada já começou interessante!

— Dane-se! — Yuuri praguejou, como se estivesse de frente com os comentaristas, mas não era um “dane-se Otabek Altin”, era mais um “dane-se tudo isso, cadê a minha criança?!”.

E com a urgência no peito, Katsuki deixou Georgi para trás com seus protestos e seguiu pistas formadas por um aglomerado inflamado de entusiastas e repórteres. Usando de cotoveladas que sua boa educação japonesa desaprovaria e empurrões que amargaria horas mais tarde, Yuuri abriu caminho para o kiss and cry mais disputado de sua vida, procurando ao redor onde estaria a cabeça loira de Yuri. Por que ele sempre perdia aquele menino de vista? Já estava começando a ficar traumatizado.

As câmeras não paravam de filmar e fotografar — Yuuri iria cobrar os registros! — e os responsáveis pelo campeonato já organizavam o pequeno pódio e as medalhas para premiação. Troféus e medalhas brilhantes eram sinal de Yurio, bastava esperar um pouco e ele apareceria. Um pouco que já estava durando um dia inteiro sem vê-lo, mas quem tinha esperado tanto, aguentaria um pouco mais…

— O senhor é Yuuri Katsuki, o responsável legal por Yuri Plisetsky?

Infelizmente, objetos brilhantes também atraíam a imprensa, que trazia na ponta dos microfones, a lembrança de que Yuuri era uma pessoa ansiosa e não muito social.

— Sim, sim, eu so-

— Feliz com a conquista do seu protegido? O resultado foi como o esperado?

Repórteres e a péssima mania de empurrar uma pergunta atrás da outra, sem esperar a resposta de nenhuma.

— Ah, sim, eu estou sempre feliz pelo meu… O meu…

Mentalmente, era muito difícil ser o pai do tipo coruja, relembrar de todos os dentes deixados para fadas e das vezes que Yuri fingiu não estar morrendo de medo do escuro. Todavia, admitir em voz alta e para mais de uma pessoa ouvir sua paternidade construída pelo acaso da vida, não parecia assim tão… certo? Faltava algo, mas o quê?

— Eu estou sempre feliz pelo meu…

Paaai!!

Yuuri não precisou pensar em mais nada, porque não faltava mais nada; vindo, do outro lado da pista, Yuri cravava a ponta serrilhada das lâminas para ganhar impulso naquela corrida desesperada por algo muito melhor que qualquer medalha. Já não precisava mais conter aquela hesitação na garganta, a palavra estava na ponta da língua. Na de Yuuri também.

— Eu estou sempre feliz pelo meu filho.

Sem pedir licença, Katsuki afastou a repórter e um Victor prestando entrevista, correndo para a lateral aberta da pista onde Yuri deveria parar — o garoto não parou. Felizmente, para ambos, ele não parou.

A corrida de Yuri teve como término os braços de Yuuri e a sensação daquele abraço foi como uma saudade de anos. Durante um tempo, foi assim que eles permaneceram, entendendo o que significava aquele toque, aquela permissão que davam a si mesmos, de amar sinceramente e chorar sem censura. Aquele abraço resumia tanta coisa que o bloqueio emocional não deixava falar, porém, principalmente, resumia o significado do que eles eram: uma família. Era pequeno, era incompleto e nada parecido, mas nada, absolutamente nada naquele mundo seria tão certo quanto aqueles dois — nenhum deles queria isso.

— Eu queria tanto ter visto ágape, Yuri, tanto… — murmurou Yuuri, para que aquela conversa pertencesse apenas aos dois, assim como aquele abraço.

— Me desculpa por não ter te avisado, pai… — Ouvir a voz embargada de Yurio e reconhecer nos soluços o choro do filho, pioraram as lágrimas de Yuuri. Nina estaria dando uma bronca nos dois se pudesse vê-los naquele momento…

— Me perdoe por ter gritado…

— Eu menti, eu menti tudo, eu juro que foi mentira, pai — confessou entre soluços que não o distinguia da criança que Yuuri iria sempre ver e querer proteger. — Eu não queria ter dito aquilo, foi sem querer, eu só estava bravo, pai, eu juro…

— Tá tudo bem, filho, tá tudo bem… Eu acredito em você, não precisa pedir desculpas… — Segurando o rosto vermelho, Yuuri tentava fazer com que o filho o olhasse. — Eu acredito em você.

— Por favor, não vá embora, pai…

— Eu não vou a lugar nenhum sem você, filho! — Impossibilitado de soltá-lo depois de tudo aquilo, Katsuki voltou a abraçá-lo. Passado o desespero, restava agora o alívio; tudo estava certo novamente. Yuuri riu. — É tão estranho te ouvir me chamando assim…

O abraço afrouxou e Yuri esfregou os olhos molhados, tirando coragem de algum lugar para continuar com aquela novidade que era abrir seu coração.

— Dedushka foi embora… A mamãe também… Eu só não queria que o meu pai também fosse…

Aquele abraço não encerraria tão cedo.

— Eu estarei aqui, Yuri, o tempo que for necessário, para te ver crescer, eu prometo isso a você! — Yuuri não tinha certeza de quanto tempo a vida lhe reservaria para aquilo, ele apenas rezava para que fosse o suficiente.

— Vai me aguentar? — O menino tentou brincar, mas o choro não deixou que disfarçasse o medo da rejeição.

— Só se você aguentar esse chorão dramático, aqui! — riu. Como ele podia duvidar disso? O que tanto Yuuri estava deixando de falar? — Yurio, eu amo você, filho, amo com todo o meu coração! E eu não abandono quem eu amo!

No fundo, Yuri já sabia disso, mas ouvir aquilo dito com todas as letras, o pegou de surpresa. Daquele jeito, o abraço nunca teria fim.

Ninguém estava reclamando.

— Eu também te amo, pai. — Foi a primeira coisa que o garoto conseguiu dizer sem tremer ou soluçar. Yuri queria que a certeza naquela declaração fosse percebida e levada a sério. — Você é uma inspiração para mim, pai, meu porto seguro, meu lar… — Notando estar falhando miseravelmente em manter a seriedade, Plisetsky se viu irritado consigo mesmo, praguejando todo o sentimentalismo que não queria parar. — Droga! Pareço uma torneira quebrada, mas o quê?!

Rindo da birra que caracterizava tão bem aquele menino que via crescer — seu filho! —, Yuuri voltou a abraçá-lo, sendo retribuído sem nenhuma barreira que os impedisse, daquele momento em diante, de expressar quão importantes e essenciais eram um na vida do outro.

Não importava os registros que os lembrariam mais tarde daquele banho de lágrimas, ou a cerimônia de medalhas atrasada por culpa daquele momento fraternal, muito menos a briga causada por um mal entendido que, como bem dizia o ditado, havia sido um mal que viera para o bem.

Já não existia mal algum Yuuri ter perdido o ágape.

Não existia ferida alguma que não estivesse ali sendo curada por Storge.


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Notas finais do capítulo

Ok, vamos pensar que Victor retirou Otabek do castigo pela medalha de ouro. Me sinto realizada por ter colocado esse herói cazaque no pódio, vai que é tua Otabae! ♥
Ah, ninguém viu meu coração Otamila/Milabek falando mais alto, né? xD Não batam na autora, não, abaixem as pedras, hunf u-u

No mais, ai, ai, tem um olho na minha lágrima :')

Vocês não tem ideia de como eu coloquei meu coração nisso :'D Tenho um apego muito grande nessa história e nesse headcanon, planejei e escrevi com muito carinho! Espero que vocês tenham conseguido sentir isso, também! Tem coisa melhor que os dois Yuris nesse tipo de ambientação fraternal? :'D

Especialmente você, Mileh! Essa foi minha forma de agradecer pela sua amizade, uma das poucas coisas que me fazem tão bem! Sou muito grata por ter encontrado suas histórias e **você**, uma extensão viva das suas criações, tão maravilhosa quanto o que cria. Obrigada //você// por todas as aventuras e gritos trocados! ♥ Que possamos trocar mais felicidades como a de ter a sua amizade!! ♥

Abaixo segue um glossário do que o Yuuri disse à esposa e ai :') Victuuri pra quê quando se tem YuuriNina? :'D *corre*
Até a próxima, pessoal!!!

~Glossário:

Aishiteru: o "eu te amo" romântico, usado geralmente por casais.
Koishiteru: um "eu te amo" romântico, porém de forma mais profunda.
Daiji ni shitai: "Eu te valorizo", em tradução lIteral. Segundo o site onde essa frase foi pesquisada "significa que você considera essa pessoa muito importante em sua vida. Você a considera um tesouro e deseja cuidar dessa joia da melhor forma possível."
Mamoritai: Quero te proteger.
Zutto issho ni itai: Eu quero estar com você para sempre.
Watashi wa anata o wasureru koto wa dekimasen: Eu não consigo te esquecer.

♥ ♥ ♥



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