Storge escrita por Nat King


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

OI! :D

Bom, eu nem devia estar aqui pra começo de conversa, mas como minha vida está uma bagunça, não sei quando irei desempacar essa história, que deve acabar no segundo capítulo. Como eu não queria deixar essa fic guardada por mais tempo (ela devia ter sido um presente de Natal e virou esse trambolho enorme depois de ter perdido o primeiro arquivo sos), decidi liberar, também como forma de agradecimento à linda presente da vez (de novo xD), Mileh Diamond. Troca de fanfic pura de família, vão ler Two Shades of Blue, vão! owo

À presenteada, minhas palavras açucaradas: Mileh, muito obrigada pela amizade sincera e palavras de incentivo desde o começo dessa amizade regada a muito surto e headcanon xD Você foi um dos melhores presentes que 2017 me deu e eu fico muito contente em poder retribuir tanto carinho, mesmo que não da forma que eu ache que você mereça. Você é uma pessoa brilhante de enorme luz própria e uma força que irradia, admirável em todos os sentidos e uma inspiração cheia de força e garra. Torço muito pelo seu sucesso, embora saiba que não é preciso muita torcida do lado de cá, já que você desde sempre está lutando para cada conquista. Torço, então, para poder estar aqui e celebrar sua próxima vitória ♥ Obrigada por tudo!! ♥

Passada a glicose, desejo à todos uma boa leitura! ♥



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Yuri olhava para a ponta tigrada dos sapatinhos, balançando os pés em sinal de impaciência. Não gostava de ter que obedecer adultos ou esperar, sendo cada minuto passado uma eternidade para ele, no auge de seus seis anos, suportar. Infelizmente, lá estava ele, obrigado a obedecer um adulto, já que seu braço fraturado não o deixava fazer nada além de esperar, tudo o que ele não queria. Quanto tempo? Aparentemente, o médico havia dito meses, mas Yuri não confiava no tradutor daquela conversa. Ele tinha certeza que se tirasse aquele pesado e incômodo gesso, estaria pronto para fazer o que quisesse, bastasse poucos minutos sozinho e uma tesoura grande, eles veriam só do que era capaz!

Para sua frustração, além de não ter nenhuma tesoura por perto, aquele lugar era cheio de adultos, todos desconhecidos. Que saco!

Bufando ruidosamente, ele voltou a encarar os sapatos. Era a única coisa legal que aquele porco havia lhe dado, mas não podia deixar que soubesse. Na verdade, Yuri até havia sido presenteado com mais coisas legais, todas com estampas de tigre e pelúcias do animal, então é, talvez o marido de sua mãe não fosse assim uma completa decepção.

Pensando em sua mãe, onde ela estaria? Ele sentia saudades e estava tudo uma bagunça, ninguém ali sabia respondê-lo. Bom, talvez porque Yuri não os entendia. Não queria admitir em voz alta, mas queria muito abraçar alguém, agora…

— Yurio? — Bicudo, ele encarou a moça que o chamava. Odiava ouvir o “Yurio” repetido à exaustão por aquela gente estranha, principalmente porque aquele não era seu nome. A mãe até tentava consolar seu pequeno emburrado, dizendo se tratar de um apelido, mas aquilo não fazia sentido para ele; Yura era seu apelido, Yurio era uma afronta! — Lembra de mim? Sou Yuuko, amiga do seu pai. — A menção daquele porco como seu pai, enfezou ainda mais a carranca da criança. — Oh, me desculpe, do Yuuri. — A expressão do menino não atenuou. Ela não podia mesmo achar que consertaria um erro com outro, não? Só podia existir um Yuri e o japonês com toda certeza não merecia um nome tão legal quanto aquele. — Ele ainda está ocupado com aquele assunto de adultos que te disse e me pediu para ver como estava. Gostaria de comer alguma coisa?

A simples menção de comida despertou seu estômago. Ele estava, sim, morrendo de fome e sentia a boca salivar com a lembrança dos piroshki do avô, podia até mesmo sentir o cheiro!

— Quero piroshki — disse, sem nenhum por favor ou gentileza. Yuuko lamentou baixo e logo Yuri percebeu que não teria seu pedido realizado.

— Me desculpe, Yurio, mas não temos piroshki por aqui… — Ele devia imaginar, aquele país era muito chato. — Mas se vir comigo, eu prometo que vai poder escolher o que quiser comer!

Não se lembrava de muitas coisas que gostasse na culinária asiática, mas, na falta de piroshki, havia um prato local do qual Yuri muito apreciava, um que até mesmo a mãe do homem de óculos que ele não gostava, sabia fazer.

— Posso comer katsudon?

Yuuko sorriu, mais aliviada. Era bom vê-lo tomando a iniciativa de pedir alguma coisa, sem deixar para ela adivinhar o que fazer.

— Claro que sim, quantos você quiser! — sorriu, oferecendo uma mão para encorajá-lo a segui-la. — Conheço um restaurante aqui pertinho que faz o melhor katsudon do mundo!

— Igual da obaa-chan? — Yurio não sabia o significado daquela palavra, mas na sua cabeça, aquele era o nome da mãe de Yuuri.

— Nem tanto… — riu ela, erguendo-se do chão. A gravidez nem estava tão avançada e suas trigêmeas já a estavam matando. — Mas será o bastante por enquanto.

Yuri pensou que estava tudo bem. Pelo menos ele poderia finalmente fazer alguma coisa além de ficar sentado. Mas algo ainda estava estranho, faltava alguma coisa...

— A mamãe vai com a gente?

A mão de Yuuko apertou levemente seus dedinhos e sua respiração tensionou. Felizmente, Yuri não percebeu nenhuma daquelas sutis reações.

— Seremos só nós dois, dessa vez…— e rindo, ela alisou a barriga. — Bom, nós cinco, mas acho que elas não contam ainda!

A piadinha suavizou as sobrancelhas juntas e o canto de seus lábios ergueu em algo que lembrava remotamente um sorriso. A senhora Nishigori não podia imaginar como Yuuri lidaria com aquela situação.

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A forma como havia conhecido Nina era muito engraçada. Ele estava há poucos dias na Rússia e sua primeira tentativa em usar inglês para se comunicar, revelou-se um fracasso total no país dos cosmonautas. Para completar, não entendia nada do que falavam e o mundo parecia uma bagunça de vozes tentando orientá-lo a respeito de coisas que não sabia. Se não tivesse sido por Nina, ele provavelmente estaria até agora chorando no meio da Praça Vermelha.

Yuuri não estava na Rússia, mas ainda não conseguia entender o que lhe diziam, a mesma bagunça de vozes tentando orientá-lo sobre um futuro que não podia prever, mas que todos garantiam ser o melhor. Como havia parado naquela bagunça? Desejou que Nina aparecesse como naquela tarde cinza em Moscou, sorridente e muito atenciosa, pedindo em inglês simples para ele se acalmar que tudo ficaria bem. Yuuri queria acreditar naquilo, mas ele não tinha a esposa para garantir sua paz daquela vez. Nina nunca mais poderia lhe garantir isso.

— Katsuki-san? — Finalmente alguém dentro daquela sala percebeu seu desconforto e a começada ansiedade, manifestando-se no tremor das mãos e sudorese na lateral das têmporas. — O senhor gostaria de fazer uma pausa?

— Estou de acordo. — O representante da embaixada russa também queria alguns minutos tranquilos para beber uma água e respirar um ar diferente ao do ar-condicionado local. — Na volta podemos finalizar com a papelada.

— Não… — gaguejou, audível o bastante para chamar a atenção de todos. Nervoso com os olhares alarmados e incrédulos sobre si, vacilou antes de reforçar aquela decisão. — Eu não assinarei nada.

Era a primeira manifestação de Yuuri em palavras desde que eles haviam começado aquela reunião, há quatro exaustivas horas. E, para desespero dos envolvidos, o maior interessado naquele caso estava reagindo da pior forma esperada.

— Katsuki-san, para podermos agilizar o processo de transferência da criança, os papéis precisam ser assinados o quanto antes — aconselhou a advogada, fala baixa e tom ameno, intencionais em acalmar Yuuri.

— Alongar a permanência do garoto só vai lhe custar mais dor de cabeça e audiências sem necessidade — o embaixador russo, bem menos gentil, foi claro. — Podemos poupar todo esse contratempo, basta o senhor colaborar e autorizar os cuidados do menino ao país dele.

— Eu não posso fazer isso…

— Katsuki-san… — antes da advogada ponderar por ele, o embaixador interviu com um discurso mais agressivo;

— Se negar ao garoto seus direitos como cidadão russo, o país precisará interferir e uma disputa internacional é tudo o que o senhor não quer, acredite em mim.

O silêncio novamente tomou a fala de Yuuri. Com os olhos presos no chão, tentava buscar perto dos seus pés a solução daquele problema. O que Nina teria feito? O que ela aconselharia?

“Se acalme… Tudo vai ficar bem…”

— Queria tanto acreditar nisso, Nina… — sussurrou para suas lembranças, o fantasma da esposa que ele imaginava estar ali, ao seu lado, tentando o apoiar e incentivar como sempre havia sido, desde o primeiro dia que se conheceram.

— Katsuki-san, é melhor fazermos uma pausa, o senhor parece cansado, já não está mais sendo claro em seus argumentos.

— Seja razoável. — O russo não tinha a mesma paciência que sua colega japonesa. — O senhor não está em condições de criar essa criança. Seria irresponsabilidade, cruel, impor uma criação japonesa a ele. O menino acaba de perder a mãe e irá forçá-lo a uma adaptação em um país diferente de tudo que ele conheceu até agora, por algum conflito pessoal que esteja tendo? — Yuuri engasgou, chocado com aquelas acusações.

— Não, eu jamais… Eu nunca…!

— No momento, é de Yuri Plisetsky que estamos falando. — O homem foi categórico e a reprimenda fez Katsuki murchar. — O melhor para ele é voltar para a Rússia, onde nosso governo se certificará de oferecer o melhor para sua criação, boa base preparatória, médica e educacional, onde poderá estudar e se desenvolver como cidadão. — Como se tivesse jogado todas aquelas palavras sobre a mesa, ele ergueu os braços, evidenciando ter despejado tudo o que possuía, seus melhores argumentos. Precisava apenas finalizar o curto discurso e certamente teria a causa ganha. — E você, Yuuri Katsuki, o que o senhor tem a oferecer?

A questão familiar no Japão era um pouco mais difícil do que imaginavam, isso comparado com culturas diferentes à sua. Laços sanguíneos eram a questão de maior peso em uma decisão judicial e ele já vira muitos casos de adoção, em que a mudança de sobrenome da criança não era autorizada. Mesmo uma família com a guarda cedida, corria o risco de não ter seu filho totalmente integrado ao seio familiar, como se os juízes julgassem que aquela criança pudesse ser removida a qualquer momento.

Casado com Nina, ambos arregaçaram as mangas para lidar com uma extensa e cansativa papelada, visando o reconhecimento de Yuri como filho do japonês e com isso, a mudança do sobrenome do menino. Na época, o casal brincava com a possibilidade de terem dois Yuri Katsuki em uma só casa e certa vez, ele havia rido com a esposa, dizendo ser mais fácil deixá-lo como Plisetsky. Aquelas palavras, tão inofensivas na época, martelavam em sua cabeça, o culpando por não ter sido mais rápido; se tivesse cuidado dos papéis antes, nada daquilo estaria acontecendo. Mas não estava também o governo japonês tentando persuadi-lo a desistir de Yuri?

Se não haviam conseguido tempo hábil para o reconhecimento oficial de Yuri Plisetsky como um Katsuki, ao menos algo Nina havia providenciado, um documento com peso legal, onde ela deixava o filho aos cuidados de Katsuki, caso algo acontecesse e, infelizmente, algo havia acontecido.

Nina confiava nele, o bastante para decidir construir com Yuuri uma família, o bastante para entregar a vida de seu filho a seus cuidados. Ele não podia decepcionar a esposa, não depois de tudo o que haviam vivido e confiado um ao outro.

— Uma família — foi sua resposta, baixa e um pouco rouca, mas clara o bastante para os presentes ouvirem e se incomodarem com a resistência de Katsuki. — Eu tenho uma família.

— Katsuki-san, como já foi esclarecido para o senhor, uma mudança abrupta de país tem grandes chances de ser prejudicial ao menino, por mais bem intencionada que sua família seja, pode não ser o suficiente para suprir o que ele precisa.

— Para onde ele vai quando voltar a Moscou? — perguntou, aflito com a simples ideia de cogitar ceder àquela pressão.

— Para o melhor abrigo que pudermos achar — o embaixador pontuou pausadamente cada palavra. — O governo russo não abandona seus cidadãos.

— Eu também não abandonarei Yuri — murmurou, e sua imagem acuada era incapaz de mostrar a tamanha luta travada em seu interior. — Sou o responsável legal dele, eu não vou abrir mão de sua criação.

Os presentes se entreolharam, parte incrédulos, parte exaustos de sua resistência.

— Nina confiou em mim… Eu não abrirei mão disso.

Yuuri não tinha condições físicas ou emocionais para uma saída dramática, mas mesmo o leve erguer da cadeira e o caminhar cambaleante até a porta, causou uma comoção de ofensas em japonês, inglês e russo. Naquele momento, onde os representantes dos dois países voltariam a uma acalorada discussão visando o desmembramento daquela família incompleta, Yuuri não era capaz de ouvir mais nada, nem mesmo entender o próprio idioma. Ele precisava muito voltar para casa, restava saber qual delas.

— Yuuri? — Yuuko o chamou em voz baixa, tendo se aproximado discretamente. O cansaço de Katsuki não o deixou vê-la chegar e ela imaginou que aquilo devia-se ao desgaste emocional e físico do amigo. — Você está péssimo… Como correu a reunião? Já acabou?

Com os olhos pesados e inchados, ele observou Yuri, dormindo no colo de Nishigori, com a cabeça tombada em seu ombro, alheio à toda aquela bagunça que estavam fazendo em seu nome. De todos os envolvidos, ele seria o mais afetado. Yuuri não podia deixar que isso acontecesse.

— Já acabou, sim. — Alisando o cabelo loiro, tentando naquela carícia consolar as lágrimas ainda por vir — tanto dele quanto do enteado —, ele esticou os braços e trouxe Yuri para o próprio colo. Inconsciente, a criança abraçou-se ao padrasto, atitude que jamais faria se desperto. — Vamos para casa, Yuuko, você precisa descansar.

— Você também.

Sem muito o que falar, Yuuri sorriu triste e agradeceu aquelas palavras, embora não as pudesse aceitar; no momento, sua maior preocupação era aquela criança dormindo em seus braços.

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Repassando todas as palavras ditas pelo padrasto, Yuri tentava entender o que estava acontecendo. Não que o japonês tivesse usado de palavras difíceis, mas algo estava muito errado naquelas afirmações.

Sim, ele se lembrava do tremor que havia atingido o shopping onde estava passeando com Nina. Sim, ele sabia o que era um terremoto, . Não, ele não lembrava de muita coisa, nem mesmo de ter quebrado o braço. Oh, então era por isso que estava usando aquele gesso desconfortável? Chato! Tudo aquilo era chato, o falso Yuuri era um chato e chorão, Yuri queria ir embora para casa, queria sua mãe.

— Eu sinto muito, Yurio… — a forma como Katsuki lamentou, não o deixou ficar bravo com o jeito errado que ele falava seu nome. — Infelizmente a sua mãe não vai voltar.

Por mais que procurasse, Yuri não conseguia achar uma explicação para aquilo. Via enormes e escarlates X em cima de todas as explicações bobas que tentava encontrar. Não, Nina não teria se perdido deles para sempre, era muito esperta e conhecia todas as ruas de Moscou, e aquele Japão era muito pequeno para ela desaparecer desse jeito. Também não tinha como ela ter fugido; talvez do porco, mas ele era chato e Yurio iria entender totalmente se fosse esse o caso, mas Nina jamais o deixaria para trás. Qual era a chave daquele mistério?

— Por quê? — Todas as suas opções tinham acabado. Precisaria confiar em Katsuki se quisesse uma solução para sua dúvida.

Às vezes, o marido de sua mãe até conseguia ser engraçado. Quando nervoso, ele tinha a mania de morder os lábios, contrair os ombros, gaguejar e suar frio e tudo isso de uma só vez parecia divertido, embora Nina repreendesse o riso do filho e dissesse que “ansiedade era coisa séria”. Daquela vez, no entanto, mesmo Katsuki mordendo os lábios e contraindo os ombros, ele não parecia perto de ter uma ansiedade-coisa-séria. Por que até a mais previsível das coisas estava tão confusa? Por que o bobo do seu padrasto estava tão triste?

— Naquele terremoto, onde você machucou o seu braço, sua mãe também se machucou — tentou explicar o mais cautelosamente possível. — Mas ela se machucou muito e não vai mais poder voltar.

Usar aquele gesso era muito chato e não deixava Yuri brincar direito. Quantos gessos Nina precisaria usar para seus muitos machucados? Eram eles que não a deixariam voltar?

— Seremos apenas nós, agora.

Aquelas palavras eram familiares. Não havia sido isso que sua mãe e Yuuri disseram quando lhe contaram que vovô Nikolai havia ido embora com os anjos?

— Ela morreu?

Ouvir uma criança tão pequena falar aquilo, partiu o que restava do coração de Yuuri. Não queria chorar mais uma vez e, principalmente, não queria chorar na frente dele. Precisava ser forte daquele dia em diante, pelo bem de Yuri, era o que Nina iria querer.

Talvez ela o perdoasse por ser fraco, apenas daquela vez. Ela entenderia suas lágrimas se pudesse ver as do próprio filho caindo com a constatação de que nunca mais veria a mãe. Nina perdoaria seus soluços somados aos de Yuri, perdoaria as lágrimas que, conjuntas, não mais se diferenciavam.

— Eu sinto muito, Yuri, sinto muito… — O pedido de desculpas quase não se fazia ouvir pela voz entrecortada em soluços e o choro sofrido do enteado. — Nós vamos ficar bem, eu prometo… Eu nunca vou te abandonar…

Apertando Yuri em um abraço, Yuuri prometeu a si mesmo ser a última vez que choraria. Talvez assim ele pudesse evitar que Yurio chorasse também.

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Voltar para Moscou era estranho sem a mãe por perto. O apartamento onde viviam, mesmo ocupado por ele e Katsudon, o apelido mais afetuoso que conseguia dar ao padrasto, parecia tão vazio quanto se não tivesse ninguém. Geralmente era Nina quem dava alegria àquele lar, com sua capacidade de falar durante muito tempo, sem nunca perder o fôlego. Sendo Yuuri e Yuri muito reservados, o apartamento de poucas peças caía em um silêncio sem fim, onde até o barulho da televisão era melancólico. Almoços e jantares eram acompanhados de poucas perguntas por parte de Katsuki, questionando se a comida estava do agrado da criança e se ele queria repetir as porções. Para todas essas dúvidas, Yuri respondia com acenos sem palavras e, dessa forma silenciosa, seguiram os primeiros dias de regresso dos dois.

Somente os dias. As noites costumavam ser um pouco mais barulhentas.

Era no silêncio de seu quarto, olhando para as paredes, que as lembranças de Nina vinham à tona, para ambos Yuris. Yurio não ter a mãe para desejar-lhe boa noite com um beijo na testa e Yuuri sem a esposa para abraçar logo depois, os fazia sofrer, sendo a criança a de mais evidente dor. Engolindo a vontade de chorar, Yuuri saía de seu quarto coçando os olhos, querendo conter as lágrimas na frente do menino, e entrava no cômodo, se aproximando sem falar nada. Não existiam palavras para consolar uma criança órfã, tampouco para um viúvo recente, mas não era ele a prioridade. Afastando os cobertores, Yuuri deitava-se na cama de solteiro e, substituindo o gato de pelúcia, Yurio abraçava o padrasto, sem pensar em uma desculpa para aceitar o consolo dele. Naquelas horas, o garoto só ficava contente em não estar sozinho.

Devagar, Yuuri conseguiu se organizar novamente, depois de quase raspar até a última moeda de sua poupança para mantê-los nas primeiras semanas. Na mesma escola onde lecionava patinação antes do acidente, ele conseguiu dobrar o número de turmas e não encontrou palavras suficientes para agradecer o apoio dos coordenadores do local. Lá, onde em uma maravilhosa coincidência, descobriu trabalhar Nina nas turmas de balé preparatório, teria de lidar com as frequentes lembranças da ex-esposa, mas faria aquilo. Era preciso, pelo bem de Yuri.

Como não dispunha, naquele recomeço, condições financeiras de bancar uma babá para o menino, Yuuri o levava todos os dias depois das aulas para acompanhá-lo no trabalho, fazendo questão de levá-lo à escola e estar lá antes das crianças serem dispensadas. Dificilmente Yurio tomava a iniciativa de conversar, sendo sempre insistência de Yuuri em saber como havia sido seu dia, as coisas que tinha aprendido, a convivência com os colegas… Aos poucos, o menino respondia e isso deixava Katsuki aliviado, ainda que “são todos chatos” fosse a resposta padrão.

Manter Yuri perto de seus cuidados era mais do que uma necessidade financeira, era escolha do próprio japonês, que recusava-se a abandonar o enteado. Queria estar por perto caso ele precisasse e jamais se perdoaria se Yurio passasse por algum problema longe de seus olhos, como na primeira tentativa do garoto em patinar.

Plisetsky, por causa da mãe, cursou aulas de balé desde os três anos, a idade mais prematura aceitada na instituição. O interesse do menino pela patinação artística veio acontecer quando Nina decidiu fazer dos fins de seu expediente, um passeio para os rinques de patinação do local, coisa que Yurio não entendeu a princípio. Ela sempre ia até o espaço gelado com duas bebidas quentes, uma para o filho e uma para o homem de traços diferentes de tudo o que ele já havia visto. Esse homem, que ele descobriu se chamar Yuuri, sempre sorria para ele e mais ainda para Nina, muito estranho, na opinião da criança. Ele só não implicava com a felicidade dela, pois gostava de vê-la sorridente e também porque logo se esquecia dos dois bobo-alegres, assistindo admirado todos os saltos e passos muito parecidos com o balé naquela pista, com a diferença talvez do gelo e das sapatilhas, ali substituídas por botas com facas na sola. Yuri adorava facas, eram legais e perigosas, por isso não podia mexer nelas, segundo sua mãe. E pelo jeito, não podia tocar nos patins, também, segundo Katsudon.

Yuri nunca podia fazer nada.

— Quer tentar patinar?

Era a primeira vez que o ofereciam isso, a oportunidade de calçar aquelas lâminas afiadas e entrar no gelo. É claro que a oferta não fora feita por Katsuki, terminando de monitorar uma turma juvenil em outra pista. Havia sido um ajudante da turma infantil, apiedado em ver o menino sentado, esperando o horário de Yuuri acabar. Cheio de boas intenções, achou que introduzi-lo ao gelo pudesse ser uma boa distração e sendo o responsável pelo garoto um funcionário daquele espaço, nada poderia dar errado, não?

Yuri estava confiante. Com os patins calçados e presos um pouco forte demais para o que ele imaginava antes de calçá-los, estava pronto! Entraria naquela pista, faria belos saltos e poderia se exibir por ser tão bom patinador! Katsudon veria só, mesmo que Yurio não tivesse bem um motivo para prová-lo alguma coisa.

Dispensou a ajuda para entrar no rinque e deu um passo confiante no gelo, que fez deslizar o pé e quase causar um espacate perfeito antes de tombar para o lado no chão frio. Constrangido, sentiu o rosto todo esquentar, desejando poder brigar com o gentil instrutor que vinha em seu auxílio.

— Calma, não precisa ter pressa… — riu inocentemente o instrutor. Yuri detestou o bom humor de sua voz. — Vamos, um pé de cada vez.

Fingindo não estar seguindo nenhuma orientação e que todo seu sucesso nos primeiros passos dava-se unicamente por seu talento inegável, Plisetsky continuou movendo os pés, cauteloso a princípio, tomando a liberdade de aumentar o ritmo conforme percebeu pegar o jeito. Sorrindo para si mesmo, abriu distância do instrutor, deslizando as lâminas sobre o gelo e admirando as linhas que deixava para trás com o funcionário. Ele sabia que seria fácil! Quando o deixariam saltar?

Dividindo atenção com as outras crianças de sua turma, o monitor deixou que Yuri se divertisse um pouco e voltou a atentar-se aos outros alunos. O menino estava tão confiante e contente que poderia passar alguns minutos desacompanhado, o suficiente para Katsuki ir buscá-lo depois. Caso o garoto tivesse algum problema, ele o chamaria, afinal, todas as crianças pediam ajuda, não tinha nada com o que se preocupar.

É claro que Yuri não era uma criança como as outras e se o monitor daquela turma não sabia disso, Yuuri estava plenamente ciente.

Havia sido ainda em sua turma que Katsuki sentiu algo esquisito incomodando seu peito, como um princípio de ansiedade. Estava preparado para se afastar e esconder aquela crise, quando o enteado encheu sua mente. Preocupado, repassou mentalmente todo o acordo discutido até o fim do expediente e repetiu para si mesmo onde Yurio deveria estar sentado, o esperando. Ele ficaria bem, sim, ficaria.

— Vamos finalizar um pouco mais cedo hoje, tudo bem? — avisou Yuuri, em seu russo acentuado e de gramática em parte limitada. — Cinco voltas na pista, sem saltos, apenas para alongar, e podem dar a aula por finalizada.

As crianças concordaram obedientes e Yuuri confiou que elas não tentariam nada imprudente enquanto encaixava o protetor de patins nas lâminas. Estava agitado o bastante para não ter paciência de substituir seu calçado por um tênis convencional, se equilibrando nas lâminas enquanto deixava o espaço do rinque para a pista extra, no fim do corredor.

Chegar onde deveria estar Yuri e descobrir o banco vazio, descompassou o coração de Katsuki antes que pudesse puxar fôlego e perguntar aos gritos desesperados sobre onde estava seu filho, até sua atenção ser levada para a única criança solitária na turma infantil de patinação.

O auxiliar começou a pedir desculpas a Yuuri assim que o viu retirando os protetores das lâminas dos patins, pronto para entrar no rinque, explicando não ter notado Plisetsky parado no meio do gelo devido seu bom desempenho nos primeiros passos e um amontoado de desculpas que Katsuki gentilmente dispensou. Movendo-se com mais calma se comparado com o desespero de minutos antes, ele se aproximou de Yurio com cautela, percebendo, conforme o garoto se fazia mais perto, que ele tremia.

— Hey Yurio, tudo bem? — Antes de ter conseguido evitar chamá-lo pelo apelido, Yuuri se percebeu cometendo a gafe que fazia o enteado ignorá-lo uma semana inteira. Surpreso por não ter recebido nenhum olhar condenador ou a inocente ofensa que julgava porco o maior dos ultrajes, Katsuki se deu conta de que aquela situação era mais séria do que julgava.

Com a presença do padrasto, o menino enrugou o rosto em uma expressão irritada, torcendo os lábios em um bico que disfarçava sua vontade de chorar. Não queria dizer isso ao porco, mas estava morrendo de medo de nunca mais conseguir sair do meio daquele rinque.

— Yuri, por favor… — O adulto sabia que uma abordagem minimamente agitada provocaria o pior do temperamento difícil de seu enteado, então evitou as perguntas preocupadas e tocou levemente no ombro tenso, chamando atenção de Yuri de forma discreta. — Olhe para mim.

Fosse pela gentileza no pedido do padrasto, ou pelo medo paralisando seus joelhos, Yuri foi incapaz de negar a atenção. Fechando os dedos na barra da jaqueta forrada, encontrando no gesto a força necessária para manter-se equilibrado, ele ergueu os olhos para Katsuki, jurando a si mesmo ser capaz de fazê-lo comer gelo se aquele porco chorão se atravesse a fazer piada daquela situação.

— Como você chegou até aqui? — perguntou deslumbrado. — Você veio sozinho? — Calado, Yuri assentiu, completamente desarmado pela positiva surpresa de Katsuki. — Yurio, você tem noção de como isso foi incrível? É a primeira vez que patina e você avançou sozinho doze metros!

— Isso é muito? — Distraído do medo de momentos antes, foi possível ver Plisetsky relaxar a postura e soltar a barra da jaqueta.

— Olhe você mesmo! — Somando à frase de incentivo, Yuuri apontou para o lado oposto, a entrada do rinque às costas do menino.

A intenção de fazê-lo relaxar e começar a se mover sem notar estava dando certo, e logo Yurio estava torcendo o pescoço para trás, tentando enxergar o limite oposto da pista. A única coisa que o parou foi, em gesto instintivo, tentar dar um passo para o lado, travando novamente ao se lembrar do porquê ter parado no meio do gelo.

Calmamente, Yuuri apoiou as mãos nos ombros pequenos, o girando para a entrada vazia, fingindo não ter ouvido o exasperar assustado de Yurio e assim aumentar o constrangimento da criança, tão orgulhosa da própria coragem.

— Se você veio até aqui, é porque consegue voltar. — Katsuki não sabia, mas aquelas palavras haviam tido enorme impacto e significado para Yuri. — E você não precisa voltar sozinho. — Oferecendo a mão agora como apoio, sorriu aliviado quando viu Yurio agarrar-se à ela sem se preocupar se aquilo iria ferir ou não seu orgulho. Menos tenso, agora que tinha em quem se firmar e encorajado pela companhia do padrasto — algo que ele jamais saberia, era lógico —, Yuri voltou a se mover, sorrindo confiante com a pequena torcida que Katsuki fazia ao seu lado.

Tendo a saída como linha de chegada, Plisetsky deslizou os pezinhos trêmulos, apertando a mão de Yuuri conforme se aproximava, profundamente concentrado em concluir aquela pequena missão, obstinado pelo sucesso. Quando faltava menos de dois metros para alcançar o muro de contenção, sentiu a mão ficar vazia e em suas costas, a palma de Katsuki o conduzindo antes de soltar e fazer o enteado deslizar sozinho, deixando para Yuri a conquista solo daquela aventura.

Tropeçando do gelo para a lateral externa do rinque, o menino se agarrou às barras laterais e olhou para Yuuri com os olhos grandes, surpresos por ter conseguido sozinho chegar até ali, revezados com a felicidade de ter feito algo encarado por ele como grandioso. Orgulhoso, empinou o peito e respirou fundo, exibido pelos aplausos da única plateia, celebrando com aquela ovação solitária e muitos elogios, o brilhantismo de Yuri em sua primeira vez no gelo.

Para Yuuri, ver o enteado feliz como há muito não acontecia plenamente, foi o bastante para fazê-lo sorrir também.

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A plateia desfalcada, formada apenas por parentes e amigos dos competidores locais, podia até desanimar quem esperava uma grande torcida chorando e arremessando pelúcias temáticas, como nos grandes circuitos europeus que Yuri sonhava participar um dia. Para ele, todavia, poucas pessoas na arquibancada significava poder ficar de olho em tudo e todos, principalmente a parte que se dizia todos, na qual seu padrasto não estava ali como deveria, somando à torcida e fazendo volume como todos. Ele mataria aquele porco se perdesse seu programa livre.

O acaso, mostrando estar ao lado de Plisetsky — ou de Yuuri —, apresentou Katsuki poucos segundos depois do garoto amaldiçoar três gerações passadas da família do japonês, esbaforido e um pouco corado da corrida que tinha feito até o local. Nem a correia de sua rotina saturada de trabalho e o trânsito de Moscou foram capazes de prejudicar a pontualidade japonesa de Yuuri. Ele não perderia a apresentação do enteado por nada.

Se dependesse de Katsuki, ele tiraria a semana das apresentações de Yurio de folga, apenas para acompanhá-lo em tempo integral para acalmá-lo e principalmente se acalmar. Nunca deixava suas paranóias e crises de ansiedade chegarem a conhecimento do menino, por medo, mais um de tantos, disso poder afetar a concentração dele e prejudicar seu desempenho. Como havia estabelecido há seis anos, não deixaria seus receios transparecerem, passando de algum jeito por cima das próprias angústias pelo bem de Yuri.

Dramático demais, um mártir desconhecido? Não; apenas Yuuri Katsuki sendo Yuuri Katsuki. Ele nunca era a prioridade.

Alheio a isso, Yurio aguardava sua vez de entrar, enquanto o padrasto pedia licenças demais para chegar a um lugar que julgasse bom o bastante para começar a tirar o material de filmagem da bolsa e encaixar no pescoço a alça da câmera fotográfica — profissional, com lente ajustável e flash embutido, uma generosa oferta de toda a família Katsuki, diretamente do Japão — para filmar e fotografar todos os mínimos detalhes da apresentação. Sempre aquele mico…

Calados, ambos esperaram, cada qual de um lado daquele rinque, a vez de Yuri entrar, lidando com a expectativa o melhor que podiam. Era sempre assim, uma vida toda parecia passar lentamente até chamarem por Plisetsky, para depois acabar em minutos que corriam como poucos segundos. O coração de Katsuki não estava pronto para nada daquilo.

Pelo bom desempenho de Yuri na apresentação do dia anterior, tendo conseguido segunda colocação no programa curto, ele seria um dos últimos a ser chamado. Yuuri sabia que o enteado não havia ficado nada contente com a colocação, embora tivesse se certificado por elogiar até o último fio de cabelo do garoto, e temia o que sua insatisfação pessoal pudesse provocar. A técnica era sempre elogiada, acima da média, mas a expressão artística perdia pontos quando se tratava de interpretação, já que, apegado à imagem de durão que queria passar, Yuri não desfazia a expressão séria, tencionando se parecer com os grandes e intimidadores tigres que desde pequeno ele gostava. Yuuri jamais ousaria dizer que de tanto tentar parecer com o tal ice tiger of Russia, o efeito era totalmente o oposto, fazendo-o parecer uma adorável criança nas portas da adolescência, tentando desesperadamente ser um adulto, uma fase rebelde, porém comum, de quem mais parecia um punk do que um tigre, em si.

Mas quem era Yuuri para falar alguma coisa? Embora um filhote, ainda, as garras de seu enteado eram muito afiadas para ele se arriscar a tanto. Nina com certeza o provocaria, mas ela jamais sairia ferida de uma piada, isso nunca acontecia.

A escolha para apresentação foi o romântico e nada usual para o perfil agressivo de Plisetsky, Ballade pour Adeline. Ninguém tinha entendido a razão dessa escolha, não quando existiam outras músicas clássicas com o ritmo mais agitado que Yuri ansiava, exceto Katsuki. Aquela música estava em um dos CDs que ele comprara com a esposa, quando juntos começaram a fazer do apartamento de Yuuri, o lar dos três, uma coleção sem dono, mas que após o falecimento de Plisetskaya, carregava todas as recordações dela. O que confundia Yuuri era não ter ideia do quanto o enteado se lembrava daquela feliz época. Já fazia tanto tempo e ele era tão jovem...

Seus pensamentos foram interrompidos quando do alto falante, o anúncio da participação foi feita e ele, sozinho, aplaudiu por metade da plateia. Praguejando aquela vergonha pública em seus pensamentos, Plisetsky deslizou até o centro do rinque e aguardou os primeiros acordes do piano, mãos e pés posicionados, olhos fechados e rosto voltado para o gelo. Calmo, suave… Tudo daria certo e ele arrancaria o ouro das mãos do adversário.

— Yurio!! Ganbatte!!

Depois disso, cuidaria de arrancar também a língua do padrasto.

Se faltava expressão em seu desempenho artístico, em técnica, era impossível não reconhecer quão boa era a performance de Yuri, compensando a interpretação inexpressiva com grande foco nos spins e um potencial crescente para saltos, o que poderia garantir destaque quando entrasse na categoria sênior e desenvolvesse melhor aquela habilidade. Com o peito estufado de orgulho com o que via, Yuuri somou os próprios aplausos aos da plateia, esforçando-se para conter as lágrimas. Era melhor guardá-las para o final.

Ou melhor nem guardá-las. Yuuri se esqueceu completamente quão orgulhoso estava do filho, quando ele aproveitou a segunda metade da apresentação para encaixar um quad salchow completamente incondizente com o ritmo romântico e com sua pouca idade, quase caindo na finalização meio torta. O desespero e todas as desgraças sofridas em antecedência quase fizeram parar o coração de Yuuri. Ele não sabia se iria parabenizar o enteado por isso ou colocá-lo de castigo.

De qualquer forma, o salto da quase discórdia passou por cima da cara amarrada de Yuri e o enorme bico de seu padrasto, carregando Plisetsky para o topo do pódio sem nem considerar a apresentação seguinte. O sorriso do primeiro medalhista era uma mistura de escárnio com realização pessoal, uma vingança só existente na cabeça adolescente. Testemunhando a felicidade mórbida naquele rostinho rosado pelo esforço da apresentação, Katsuki não sabia bem o que pensar daquela rivalidade tão agressiva, mas enquanto ela não fosse destrutiva, Yuuri achava que estava tudo bem. Que fase… Ele tinha sido tão complicado na mesma idade?

A bronca que tinha pensado em dar foi totalmente esquecida quando enfim Yuuri conseguiu se encontrar com o enteado. Feliz e sorrindo orgulhosamente para as câmeras fotográficas, Yuri expressava toda a alegria e realização por ter passado por aquela competição e saído vitorioso. É, talvez ele pudesse deixar aquela conversa passar, pelo menos daquela vez.

Deixado respirar sozinho pela primeira vez desde que desceu do pódio, Plisetsky viu Yuuri se aproximar com um enorme sorriso, o fazendo sentir a mesma necessidade de sorrir descaradamente, quando se lembrou que era um adolescente muito reservado e cool para demonstrar felicidade sem um contexto convincente. O sorriso que durou poucos segundos foi dissipado para lhe devolver a mesma expressão desinteressada e com ela as reclamações que já estavam se tornando típicas:

— Você se atrasou. — Não existia desculpas ou perdão para a falta de Yuuri na abertura da competição. Como se fosse ele o adolescente travesso digno de puxão de orelha, Katsuki riu sem graça, encolhendo os ombros.

— Me desculpe a demora, Yurio, tive uma papelada enorme para conferir das rematrículas… — pediu, sem se lembrar de que aquele apelido era proibido, principalmente em público. Revirando os olhos verdes, o garoto apenas olhou para o lado, fingindo com certa perfeição, não estar nenhum pouco preocupado com a ausência dele.

— Tanto faz, eu podia entrar sozinho. — A resposta do japonês foi rir.

— Sei que sim. — Esfregando uma mão na outra, ele disfarçava o tremor nervoso com a desculpa da temperatura abaixo de zero. — Estava muito ansioso? — Bufando em desprezo, Yuri deu de ombros, irrelevando aquele tipo pequeno de sentimento que fingia não o afetar.

— Claro que não.

— Isso é ótimo! Você foi…! — riu, seu orgulho pelo filho não o deixando terminar de falar. — Inacreditável, cada dia mais você se mostra um patinador incrível! Seu talento é admirável!

Olhando para a medalha de primeira colocação em seu peito, o garoto mexeu no cordão colorido, pensando com o prêmio o que deixou exteriorizar em dúvida logo depois.

— Acha mesmo? Eu não consegui finalizar direito aquele salchow…

— Yurio, todo o seu programa foi maravilhoso, não é um erro que vai colocar tudo a perd- — Yuuri parou de tentar consolar o enteado quando enfim se lembrou do que tinha esquecido de lembrar, em uma confusão mental que o travou alguns segundos. O que ele deveria ter bronqueado, mesmo? Oh sim, o salchow, o quad salchow, uma decisão grande demais para um adolescente, uma criança fazer! Sim, era isso que ele faria! — Pensando bem, fazer aquele salto foi muito arriscad-

— Com licença, é o senhor o responsável legal por Yuri Plisetsky? — Fora da mente de Yuuri, o estranho que interrompeu o nem começado sermão não tinha como saber das intenções paternas e todo o diálogo de repreensão necessário no momento. Repleto de boas intenções, o homem sorria para ambos, sem saber para quem deveria se dirigir primeiro.

— Sim, sou eu… — Confuso com o aparente reconhecimento de Yuri para com aquela pessoa, Katsuki aceitou o aperto de mão oferecido, confuso se deveria ou não conhecer o nome daquele homem. Ele estava perdendo alguma coisa? — O senhor é…?

— Georgi Popovich, olheiro de Yakov Feltsman. — Yuri murmurou, muito ciente daquele rosto e também do outro que volta e meia aparecia por aí providenciando estrelas em potencial.

— Parece que seu filho já me conhece — riu Georgi, tirando do bolso um porta-cartões prateado de aparência muito cara. Não sabia se pelas roupas de alfaiate, as fivelas brilhantes nos sapatos ou aquela regalia inútil, porém muito bonita, fato é que ele parecia muito profissional. — Meu contato, senhor…?

— Katsuki! — Hipnotizado pelo requinte, ele já estava se esquecendo de responder. — Yuuri Katsuki! — Não somente a presença destoante de Georgi era fascinante, como também seu cartão era holográfico. E pensar que Yuuri estava vestindo a mesma jaqueta forrada, comprada há quatro anos… — E o senhor trabalha com o quê?

— Ele é olheiro de Yakov Feltsman! — Yurio repetiu, mãos para cima, completamente indignado. — O técnico responsável por lançar os principais nomes da patinação russa dos últimos, sei lá, setenta anos?!

Georgi riu com a piada, uma que Feltsman com certeza não teria gostado.

— É quase isso. Yakov cresceu na carreira como técnico e aos poucos montou um plano de treino que se mostrou muito efetivo. Os principais nomes de sucesso da Rússia chegaram ao pódio Olímpico pelas mãos dele, em cinco situações diferentes. — Arregalando os olhos castanhos, Yuuri olhou para o enteado. Por que ele não sabia nada daquilo? — E é aqui que eu entro, senhor.

— Sou todo ouvidos — incentivou, incrédulo ainda com tamanha abordagem.

— Yakov há muito passou da idade de se aposentar, mas não quer exatamente largar o ofício que construiu do zero, o que é compreensível. Por isso, nos últimos três anos, ele tem permanecido na parte administrativa, tendo delegado a mim e ao meu colega a tarefa de buscarmos potenciais patinadores para a equipe. — Voltando a olhar para Plisetsky, ele sorriu, encorajador. — E o que eu vi hoje, eu não vi nos últimos três anos, nem nos últimos dez.

Katsuki sabia que Yurio era um jovem patinador incrível, incomparável com os outros de sua idade, mas ouvir isso da boca de outra pessoa era surpreendente e emocionante, e ele sentia estar dobrando de tamanho, estufado de orgulho. Perceber o brilho nos olhos de seu enteado era ainda mais tocante.

— Senhor Katsuki, eu não costumo fazer esse tipo de proposta sem consultar Victor, meu colega. Nós sempre levamos o perfil dos patinadores em potencial e discutimos bastante antes de contatar os familiares, mas seu protegido possui um talento que não tem discussão e, no que depender de mim, a vaga irá além do nosso próximo curso de verão.

A felicidade de Yuri não cabia no sorriso escancarado, ainda que ele quisesse disfarçar a empolgação forjando um semblante desinteressado e blasé, resultando na careta mais engraçada do mundo.

Yuuri não sabia como se expressar diante de tão boa oportunidade, sequer caída dos céus, mas praticamente descida das nuvens nas mãos de um ser celestial. Desde os dez anos de Yurio, ele buscava se informar sobre escolas que tivessem espaço disponível para o enteado treinar, técnicos na cidade que pudessem dar uma maior chance para seu filho crescer e ganhar patrocínio. Se Georgi estava disposto a garantir uma dessas oportunidades para Yuri e o garoto já se mostrava ansioso com a proposta, Yuuri era mais do que a favor do curso de verão. A partir daquilo, sua mente dividia-se em inúmeras possibilidades de futuro e ele quase não conseguia imaginar quão longe Yurio poderia chegar.

— Eu quero conhecer suas condições e tirar algumas dúvidas, mas a princípio, ficaria mais do que contente em autorizar a participação de Yurio no curso de verão! — Popovich sorriu, satisfeito com a resposta, e o mesmo fez Plisetsky, daquela vez sem disfarçar os sentimentos positivos que julgava serem tão vergonhosos. — Vai ser ótimo para ele passar as férias se dedicando a algo que gosta, fico até mais aliviado que Yurio tenha uma ocupação nessa época do ano, já que duplica o interesse nas minhas turmas e não consigo conciliar direito minha atenção para os alunos e a parte familiar.

Voltando a emburrar como o pré-adolescente resmungão que era, Yuri cruzou os braços e desviou o rosto corado para a pista. Maldito porco, sempre o constrangendo de alguma forma.

— Estou com todo tempo do mundo para esclarecer qualquer dúvida, senhor Katsuki. Tenho certeza que não somente o curso será maravilhoso para ele, como uma experiência muito enriquecedora. Nós sempre nos certificamos de organizar atividades coletivas com os alunos para eles aproveitarem ao máximo o tempo de lazer, os levando em passeios turísticos e de recreação nos melhores pontos de São Petersburgo, temos inclusive um acordo que prioriza a entrada dos nossos alunos em museus e-

— Espere, me desculpe… — Yuuri pediu, atravessando o discurso empolgado de Georgi. — O senhor disse São Petersburgo?

Ambos, Georgi e Yuri, encararam Katsuki, sem saber como reagir à confusão do japonês. Tão rápida quanto havia sido toda aquela proposta, eles haviam se esquecido de que Yuuri até então não sabia da existência do curso de verão e a equipe de Yakov Feltsman.

— É onde estamos instalados, senhor Katsuki.

— Eu… Eu não fazia ideia…

— Se sua preocupação é onde Yuri ficará, temos dormitórios disponíveis e todas as refeições inclusas em horários extremamente pontuais, por imposição de Yakov, é uma garantia nossa, tudo isso incluso em um valor praticamente simbólico para o trimestre.

— Não é bem isso que me incomoda… — hesitou, indeciso quanto a expor ou não aquele receio. — Acredito que sejam muitos alunos nesse curso… Qual a garantia de que Yurio será chamado após ele?

A resposta exigia sinceridade, sem nenhuma esperança a ser erroneamente alimentada para nenhuma das partes.

Porém...

— Não posso falar por Victor, senhor Katsuki, mas por mim, a vaga já é dele.

Com aquela informação, Yuri não fazia ideia se seu padrasto iria reconsiderar ou não a decisão. Embora não fosse o tipo de parente que ronda a vida do filho sem um minuto de descanso, autorizar a ida dele sozinho para uma cidade tão longe e totalmente estranha aos dois dificilmente estaria nos planos de Yuuri, que sempre fez de tudo para ser presença constante em seu crescimento, mesmo com as dificuldades e falta de tempo. Yurio podia dizer adeus à chance que sequer conseguiu provar.

— Posso ficar com o seu contato e pensar um pouco? — pediu Yuuri, um ponderamento que Plisetsky não teria considerado, mas que já alimentava seu ânimo. — Até quando estará na cidade? Onde posso te encontrar?

— Não precisa ter pressa, só fechamos as turmas em abril, o senhor pode me contatar até a última semana de março, se assim desejar, prometo que até lá a vaga é de Yuri.

A expressão de Yurio, um tanto aflita e ansiosa, chamou atenção de Yuuri, que tentou acalmar o adolescente com um sorriso mais contido, forçado por cima de todos os receios que uma grande mudança podiam inspirar. Parecendo entender a mensagem dos olhos castanhos, Plisetsky se acalmou um pouco, aceitando sem reclamações ter o cabelo bagunçado, apenas daquela vez.

— Prometo pensar no assunto.

Assim como o japonês, Georgi também sorriu, guardando o porta-cartões iridescente no bolso.

— Ficaremos no aguardo.

.:.

Yakov encarou Georgi e Victor sem conseguir expressar nenhum dos inúmeros sentimentos que embaralhavam sua cabeça e reviravam seu estômago ao mesmo tempo. Aquela escola era o investimento de toda uma vida, anos de estudo e dedicação, elaboração de aulas, testes e descartes de tentativas frustradas, até chegar no programa de treinos mais próximo da perfeição que podia, para entregar tudo pronto, como um belo presente embalado, nas mãos de dois de seus melhores e mais confiáveis alunos, embora apenas juízo fosse algo questionável, tendo em vista o que havia sido aprontado. Ver a pequena mancha, a pisada fora da linha, providenciada por eles, o fazia reconsiderar a escolha, sentindo o arrependimento pesar em cada fio de cabelo a menos em sua cabeça.

— Então, não somente um, como ambos, passaram por cima do sistema de classificação, e colocaram, por conta própria, dois alunos na turma de vagas limitadas? — perguntou com voz quase sumida, encarando as duas fichas que tinha em mãos.

— Yakov, eu posso explicar… — Georgi começou, tentando ponderar a situação.

— Ora, por favor! — Os planos de Victor, todavia, eram um pouco diferentes. — Quem passou por cima de nós foi Sara Crispino no circuito europeu, você lembra! A representante russa não chegou nem no pódio! Ludmila Babicheva é a oportunidade de revidar o que nos foi tomado ano passado!

— Victor, também não podemos garantir que sua escolhida saia da categoria júnior pronta para competir pelo ouro da sênior… — Popovich, mostrando dar razão ao lado de Feltsman, tentou trazer luz às ideias de honra e vingança do amigo.

— Ah, eu posso, sim! — revidou, convicto. — Você precisa ver, Georgi, vocês dois precisam ver, ela é fantástica, com a devida instrução, instrução essa que apenas nós podemos dar, essa menina vai sair para o kiss and cry com a medalha no pescoço!

Terminada sua enérgica defesa naquele tribunal imaginário, Victor retomou a compostura e ajeitou os cabelos, bagunçados pela agitação e agressivo gesticular de braços. Sentado atrás de sua mesa, Yakov apoiou a testa entre as mãos, escondendo as diferentes expressões oscilando entre cansaço e vergonha alheia.

— E você, Georgi? — perguntou Feltsman, com o rosto ainda longe da vista de seus dois ex-alunos. — Qual sua justificativa?

Popovich reconhecia não ser tão bom de lábia quanto seu amigo, que mesmo sem dizer nada sobre Mila, estava convicto de seu talento. Ele, por outro lado, sentia ter pontos muito bons a serem observados e elogiados, mas nenhuma ideia de como poderia defender o merecimento de Yuri, se muitos outros também mereciam essa chance.

— O menino tem diferencial — falou, sem erguer a voz como teria feito Victor. — E uma aparente fome por crescimento que o faria alcançar um objetivo mais rápido que outros patinadores.

— Aqui está que ele fez um quad salchow. — Deixando a ficha de lado, Yakov ergueu os olhos para Georgi, as ralas e pálidas sobrancelhas arqueando em ironia. — Essa “fome por crescimento” que você fala, eu chamo de indisciplina.

— Que ele poderia conquistar aqui.

O semblante de Yakov pesou, incrédulo com a resposta de Georgi e sua aparente rápida troca de lado. Até o fim daquela conversa, Feltsman desconfiava que não teria mais pelos na cabeça e sobrancelhas.

— Eu acredito na boa intenção dos dois e na habilidade de ambos em reconhecer potenciais atletas, mas se temos uma regra, é para ser seguida.

— Tenho certeza que Babicheva se destacaria, com ou sem seletiva — afirmou Victor, irredutível.

— Posso dizer o mesmo de Yuri Plisetsky.

— A questão não é se eles conseguem ou não. Todos os alunos selecionados podem conseguir, o curso de verão é para medirmos quais deles se adapta ao que temos criado e nem sempre os preferidos se mostram os mais aptos. — Sendo Victor e Georgi prova do que ele havia dito, preferiram por se calar. — Vocês sabem disso, vocês viram e ainda veem isso ao longo dos anos.

— E se eles forem negligenciados nessa avaliação? Uns criticam a falta de técnica, outros apontam pouca expressão artística, um patinador pode impressionar, mesmo se seu desempenho em sala não for impecável!

— Nossa avaliação não negligencia ninguém, Victor. — Yakov declarou, firme. — Todos recebem o mesmo treino e cronograma.

— Mas nem todas as pessoas respondem igual a uma forma de ensino. — Georgi voltou a argumentar. — Diferentes atletas exigem diferentes didáticas. As pessoas elogiam nossos medalhistas, mas nós sabemos que a formação de patinadores está abaixo do esperado. Talvez o que tenha nos feito render menos pódios nas últimas competições é nessa padronização de ensino, limitando novos competidores com métodos que, reconheço, foram muito efetivos, mas já não passamos da hora de inovar?

— Me chamou de antiquado? — Aquilo doía mais em Yakov do que ele gostava de admitir. — Toda essa ladainha para eu aceitar a escolha aleatória de vocês, é? Pois esqueçam.— Desapontado, Victor bufou ruidosamente. — Eu mesmo vou escolher a nova turma.

Victor e Georgi arregalaram os olhos, apavorados com o que aquilo significava.

— Yakov, não pode fazer isso! — Nikiforov simplesmente gritou, sem apresentar nenhum argumento além de sua revolta.

— Eu já conversei com o responsável do menino, eles estão de mudança para São Petersburgo. — Georgi era visivelmente o mais preocupado com aquela decisão, uma que pegou até mesmo Victor de surpresa.

— Você fez o quê?!

— E eu achando que você era o mais ajuizado… — lamentou Yakov, erguendo-se de seu assento logo depois. — É bom que esse garoto seja tudo isso que acredita, eu não queria estar em sua pele se ele não passasse do curso de verão.

Para azar de Popovich e também Victor — que embora não tivesse dito nada, havia prometido mais do que podia à família Babichev —, aquilo significava que Feltsman não voltaria atrás.

— Não pode abrir uma exceção?

— Não é somente uma, são duas exceções — bronqueou, nada satisfeito com a atitude de seus funcionários. — Abro uma exceção e ela se torna regra, virando uma bagunça. Não, negativo. São vinte e um anos de trabalho e eu não vou mudar agora porque vocês agiram como duas crianças empolgadas com o brinquedo novo. — Abrindo a porta do escritório, ele oferecia a saída. Precisava estar só para poder processar o que tinha acontecido e o que faria a partir dali. Não podia acreditar que depois de três anos acomodado em seu escritório, teria de voltar ao gelo por culpa de seus ex-alunos…

Enquanto isso, Georgi e Victor apenas esperavam que seus tiros certeiros não tivessem saído pela culatra.

.:.

Nem a mais barata das lâminas de patins, estava acessível para o orçamento de Yuuri. Ele ainda podia, com muito esforço e lágrimas, pagar por um par, mas quando se precisava de dois, pesava mais sua consciência que o próprio bolso, com o medo sempre presente de acabar se machucando por falta de equipamento adequado. Uma fratura era o que ele menos precisava naquele momento.

Se dar aulas com lâminas gastas o deixava dividido entre abraçar o perigo ou fazer uma dívida, a escolha priorizada para compra de materiais novos e investimento de equipamentos nunca era uma confusão; com o curso de verão prestes a começar, Katsuki recebeu em mãos a lista de materiais e equipamentos exigidos para os treinos e não hesitou um só minuto em concordar com os termos e condições.

Haviam garantido que a totalidade do curso tinha um custo-benefício simbólico, quase gratuito, em compensação o material da turma poderia facilmente cobrir aquele curso e mais metade de outro. Collants, meias, sapatilhas, taxa de uniforme da instituição, marca específica de lâminas… Ele não queria nem imaginar quando aquelas aulas acabassem e Yuri fosse definitivamente efetivado nas competições oficiais. Talvez fosse melhor cogitar um financiamento com o banco — ele não queria mexer na poupança de Yuri agora —, ou fazer uma ligação para Hasetsu e ver como andavam as coisas em Yuu-topia, para quando um emergencial empréstimo se fizesse necessário.

— Adorei os protetores de patins. — Levou certo tempo para Yuuri perceber que a voz risonha estava falando com ele. Bem vestido e exalando perfume caro, o homem ao lado fez Katsuki se sentir muito desleixado com seu casaco velho e o valenki gasto em seus pés.

— Oh, não são para mim… — respondeu sem graça, colocando os protetores com estampa tigrada de volta à prateleira.

— Mesmo? — o outro riu suave. — Pois acho que combinaria com a mochila.

A mochila de igual estampa trazida por Yuuri, também não era para ele, mas um presente surpresa para Yurio, pela oportunidade conquistada. A mochila que o garoto tinha já estava ficando pequena e havia sido um presente que seus pais mandaram através de Mari, três anos antes. Além de útil, o garoto merecia um agrado de vez em quando.

— Essa estampa é um pouco jovem demais para mim — riu, desviando o olhar para longe dos olhos azuis-esverdeados e o sorriso brincalhão.

— Não existe idade certa para uma peça de roupa — esclareceu o outro, fingindo estar procurando algo entre os suprimentos de patinação. — Mas há roupas que não devem ser usadas por ninguém, como o caso dessa sua gravata, se me perdoa a sinceridade.

Yuuri não conteve-se e riu alto. Sim, aquela gravata não era das melhores, mesmo não tendo nada de diferente. Quem sabe não fosse essa a razão que a deixava tão feia? Lisa, um tom pálido e tristonho de azul, um pouco fina demais para o nó feito rente ao pescoço… Nina costumava dizer que um barbante faria melhor trabalho e ele tinha de concordar.

Lembrar da falecida esposa tornou seu sorriso menos aberto e um tanto melancólico. A verdade era que Yuuri podia ter mais sete gravatas guardadas em casa, mas nenhuma delas carregava a memória e as risadas de Nina, toda vez que ela dava um nó naquela peça.

— Acho que todo meu arsenal de roupas deveria ser interditado — respondeu depois de notar estar alimentando demais o sofrimento. Aquele não era o momento. Nenhum momento era o momento.

Encantado com Katsuki e seu bom humor discreto, o homem espiou discretamente a mão direita do outro, certificando-se que nenhuma aliança ali representasse algum empecilho em um possível futuro flerte. Para sua felicidade, a sorte o brindou com um sorriso tão aberto quando o seu próprio, se duvidar com o mesmo formato de coração, ao confirmar que o tímido sujeito de olhos puxados e russo formal, não tinha nenhum relacionamento que lhe estragasse o dedo.

— Sou Victor — apresentou-se, pouco polido para a educação russa que exigia patronímico e sobrenome logo no primeiro contato.

— Ah… Yuuri. — Confuso com o comportamento nada formal, ele também dispensou protocolos e se apresentou de forma mais leve. Entendia o bastante da cultura daquele povo para não passar vergonha, mas se um cidadão local estava se comportando diferente, não custava nada imitá-lo.

— Vai patinar? — perguntou Victor, referindo-se ao material que o outro trazia em um cesto. Não compreendendo essa parte, Katsuki apenas respondeu inocente.

— Oh sim, trabalho com isso.

— Mesmo? Eu também! — Lembrando qual a razão das próprias compras, a animação de Victor logo foi tragada para algum buraco negro dentro de si, restando apenas o fantasma de seu sorriso. — Embarco para o Cazaquistão em cinco dias.

— Uma promoção? Parabéns! — elogiou Yuuri, tão genuinamente contente pela oportunidade profissional de um completo estranho, que aquilo foi demais para o coração de Victor. De onde aquela criatura amável havia saído e por que não o apresentaram antes?

— Mais como um castigo. Meu colega e eu aprontamos algo que a chefia não gostou e estou sendo o único a arcar com isso… — Incapaz de colocar todo seu drama em ação ao lado daquele rapaz gentil, Victor informou toda sua desgraça com um grande sorriso, confundindo Yuuri na interpretação daquela notícia.

— Bom, pense pelo lado positivo, pode ser uma oportunidade de conhecer um lugar novo nas horas vagas.

— Resta saber se eu terei alguma. — Com aquela declaração, ambos riram, Yuuri sendo o mais discreto, como esperado.

— Acho que consigo te entender… Estou em São Petersburgo há duas semanas e ainda não tive tempo de conhecer mais que o caminho do trabalho.

Os olhos de Victor brilharam assim que seu cérebro terminou de transformar a informação de Yuuri em uma ideia; se ele era novo na cidade e Victor ainda tinha alguns dias para jogar fora, por que não fazer deles uma oportunidade de conhecer melhor aquele adorável rapaz? Ele estava mesmo precisando interagir com pessoas fora de seu círculo social.

— Yuuri, se me permite o convite… — começou, com seu melhor sorriso…

— Yuri?! — … para ser rapidamente ignorado, assim que o seu (ainda não) convidado atendeu o telefone e deixou de prestar atenção no mundo ao redor. — Eu estou terminando de pegar os ítens da lista, já estou a caminho! Não! Não mexa no fogão, deixa que quando eu chegar eu te levo para almoçar! N-não, não precisa fazer piroshki!

E assim, discutindo desesperadamente com a pessoa do outro lado da linha, Yuuri partiu em direção ao caixa, deixando para trás um homem desiludido e um coração partido.

— Sempre tão sortudo, Victor Nikiforov… — murmurou o outro, suspirando para os protetores de patins.

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As bochechas coradas indicavam quão constrangido Yuri estava com o primeiro dia de aula. Todos os estudantes selecionados para o curso, com idades variadas entre doze e dezessete anos, estavam ali, uns despedindo-se de seus pais, outros chegando sozinhos, sendo que a maioria já estava em pequenos grupos, fazendo amizade. Aquilo poderia fazer bem para Yurio, sempre tão sério e fechado para um adolescente tão novo, e Yuuri já antecipava mentalmente as melhores experiências para seu enteado.

— Vai ser ótimo esse curso, hein? — Tentou puxar assunto, sorrindo bem mais animado que qualquer um naquele pátio, tentando incentivar o garoto a fazer o mesmo. — Você está animado? — A resposta foi o rosto de Yuri intensificando o tom escarlate. — Ora Yurio, não precisa ficar nervoso, logo você se enturma, faz amizade!

— Katsudon — resmungou o menino, a frustração crescendo à medida que o vermelho do rosto estendia-se para o pescoço e quem sabe o resto do corpo. —, larga a minha mão.

Certo, o constrangimento não era pelo nervosismo do início do curso, mas do mico que seu padrasto o estava fazendo passar. Quem Katsuki tentava enganar com sorrisos trêmulos e frases motivacionais gritadas apenas para ele mesmo se convencer de que tudo estava bem? Yuuri estava apavorado em deixar o enteado sozinho e só não o esperaria do lado de fora até a saída, porque tinha uma turma para ministrar.

Sem ninguém que os chamasse para a aula, os estudantes organizaram-se para entrar antes do horário previsto, pretendendo cumprir com a pontualidade exigida por Yakov, que por alguma razão desconhecida, voltava a assumir o curso de verão naquele ano. Sem sustentarem mais nenhuma conversa paralela, deixaram o comportamento animado para trás junto com Yuri, ainda preso ao receio de Katsuki em deixá-lo ir.

— Eu preciso entrar — reclamou, parte sua temendo o atraso, enquanto a outra temia deixar o padrasto, por mais que ele não quisesse deixar isso transparecer.

— Certo… — Yuuri falou entre um suspiro trêmulo. — Não precisa ter medo, tá?

— Não estou com medo — o menino mentiu, achando que conseguia esconder alguma coisa de Katsuki. — Popovich disse que eu já estou dentro, não disse?

— Mas isso não significa que você não deva dar seu melhor nesse curso… — Soltando a mão de Yuri, Katsuki abaixou-se na altura do garoto, olhando-o bem nos olhos. — Deve aproveitar essa oportunidade e mostrar porque ganhou essa chance. Além disso, não relaxar vai te ajudar a não perder o ritmo. Se negligenciar esses três meses, retomar a prática intensiva pode te machucar.

— Eu seeeeeei… — reclamou, alongando cada palavra. — Posso ir, agora?

— Pode, pode sim, não quero te segurar mais. — Mas na verdade, Yuuri queria. — Tenha- Tenha uma bola aula, Yurio.

— É Yuri!

— Certo, certo! — Rindo sem graça, Katsuki voltou a ficar de pé, ocupando as mãos que não podiam mais segurar o filho, no uniforme do rinque onde trabalhava. — Tenha um bom dia, filho. Eu… Eu te am-

— Tá, tchau.

Segurando as duas alças da mochila, Yuri saiu correndo antes que o Katsudon começasse a dar uma de pai com discursos de orgulho e declarações melosas de afeto. Ainda não era nem oito da manhã, qual é!

Ainda assim, ele fingiu mexer em seus pertences enquanto aguardava com os demais em fila única, tentando espiar o lado de fora para ter certeza de que Yuuri continuava lá, pronto para pegar em sua mão e sair correndo, caso fosse necessário. Por pouco, Yuri não tomou a iniciativa de sair dali — não fugir, ele não estava com medo de nada e além disso a vaga já era dele —, mas antes que pudesse mirabolar melhor a ideia, Popovich apareceu e sorrindo gentilmente, convidou todos a segui-lo.

Uma última vez, Plisetsky tentou espiar o lado de fora, percebendo estranhamente aliviado, antes de ir, que Yuuri continuava lá.

Não que ele se importasse.

.:.

Encarando as três fichas sobre a mesa, Yakov mantinha o costumeiro semblante pesado, aquele que podia significar várias coisas, mas que no momento parecia significar a demissão de Georgi e Victor, esse último com poucas horas de retorno de seus três meses no Cazaquistão, e que já conseguia a proeza de ganhar uma bronca e um puxão de orelha literal. Feltsman estava muito velho para lidar com aquele tipo de situação.

Vendo-o ajeitar-se na cadeira, os dois homens à frente da mesa prenderam suas respirações por nenhum motivo, respirando novamente quando Yakov pigarreou e voltou à mesma posição anterior, a de profundo e talvez julgador interesse nos três nomes ali separados. Eles sabiam que, fosse a bomba prestes a ser estourada por Yakov, isso não demoraria a acontecer, já que a lista de aprovados seria divulgada ainda naquele dia, o que tornava ainda pior a expectativa de sua resposta; em breve, Georgi e Victor saberiam se suas indicações haviam sido um sucesso, ou causa de suas demissões.

— Então... — O começo da frase atravessou seus pensamentos longínquos e o coração frágil de cada um. Aquele “então” não dizia nada, mas ambos podiam sentir a punição. — Eu adoraria poder dizer que suas escolhas foram um fracasso, para que pagassem pela língua comprida de vocês, mas Babicheva e Plisetsky são bons. — Notando que nenhum de seus ex-alunos entenderam onde ele queria chegar, Yakov completou. — São muito bons, na verdade, se sobressaíram ao resto da turma em muitos exercícios, seria um crime prejudicá-los para dar a vocês uma lição.

— Isso é maravilhoso, Yakov, muito obrigad-! — A felicidade e empolgação de Georgi foi cortada com pouca consideração e cenho franzido.

— Ainda não terminei. — Escolhendo aleatoriamente uma das fichas da mesa, ele abriu a primeira e folheou preguiçosamente. — Yuri Plisetsky, treze anos. Ótimo alongamento, tem facilidade para a saída e finalização de todos os saltos duplos, relativo sucesso na execução de triplos e se eu não o proibisse, teria tentado um quad. — Georgi sequer tentou disfarçar o orgulho de sua aposta. — Os spins são quase impecáveis, nada que treino não aprimore isso. Concentração, inclusive, é um ponto forte, eu não tenho um aluno centrado assim desde você, Georgi.

— E eu? — quis saber Victor, levemente indignado. O olhar de condenação de Yakov respondeu por si só.

— É claro que muito desse equilíbrio e elasticidade pode se perder conforme ele cresce, mas… — Deixando a ficha de lado, ele encarou Georgi, carregando naquele olhar todos os sonhos e esperança de Popovich. — Quero pagar para ver. Ele está dentro.

O suspiro de alívio acabou por deformar toda a postura enrijecida de Georgi, que precisou se escorar em uma cadeira para não cair. Foram os três meses mais tensos de sua vida e ele podia sentir as entradas de seu cabelo aumentando cada vez mais. A causa da calvície de Feltsman certamente morava aí.

— Quanto Ludmila Babicheva, 16 anos — A escolhida de Victor fez saltitar o coração do rapaz. — foi uma das melhores surpresas. Fazia tempo que eu não via uma competidora do solo feminino com tamanho potencial, o que me faz pensar por que a esconderam tanto tempo assim nos Urais. — A observação era feita apenas para si mesmo, como se sua mente estivesse falando tudo em voz alta. — As entradas são um pouco grosseiras, mas ela evoluiu muito bem no curso. Seu diferencial fica nas finalizações, ela tem muita força nas pernas e tornozelos, não oscila em nenhuma finalização, por pior que tenha sido executada, acho que dá para fazer uma evolução grande com ela em pouco mais de dois anos, ou talvez menos. — Aliviado, Victor sorriu. Não perderia o couro, pelo menos não naquele dia. — E é muito carismática, ganha pontos facilmente na parte artística, coisa que falta em Plisetsky, Georgi, havia me esquecido de falar… — Deixando mais uma pasta separada com a ficha de Yuri, ele continuou. — Mas são patinadores com excelente potencial. Parabéns. — Pouco tempo restou para ambos ficarem contentes, quando novamente os olhos de Yakov estreitaram, dessa vez direcionando seu incômodo unicamente a Victor. — Agora… — Vendo a última ficha ser erguida, Nikiforov pensou que ela seria usada para lhe acertar o rosto. — Otabek Altin, 16 anos. Técnica bruta e alongamento limitado, mas com “saltos de impacto.” — Após um suspiro chateado, Yakov se voltou para Victor, visivelmente exausto. — O que você quer dizer com tudo isso?

— Quando ele salta, Yakov, você precisa ver, um lutz desse menino parece que vai por o gelo e todo um ginásio ao chão!

— Admirável sua empolgação, mas ele não estava no curso. — Por mais encrencado que estivesse, Victor não evitou expressar a frustração.

— Por favor, Yakov, você não queria mesmo que eu fosse ao Cazaquistão a trabalho e não procurasse por algum patinador!

— Exatamente, eu não queria. Você foi para trabalhar e aprimorar métodos de treino, Victor, por Deus… — Folheando a ficha do rapaz, ele não conseguia acreditar no que lia. — Se com essa idade ele não tem elasticidade, não pense que do dia para a noite ele vá conseguir isso.

— Não estou considerando colocá-lo para fazer um espacate no gelo, mas treinar o melhor que ele já tem!

— Victor, esse menino não tem uma única aula de balé em seu histórico!

— Ele pode fazer aqui! — Desesperadamente Victor tentou argumentar. — E além disso, por que tentar prender o garoto no molde clássico? É importante na patinação que todos os elementos encontrem equilíbrio, se em um ele não consegue um desempenho satisfatório, por que não compensar com os quais ele domina?!

— Isso foge totalmente do meu programa de treinamento! — Feltsman sabia reconhecer a importância de valorizar todas as habilidades de um profissional, mas o foco de seu programa agarrava-se à uma fórmula com forte referência clássica e intensas aulas de balé. Por melhor que fosse Altin em sua área de domínio, forçá-lo naquele ambiente poderia atrasar toda sua turma, poderia inclusive atrasá-lo. — Sou obrigado a pensar que Babicheva foi uma escolha de sorte da sua parte. Além disso, poderia ser desastroso para a carreira desse menino tentar mudar toda sua técnica, é cruel e um descaso com todo seu crescimento profissional.

— Mas e se eu continuar o treinando, dentro desse mesmo molde cazaque?

A sugestão era insana e por isso mesmo, a cara de Victor. Cuidar da turma classificada e dar atendimento exclusivo e personalizado para outro patinador ao mesmo tempo? Ele queria se matar, era a única explicação.

— Você não é capaz disso.

— Me deixe provar!

Incrédulo, Yakov olhou para Georgi, calado até então. Esperava que pelo menos dele, seu orgulho por sempre ter tido juízo pelos dois — exceto quando se apaixonava por alguma mulher de índole questionável… —, mas lá estava ele, calado como se não possuísse mais língua. Traído de novo, Feltsman já devia ter esperado…

— E se eu deixasse? Todos os quartos do dormitório foram ocupados, levaria o garoto para dormir embaixo do seu teto?

— Na verdade, Yuri Plisetsky não usará o quarto vago. — Georgi argumentou, disfarçando o sorriso discreto em seus lábios. — Seu responsável fixou residência em São Petersburgo, de modo que a permanência de Plisetsky em nossos dormitórios não se faz necessária.

Yakov devia imaginar que eles estavam mancomunados desde o começo.

— Certo, façam como bem entenderem. — Revirando os olhos, Feltsman juntou a ficha do patinador cazaque às outras duas, fingindo não notar a comemoração interna de seus ex-alunos e quase ex-funcionários, também. — Mas Victor, você está proibido de participar das próximas seletivas para o curso de verão até eu ver esse cazaque no pódio. — A comemoração foi interrompida pela metade, a decisão de Yakov o acertando como um soco. — E, por ter acobertado isso, Georgi Popovich, um ano de castigo para você, também. — Resmungando, ele ergueu-se da cadeira, e nenhum dos punidos soube dizer se o ranger era da cadeira ou de suas costas cansadas. — Para o bem ou para o mal, eu irei assumir essa seleção por um tempo e o mesmo farei com a nova turma. Se era a minha aposentadoria que queriam estragar, parabéns, vocês foram bem sucedidos, agora já podem sair.

Mantendo as bocas bem fechadas, Georgi e Victor saíram da sala dando um passo de cada vez para trás, sem ousar dar as costas para Yakov e assim serem vítimas de algum ataque longe de seus olhos.

Do lado de fora da sala, eles trocaram olhares não muito satisfeitos com o desfecho daquela história, mas conformados em saber que se Yakov estava de volta à ativa, podiam considerar que existiam certos males que vinham para o bem.

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Mal Yuuri abriu a porta do apartamento e Yuri atravessou sua frente, jogando a mochila ao lado da porta, chutando os tênis para cima e se jogando no sofá. Rindo do cansaço extremo do enteado, Katsuki pendurou a mochila jogada em um dos ganchos na parede, organizando os sapatos virados as lado dos dele, um costume japonês que Plisetsky jamais admitiria possuir.

Antes das aulas começarem, os treinos não esgotavam tanto o adolescente, que até conseguia manter uma conversa decente com o padrasto, no entanto, foi só a escola recomeçar com a grade de estudos que Yurio não conseguia passar um único dia sem se escorar pelos cantos, quase dormindo em cima do prato na hora de jantar. Yuuri sabia que levava certo tempo até uma pessoa se acostumar com uma nova rotina, mas no fundo, temia que a saúde de Yurio estivesse sendo prejudicada.

— Você quer sair para comer alguma coisa, hoje? — perguntou, tentando fisgar o interesse do garoto e mantê-lo acordado um pouco mais. A resposta veio sem nenhuma palavra, um gesto negativo que dispensava por os pés fora de casa. — Certo, então que tal piroshki para a janta? Faz tempo que não fazemos.

Por um momento, Yuuri jurou ter visto o enteado hesitar, mas logo seus ombros relaxaram e ele pareceu dissolver-se nas almofadas do sofá, como um dos hamsters de Phichit. Com o rosto enterrado na espuma, ele respondeu um baixo e abafado não, suficiente para Katsuki entender que ele estava indisponível pelo resto da noite e do fim de semana, se o deixassem dormir tudo o que sentia precisar.

— Vou preparar alguns sanduíches, então. — Yuri não respondeu à oferta do padrasto, o que já era rotineiro. Anos de prática o fez entender que suas poucas palavras com o silêncio de Yuri conversavam muito bem.

Na verdade, ele também queria ser capaz de chegar em casa, deitar em sua cama e esquecer do mundo ao redor. Só não estava literalmente destruído, porque ainda tinha pausas ao longo do dia para tomar fôlego e um copo de água antes de voltar ao gelo e lidar com as turmas que o empurraram. Estava habituado a trabalhar com uma turma atrás da outra, do mais variado tipo de nível, mas nunca tantos alunos uniram-se a volta de Katsuki, exigindo atenção. Era muito mais que o dobro, quase como a pista montada na Praça Vermelha de Moscou no fim de ano, sequer tinha espaço para os aprendizes patinarem em segurança, quase atropelados pelos mais ansiosos em fazer do rinque limitado, uma pista de corrida de velocidade. Em duas situações diferentes, Yuuri quase deixou a ansiedade o tomar.

O que freava as lágrimas e equilibrava minimamente sua oscilação emocional, era saber que Yuri dependia daquele emprego. Não era apenas Yuuri ali, sozinho, um recém-chegado na Mãe Rússia que podia recorrer às economias e passar o dia a pão velho, apertando o cinto para manter as roupas largas no lugar até uma oportunidade um pouco mais afortunada o permitir ter uma refeição completa. Valia a pena alguns sacrifícios pelo enteado, para não vê-lo passar por nenhum desses problemas. Pensando em tudo isso, percebia que sacrifício seria submeter Yuri àquela condição privativa, logo ele, uma criança — não mais tão criança assim, um quase adulto, que o menino adorava se dizer ser — enérgica e com tanto a aproveitar.

Yurio continuava sendo sua prioridade.

— Yuri, eu fiz aquele lanche cheio de coisas de geladeira que você gosta! — Katsuki anunciou animado. Havia sido em um dos primeiros imprevistos financeiros de sua vida sem Nina que Yuuri inventou de tapear a fome montando um lanche com tudo que pudessem achar na geladeira. Yurio, ao contrário do que esperava seu padrasto, adorou a ideia e criou um enorme monstro de ovos fritos com embutidos e repolho roxo; naquele dia, Yuri foi o único a comer.

Desde então, um lanche de coisas de geladeira se tornou um prato típico daquela família incompleta e por mais rebelde que fosse Yuri Plisetsky, ele nunca negava um sanduíche daqueles. Ou talvez dois, quem sabe um terceiro… Com refrigerante, sempre descia bem.

Mas daquela vez, a primeira em tantos anos, ele sequer ouviria o anúncio do padrasto; dormindo profundamente, abraçado à almofada tigrada que lhe servia de travesseiro, Yuri aparentava estar longe daquele mundo e ninguém saberia dizer que horas ele despertaria. Apiedado pelo cansaço do garoto e ao mesmo tempo, sorrindo em gratidão por testemunhá-lo tão relaxado depois de duros meses dedicados inteiramente à patinação, Yuuri deixou o prato de lado para bagunçar os fios claros, idênticos aos de Nina. Ela estaria tão orgulhosa do filho…

Antes de levar o próprio lanche para o quarto e ter um jantar silencioso na mais completa solidão, Katsuki buscou um lençol no quarto e cobriu Yuri, que não pareceu notar a leve agitação em cima de si, muito menos o cuidadoso beijo dado no topo de seus cabelos loiros.

— Boa noite, filho.

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As reações de Yuri Plisetsky eram contidas na maioria das vezes. Quando percebia estar se exaltando demais para os próprios padrões de felicidade, ele se auto-censurava e fechava a expressão, desprezando a causa da felicidade e se afastando o mais rápido possível para que não houvessem testemunhas daquela falha em sua personalidade, quase tão grave quanto matar alguém.

Phichit dizia para Yuuri que aquilo era natural da idade e que o amigo ainda teria que lidar com aquela fase por pelo menos uns oito anos ou mais. Katsuki mal podia esperar.

Felizmente, aquela era uma das raríssimas exceções, onde Yuri esquecia que era um adolescente misterioso, distante e calado, um projeto de punk russo que prometia enfrentar e destruir todos os adversários do gelo; ele simplesmente não podia se conter perto de felinos.

— É sério mesmo que eu posso levar um deles?! — perguntou com voz quase esganiçada de excitação. Os filhotes de gato miavam e tropeçavam um por cima do outro dentro da caixa de papelão, não tão novinhos quanto filhotes desmamados, mas pequenos e muito perdidos sem a mãe. Alguém teve coragem o bastante para abandonar os quatro filhotes na frente da escola de patinação onde Yuuri lecionava, no final de um fevereiro com temperaturas mínimas. Havia sido muita sorte os funcionários do primeiro turno chegarem a tempo de aquecer os bichanos.

— Bem, aquele ali com a ponta do rabo branco já vai ser levado pelo Misha, o gatinho de focinho rosa foi pedido pela Varvára e o Vânia quis aquel-

— Qual sobrou?!

Rindo da animação do menino, Yuuri abaixou-se e tirou do canto da caixa, o menos empolgado dos felinos, uma gatinha pequena e peluda que não importasse quem a erguesse ou a mexesse, permanecia sempre imóvel e molenga, sem resistir ou espernear quando a pegavam no colo.

— Essa mocinha aqui. — Os olhos verdes de Yuri, contudo, viram nela a mais linda espécime felina existente em toda Rússia.

— Olá… — murmurou ele para a gata, que nem abriu os olhos para ver o novo dono.  — Ela é linda… — sussurrou, evitando falar alto e incomodar a filhote. — Podemos mesmo ficar com ela?

— Claro que sim — sorriu Katsuki, feliz com a alegria do enteado. — Foi um ano de mudanças e você se adaptou muito bem, me orgulhou muito. — Yuri não respondeu ao elogio, mas pela coloração vermelha de suas bochechas, seu padrasto entendeu que ele tinha ouvido. — Além disso, você sempre quis um gato. Agora que está maior e mais responsável, acredito que me ajudará a cuidar bem dela.

— E vão aceitar no apartamento?

— Nunca vi nenhuma proibição para animais domésticos por lá…

— Mas tem. — Yuri sabia o que o padrasto estava tentando fazer e isso o fez sorrir de lado.

— A gente sempre pode mentir que não viu — cochichou, tirando risadas altas de Plisetsky. — Eu sou japonês, peço desculpa, puxo sotaque, digo que não entendi muito bem…

— Que nome daremos para ela?!

— Você escolhe, ela é sua!

Yuri não pensou muito; logo, estava trazendo a gatinha encolhida para a altura do rosto, roçando a ponta do nariz na pelagem macia.

— Potya!

Ouvir aquele nome, que há muito tinha sido esquecido, primeiro surpreendeu Katsuki, o fazendo sorrir logo depois. O primeiro presente que ele havia dado à esposa aconteceu no primeiro encontro dos dois, uma pelúcia de gato não muito bonita, conquistada em uma cabine de brinquedos em um dos shoppings locais, havia sido celebrada com tamanha alegria, que Yuuri desejou poder assistir ao riso de Nina para sempre.

Ela é linda, Yuuri!! — riu a moça, como se de fato o brinquedo fosse tudo isso. Bem, talvez para seus gentis olhos, ele fosse. — Já sei! Vou chamá-la de Potya!

Yuuri nunca tinha entendido o motivo do nome e nem porque Nina havia decidido que uma pelúcia barata merecia tanta consideração, porém, até seus exageros eram lembrados com saudosismo. Aquele seria um ótimo jeito de manter viva mais uma de suas amadas características.

— É um belo nome.

Yuri também estava feliz com a escolha.

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Um encontro movido pelo destino em uma loja de itens de esporte, até podia passar como acaso romântico, mas depois de quase um ano reencontrar Yuuri em uma pet shop era demais para Victor passar por isso sem dar umas boas risadas, ainda que sozinho. A cesta trazida pelo rapaz, daquela vez, repetia a estampa felina em uma almofada, na pelúcia para filhotes e no pacote de ração. Pelo jeito, tigres eram uma constante em sua vida.

— Vai dizer que a almofada não é para você, de novo? — perguntou bem humorado, tirando a concentração de Yuuri das prateleiras repletas de opções do mais variado tipo.

Yuuri, enrijecido, levou tempo, um tempo longo demais, olhando para o rosto de Victor, tentando entender de onde ele conhecia aquelas feições, cada vez mais constrangidas ao constatar não ser recordado. O que doía mais, seu coração desiludido ou o ego destroçado?

— Ah! — De repente, Yuuri mostrou se lembrar, relaxando minimamente. — Foi na loja de artigos esportivos que nos encontramos a primeira vez, no setor de itens de patinação, não? — Mais aliviado, Victor respirou fundo e sorriu. — Sim, agora me lembrei, me desculpe, sou péssimo com fisionomia…

— Acontece, já faz certo tempo. — Victor tentou ser o mais gentil possível. Não queria que seu exagero e drama desnecessário afugentasse uma possível companhia. — Ainda trabalha com patinação?

Yuuri mostrou-se surpreso por um momento, sorrindo logo em seguida. Além de Victor lembrar dele depois de todos aqueles meses, lembrava-se também de seu trabalho…

Então o sorriso tornou-se nervoso. Aquilo já era um pouco demais para Yuuri e seu coração começava a acelerar de forma nada romântica. Oh, não, não um ataque de ansiedade, não em público…

— É, trabalho sim, e o senhor…? — tentou manter assunto, disfarçando o desconforto ao colocar todos os itens da cesta em frente ao corpo. De certa forma, ter uma barreira de quinquilharias a sua frente, o ajudava a sentir-se em segurança.

— Victor, Victor Nikiforov. — O sorriso dele se abriu, feliz em poder se apresentar uma segunda vez. — Eu também trabalho com patinação, não sei se o senhor lembra, eu fui mandado ao Cazaquistão naquela época.

— O castigo? — Yuuri recordou-se superficialmente, falando por cima do nervosismo que tentava se apoderar.

— Sim, o castigo! — riu alto. Pelo jeito, nem mesmo um ano depois melhoraria sua imagem. — E prossigo no canto, cumprindo minha punição; todos os meus colegas e alunos estão em viagem e eu aqui, sozinho — lamentou, erguendo o pacote de ração. — Só eu e Makkachin.

— Oh… — Reconhecendo-se em um cenário semelhante, Yuuri sentiu o coração bem menos acelerado e os gritos de sua ansiedade diminuindo para um sussurro incômodo. Não era o que precisava, mas já era alguma coisa. — Sim, posso entender… Estou sozinho essa semana, cuidando de Potya.

— Sua gata?

— Era pra ser mais do meu filho, mas acho que ela se apoderou do sofá.

A notícia de que Yuuri tinha um filho, quase fez o sorriso de Victor sumir por completo. Se ele tinha um filho, mas não tinha nenhuma aliança indicando algum relacionamento formal, quais eram as chances dele ser ou não casado?

Céus, seu dedo para pessoas estava pior que o de Georgi.

— Você tem um filho? — De qualquer forma, não iria dar as costas para o rapaz só por isso, seria má educação de sua parte, especialmente se considerasse a educação de Yuuri para consigo. — Tem alguma foto dele para me mostrar? Se não for muita intrusão da minha parte, é claro…

— Tenho! — Bem mais animado com a ideia de exibir aquela criança — ou “quase adulto”, para Yuuri tanto fazia —, ele tirou o celular do bolso e abriu uma das várias pastas de arquivo que trazia no telefone. — Tenho que deixar essa foto aqui escondida, meu filho acha um mico, ou qualquer coisa assim, eu ter fotos dele comigo.

A fotografia era na verdade a foto de outra foto revelada quimicamente, o que deixava a imagem com uma nitidez um pouco tremida, todavia, não o suficiente para que Victor não conseguisse identificar as pessoas na imagem. Yuuri sorria, um pouco envergonhado, para o foco da câmera — ou a pessoa por trás dela —, enquanto trazia no colo uma pequena criança adormecida com o rosto apoiado em seu ombro.

— Ele é loiro! — riu Nikiforov. Ele estava esperando por uma cópia em miniatura de Yuuri, mas a versão real não deixava de ser fofa.

— Puxou à mãe! — Yuuri também riu. Não lhe passou pela cabeça em nenhum momento explicar os pormenores de sua paternidade, já que para ele, nunca fez diferença a falta de ligação sanguínea.

— E você e sua esposa tem uma boa relação?

O questionamento era um blefe inocente, cheio de segundas intenções por trás da pergunta que tencionava medir quais chances Victor possuía. A expectativa de uma resposta positiva para seu interesse, congelou quando notou algo quebrando-se dentro de Yuuri, visível na expressão chocada e nos olhos vagos. Oh não, ele tinha feito de novo… Victor tinha o péssimo dom de tocar em assuntos espinhosos, quando nem ao menos sabia sobre eles.

— Me desculpe se eu disse algo que não deveria, eu…

— Não se preocupe. — Yuuri foi rápido em retomar a compostura. O tempo o ensinou a lidar com aquele tipo de situação. — É que às vezes eu esqueço que ela… — Engolindo em seco, ele ainda conseguiu retomar de onde havia parado. — Que ela morreu.

Victor sufocou um “oh” exasperado. Ele não sabia se queria se esconder depois daquilo, ou oferecer um abraço para o outro homem que parecia prestes a desabar.

— Sinto muito. — Por fim, achou de bom tom prestar o mínimo de solidariedade. — Por tudo; pela sua perda e por ter tocado em um assunto delicado como esse. Eu não podia imaginar.

— Não se sinta culpado, por favor. — Muito polido, Yuuri curvou-se minimamente. — Como você mesmo disse, não podia imaginar. — Rindo baixo, escondendo a tristeza com o constrangimento, ele desviou os olhos e olhou para as compras da tarde, fingindo-se muito interessado no pacote de ração. — Eu já deveria ter superado, mas o tempo não tornou mais fácil, como me disseram que seria.

— Cada um tem seu tempo. — Imitando-o, Victor também olhou para a comida de Makkachin. Aquela marca era tão cara, mas ele não tinha coragem de alimentar seu cachorro com pacotes que custassem abaixo de suas suspeitas quanto qualidade.

— Desculpe pelo baixo astral — murmurou Yuuri, pouco tempo depois. — Eu preciso ir, a essa altura, Potya deve ter destruído o sofá e partido para minha cama. — Victor riu, antes que tivesse a chance de dizer que Yuuri em nada tinha que se desculpar. — Tenha uma boa tarde.

A despedida por parte de Nikiforov, morreu em sua mente antes que tivesse a chance de responder.

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Yuri sabia que não devia ter nada contra o novo instrutor, mas não conseguia gostar totalmente de Victor Nikiforov. Ele já estava acostumado com a orientação de Georgi, um pouco emotivo demais, mas sempre suave na hora de conversar com os alunos, torcendo pela turma com lágrimas nos olhos e extensos discursos emocionados. Victor até tinha um jeito próprio de lidar com o pessoal, sorrisos largos e piadinhas que às vezes beiravam ao ofensivo, sem que ele se desse conta. Um completo imbecil, na opinião de Yuri.

— Eu gosto dele, — foi a resposta risonha de Mila, após ouvir as ofensas contra Victor. Era verdade que ele não era lá muito discreto e sua falta de tato havia garantido inúmeras situações vergonhosas para seus alunos testemunharem, mas Nikiforov se esforçava para ser um bom professor e era sim uma boa pessoa. — Victor é engraçado e muito generoso; você sabia que ele prometeu uma moto para um dos alunos se conseguisse ir para uma das finais que competiremos nessa temporada?

— Ele é uma pedra no sapato! E isso também é um boato! — reclamou, preparando-se para retirar os patins e substitui-los por calçados mais confortáveis para ir até a cantina almoçar com os demais. — Queria ter continuado com Georgi.

— Mas Victor é o melhor dos dois em performance técnica — esclareceu Mila. Ela dificilmente perdia a oportunidade de provocar Yuri, fosse discordando de seus argumentos, ou cutucando uma de suas feridas. — Se bem que nem mesmo na parte artística Georgi conseguiu te ajudar.

As caretas de Plisetsky eram sempre engraçadas e suas sobrancelhas franzidas e lábios comprimidos antecediam a ofensa certeira que viria logo depois:

— O que disse, baba?!

— Algum problema, aqui, crianças?

Quando Yuri achava que não podia ficar pior, Victor surgia entre ele e sua protegida, rindo com aquele coração imbecil em seus lábios, fechando os olhos claros em uma expressão que podia ser inocente ou muito cínica. Ele podia entender onde Mila havia aprendido a aprimorar seu sarcasmo com tanta riqueza de expressões beirando à artística — e pelo jeito, nem precisou de Georgi para isso.

— Estávamos apenas falando como nosso querido técnico é incrível! — Com um sorriso e uma piscadela, Babicheva tomou o coração de Victor, que não escondia o favoritismo.

— Agradeço o reconhecimento, quem dera todos fizessem isso… — Ele referia-se a Yakov, que estava sempre gritando pelos corredores, especialmente com Nikiforov. Para o beicinho de Victor, Yuri apenas revirou os olhos. — Mas, por mais grato que eu fique com a sensibilidade de vocês, já é hora de uma pausa, não? Não podemos atrasar o horário de almoço, a turma de Georgi entra logo depois de vocês e não podemos bagunçar a programação deles.

Yuri também detestava a mania que Victor tinha de repetir o mesmo discurso sempre que chamava a turma para o começo dos treinamentos ou a pausa entre eles, como se todos fossem avoados como o próprio. Havia sido ele o único culpado por atrapalhar a programação de Popovich semanas atrás, embora continuasse agindo como se tudo tivesse sido uma grande e divertida coincidência. Yuri se lembrava não ter sido nada engraçado ver uma veia quase estourar na careca vermelha de Yakov, mas quem era ele para dizer alguma coisa…

Mais rápida em tirar os patins do que trocar de namorado, Mila deixou o calçado jogado para trás, junto a um Victor sorridente que lhe acenava como um bom irmão mais velho. Pelas rugas ao redor de seus olhos e lábios — culpa dos exagerados sorrisos que ele sustentava até dormindo, se Yuri duvidasse —, e considerando os cabelos grisalhos — jamais que aqueles cabelos cinzentos seriam naturais! —, Nikiforov podia ser mais um pai de Babicheva, quem sabe um avô.

Ele? Exagerando? Nunca!

— E você, Yura, vai me fazer tirar seus patins?

Aquela foi uma tentativa de piada, Yuri sabia disso em algum lugar perdido dentro de si, mas sua indignação se sobrepôs à compreensão e por fim ele acabou mostrando-se indignado com a ideia de alguém além de si mesmo tocando seus preciosos patins. A única exceção seria para quando Yuri quisesse acertar a cabeça de alguém e ele estava quase convencido de que Victor seria sua primeira cobaia.

— Não pode ser…

O sussurro abismado indicou quão quebrado Victor conseguiu ficar em um assustador intervalo de milissegundo. Não que Nikiforov não fosse uma pessoa de extremos, mas até mesmo para ele já estava ficando um pouco demais.

Movido pela curiosidade, Yuri desistiu de desatar os nós dos cadarços para se atentar ao técnico, que escondido atrás de um cartaz, tentava pentear os cabelos com os dedos e beliscar o alto das maçãs do rosto para parecer um pouco mais corado, como um adolescente desesperado para parecer bem apresentável. Até mesmo o vergonhoso ato de baforar a palma da mão para sentir quão aceitável estava o próprio hálito ele fez, atitude que fez Yuri balançar a cabeça em sinal de desgosto.

— Yura, acha que estou bem apresentável? — A pergunta em tom desesperado estava de fato sendo direcionada ao garoto e ele quase não conseguiu acreditar. Sério mesmo que Victor esperava ajuda logo de Yuri?! — Meu Deus, eu não acredito que ele procurou por mim…

Nem Yuri acreditava que alguém poderia procurar por Victor, não quando ele testemunhava com os próprios olhos quão ridículo um homem crescido conseguia ser. Curioso com o tipo de pessoa que buscaria pela companhia dele, Yuri olhou ao redor com chateação, sem imaginar que cara deveria ter a pessoa que chamaria Nikiforov para um encontro, não vendo nada no rinque quase vazio, além da inusitada visita de seu padrasto.

Espere um pouco aí…

— Ah, Yurio!! — Do outro lado do rinque, Yuuri acenou, feliz e sorridente por ter encontrado o enteado. Ainda chocado com a constatação que seu cérebro estava processando, o garoto agarrou os protetores de patins e se lançou ao gelo, rapidamente patinando ao encontro de Yuuri. — Perguntei de você na recepção e me disseram que ainda poderia estar aqui. Fiz piroshki! — Orgulhoso, Katsuki exibiu o pacote recheado. A sacola de papel estava quente, indicando que ele provavelmente tinha pagado um táxi até o local. — Pensei em almoçarmos juntos!

Olhando rapidamente para trás, ele conseguiu ver o choque de Victor, deixando seu patético esconderijo. Nikiforov estava pronto para contornar o gelo e forçar conversa com Yuuri — com o padrasto de Yuri!! —, e obviamente, Plisetsky não podia deixar isso acontecer.

— Claro, vamos!

A rapidez de Yurio em concordar com ele, pegou Yuuri de surpresa. Ele tinha ouvido bem? Yuri havia aceitado o convite sem reclamar ou falar como ser visto com o padrasto era vergonhoso para ele e os demais garotos de sua idade?

Para falar a verdade, Yuri parecia de fato um pouco esquisito… Ele estava um pouco trêmulo e suando pela lateral das têmporas. Oh, céus, que seu filho não estivesse ficando doente...

— Yurio, você está se sentindo bem? Você parece um pouco estranh-

— Yuuri?!

Victor surgiu em toda sua glória esbaforida com o peito ofegante e cabelos bagunçados, chamando por Yuuri como se ambos estivessem em algum meloso filme romântico da década de oitenta e Katsuki estivesse indo embora, sei lá, de balão. É claro que, diferente de uma dessas produções baratas de cenário alugado, ninguém estava indo para lugar nenhum e Victor estava sendo apenas o dramático de sempre. E era Georgi o dono da faixa de drama queen

Se Nikiforov era a mocinha romântica daquele roteiro cafona, Yuuri sequer tinha uma cópia do script. Com os olhos apertados e expressão confusa, Katsuki buscou na memória de onde conhecia aquela pessoa nervosa, quebrando o clima de desespero romântico com uma risada baixa.

— Victor, não é? — Yuri quis morrer. De onde eles se conheciam?!

— Então é nosso jovem Yura, aqui, o seu filho? — Rindo para Yuri e bagunçando os cabelos loiros do garoto, Victor tentou fazer-se simpático. — Quem diria!

— Espero que não seja ele o seu castigo…

Castigo? Mas o que estava acontecendo e por que Plisetsky era o único sem entender nada?!

— Yura é um menino de ouro e um patinador de grande futuro! — Aquelas palavras emocionaram Yuuri e serviram para alargar seu sorriso, antes de Victor mudar de assunto para um bem mais delicado. — Você estava certo em dizer que ele puxou à mãe, Yuri não tem nada de você!

A expressão assassina de Plisetsky por pouco não assustou Victor, não fosse o constrangimento de Katsuki interrompendo a tentativa de homicídio.

— Tem o gosto pela comida — riu Yuuri, exibindo o pacote recheado. — Você gostaria de se unir a nó-

— Sem tempo para isso! — protestou Yuri, antes de pular pela mureta e calçar o protetor de patins nas lâminas. — Vamos!

— Yurio, não seja tão apressado, eu queria conversar um pouco mais com seu técnico…

— Vamos logo, pa- — O desespero de Yuri escapou em uma palavra engasgada no meio da frase, obrigando-o a abortar a palavra antes que uma desgraça acontecesse. — -atsudon!

Em mudo pedido de desculpas, Katsuki ainda conseguiu se despedir de Victor, deixando-o para trás com um suspiro e a esperança de reencontrar Yuuri, renovada mais uma vez.

Azar seria de Yuri; ele que não tentasse desmerecer o poder de Victor em ser extremamente insuportável.


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Notas finais do capítulo

Bom, como vocês viram, Yuri é um adolescente muito chato, como qualquer outro adolescente :P O plus fica por conta de, em Storge, ele não precisar amadurecer tanto em relação a precisar do esporte para prover o sustento da família, então vocês ainda terão o menino sendo passivo-agressivo por mais um capítulo xD

Yuuri é bissexual desde o canon, espero que vocês ainda se lembrem disso :P E pode ou não rolar algo com o Victor, mas não insistam muito, sou uma porta para escrever qualquer coisa fofa, vide meu histórico de fanfic. Mas eu posso TENTAR.

Por que decidi por Nina nessa fic se em Carabosse (oi, panfletagem) o nome da mãe de Yuri é Yulia? Bom, se vocês lerem Long Live the Prince da Mileh Diamond, vão entender. Risos.

Vergonha na cara? Não trabalhamos.

Tabelinha de idade para ninguém se perder:
Na primeira parte Yuuri (26), Yuri (6), Nina (25).
Segunda parte Yuuri (32), Yuri (12/13), Victor (34), Georgi (34), Mila (16/17).

E é isso. Até a próxima e última parte, pessoal!~



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