Spectrus - A História de Ana e Hugo escrita por spectrus


Capítulo 2
Sonho - Realidade - Amor a primeiro sonho


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem e comentem muitooooo! ^^



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O ar era áspero e tenso, se alguém perguntasse a Ana como ela respirava diria que não estava mais fazendo isso. Aquele lugar era como nadar em um mar de cola. Por algum motivo, a única cor que vinha a mente dela era a vermelha. Ela quase podia sentir o gosto de sal e ferro misturado. Sangue.

Caminhou sem saber por que estava correndo. Algo em seu estômago dizia que ela tinha que ir cada vez mais rápido. Parou ouvindo um toc-toc, descobriu que era o barulho do seu salto que estava se sobrepondo ao da música do Ed Sheeran tocando nos fones de ouvido de seu iPhod.

A cada passo a mochila parecia pesar cem quilos a mais. Uma sensação horrível percorria as veias dela, fluindo por todo o seu corpo e explodindo novamente em sua barriga dando a impressão de que apenas um passo em falso poderia destruir todo o seu mundo alegre e verde.
Cinco passos. Foi o que ela precisou para ver as luzes vermelhas das sirenes em frente e sua casa. Queria correr, mas um medo inócuo a possuiu de repente como uma sombra enorme e fria se apossando de seu corpo que agora parecia tão frágil deixando-a ali, paralisada como uma garotinha medrosa – que ela não era.

Então houve o barulho de algo se partindo e ela finalmente acordou. Se concentrou. Fechou os olhos e pensou nos pais. Que droga! Ela não conseguia ouvir os pensamentos deles.

Apesar de os pés mal tocarem o chão ela sentia os tendões doerem pressionados contra o asfalto quente, mas naquele momento isso era praticamente imperceptível. Ela viu uma linha amarela em volta de sua casa onde havia escrito "Não ultrapasse". Ana olhou para trás e viu as suas pegadas cravadas no asfalto. Agora sabia por que os pés doíam.

— Hei! Não pode entrar ai!

A voz ecoou atrás dela. Ana olhou pra trás mais uma vez. Um policial alto, magro e narigudo atravessava a rua para chegar até ela. Os olhos dele eram rodeados por pequenas olheiras e voz era áspera e cansada. “Por favor não complique mais as coisas!” Ana ouviu ele pensando.

Ana lembrou-se de ter escutado uma vez em algum dos seriados em que era viciada de que na vida havia um linha tênue - no caso a dela era amarela e tinha escrito "não ultrapasse" – entre a felicidade e toda a desgraça que poderia existir no mundo. E quando ela atravessou aquela linha que a dividia do mundo que ela conhecia perfeitamente, onde todas as cores e cheiros estavam guardadas perfeitamente em sua mente, ela sentiu como se uma boca enorme tivesse engolindo seu chão e a saliva que ainda restava em sua boca era cortante como mastigar vidro.

Ana mal conseguia manter os olhos abertos. Todo aquele sangue no chão afundando os corpos frios de seus pais caídos no chão. Correu até eles após um longo segundo e pôs a mão sobre o peito deles, queria ter certeza de que não havia mais nenhuma vida neles, queria ter certeza de que não poderia fazer mais nada.

Os olhos grandes e azuis da mãe pareciam ter visto o pior horror que alguém pode ver no mundo e as pontas dos cabelos do pai estava sujo com gotícula de sangue, ela limpou-os retirando alguns cacos de vidros cravados em seus rostos. Correu os olhos pela sala e avistou a janela quebrada.

— Não pode fazer isso! Não pode mexer nos corpos!

Que se dane a pericia! Ela queria falar, mas quando tentou a voz simplesmente não saiu. Nada. Nem mesmo um grunhido.
Correu outra vez os olhos pela sala. A televisão ligada no canal HBO onde passava algum filme que ela e os pais ficaram a semana inteira pensando em assistir. Porém , agora ela detestava qualquer som que não fosse o do coração dela que ainda se mantinha batendo.

No canto da parede acima da TV havia um calendário digital que marcava: 18h43min, 06 de novembro.

— Tem que vir comigo! - Ela sentiu uma mão enorme pousar sobre seu ombro. Era fria. Ana se lembrou dos corpos dos pais lá no chão. - Sei que é difícil! - o policial que ela havia visto lá fora disse - Mas temos que fazer algumas perguntas.

A voz dele não era mais tão áspera assim. Na verdade era quase doce. Era clara, mas Ana não conseguia falar, ouvir o som da própria voz deveria ser uma tarefa fácil, não naquele momento.

— O q-q-que... - Era um grande esforço para ela juntar as letras e formar silabas e finalmente palavras que fizessem algum sentido. - O que aconteceu? - ela finalmente conseguiu dizer com um fio de voz.

— Foi um assalto.  - Ele respondeu após um tempo que para ela pareceu enorme, mas que no mundo real talvez fosse apenas um segundo.

— Parece que eles reagiram e...

Ela não ouviu mais nada depois de assalto. Olhou em volta. Estava tudo perfeitamente intacto exceto pela janela e os pais no chão da sala. Nenhuma gaveta fora do lugar, nada espalhado pela casa.

A primeira vista não havia nada fora do lugar além das duas pessoas que ela mais amava na vida.

— Sinto muito -,  O policial disse se afastando com seu corpo magro e suas olheiras ainda mais roxas.

Com toda certeza ele tinha feito um milhão de perguntas enquanto ela se afastava cada vez mais daquele lugar que antes era tão colorido, mas que agora além de vermelha, só tinha mais duas cores: PRETO E BRANCO.

Ana subiu as escadas correndo e se trancou em seu quarto. Sentou atrás da porta com o rosto sobre os joelhos. Ficou ali pensando em como seria a vida dali para frente. Como seria dormir e acordar gritando durante a noite, flutuando no sangue dos pais enquanto seu coração se comprimia até atingir a espessura de uma moeda.

Naquele momento nada mais importava. Não queria ter lugar algum para ir. Queria pela primeira vez em toda a sua vida regredir, voltar ao mundo que conhecia e não ficar flutuando naquele mar preto e branco a engolindo, mastigando e digerindo-a lentamente, dolorosamente e infinitamente aquele momento.

Se odiou por poder parar o tempo, mas não poder voltar nele e mudar as coisas. Seu quarto também estava intacto. O que aquelas pessoas queriam? Não parecia haver nada que procurassem ali.

Ana ficou lá. Encolhida no canto da parede, abraçada ao porta-retrato onde havia ela e os pais debaixo de um céu azul de verão se empanturrando de brigadeiro e coca-cola.

Então, despertando mais uma vez de seu mundo Ana se deu conta de duas coisas. Primeiro procurou os fones de ouvido e eles não estavam lá e por isso soube que o barulho de algo se partindo no chão quando começou a correr freneticamente, era do seu iPhod.

Segundo. Apesar de ter atravessado a linha que a separava de toda a desgraça do mundo, havia um fato que se não fosse trágico seria cômico: ela não havia chorado.
Como era horrível a sensação de se sentir sozinha com todo aquele seu sofrimento ridículo a consumindo.

Ela era a garota forte, a mais segura de suas poucas amigas, segura de que sua vida era perfeita – e era mesmo – era feliz e achou que isso nunca acabaria, mas agora estava na porta de seu quarto escuro, olhando as luzes nos postes pela janela enquanto o vento soprava pela copa das árvores do outro lado da rua e fazia um zumbido estranho que por um segundo ela pensou ser seu nome.

Tentou chorar mais não conseguiu. Levantou-se devagar e jogou-se sobre a cama. No teto o rosto de Bono Vox se contraía em um largo e belo sorriso no pôster que ela havia pregado lá em um natal que ela quase nem se lembrava.

Queria que alguém a abraçasse e dissesse que tudo ficaria bem e que apesar de tudo o sol iria raiar no dia seguinte e pela tarde haveria um enorme e colorido arco-íris no céu depois de uma rápida chuva de verão.

— Sinto muito -, a voz veio da porta. Ela virou-se rapidamente para ver de quem era aquela voz que parecia um manto quente. Era uma voz forte e doce, quase uma cantiga, a fazia querer ser melhor e sorrir. - De verdade -.

A sensação de conhecer aquela voz e ao mesmo tempo a sensação poderia também perdê-lo a qualquer momento congelava cada célula do seu corpo. Virou-se e viu os olhos azuis dele e sentiu-se flutuar em uma piscina de água morna.

Os lábios dele eram vermelhos e perfeitamente simétricos com as bochechas mais fofas que ela já tinha visto, desejou apertá-las só para ouvir a voz dele de novo.

Ele tirou uma mecha de cabelo do rosto dela e ela esboçou um sorriso tímido. Sentia-se aquecer por dentro a cada toque dele, como se houvesse uma pequena chama que de repente crescesse até se tornar uma fogueira incandescente. Quem era aquele desconhecido?

Ana ficou ali paralisada enquanto ele sorria levemente com seus olhos límpidos com um brilho que deixava claro que ele não queria estar em nenhum outro lugar que não fosse bem ali ao lado dela.

Ela o beijaria. Seria doce e mágico. Entretanto, quando ela ia fazer isso, mesmo sem saber quem ele era, sentiu algo quente, mas não um quente que ela gostasse, era quente demais. Ardia. Isso a envolveu rapidamente e o coração acelerou como se estivesse corrido por quilômetros. Respirou fundo o perfume dele que a invadiu como uma onda enorme cheia de um aroma perfeito, doce, bravo e confortador. Ele a apertou mais forte deixando-a quase sem ar por um segundo, mas ao contrário do que ela deveria não achou ruim perder o fôlego.

— Quem é você? - ela criou coragem para perguntar finalmente. - É só que... – Ela tentou continuar, mas ele a interrompeu pousando o dedo indicador delicadamente sobre os lábios frios dela.

— Sou eu - Ele disse sorrindo. Hugo Jones. Você disse que me amava ontem. Lembra? - ele concluiu beijando a testa dela suavemente.
Frio. Ela sentiu um frio percorrer seu corpo quente tão rápido quanto uma febre se alastrando. O que era aquilo? Um sonho lúcido? Só poderia ser isso, pensou Ana.

— Você está bem? - A voz de Hugo era assustada agora.
— É estranho -, ela disse sentindo um certo incomodo. - Não chorei, mas sinto o sal das lágrimas ardendo em minha garganta - pensou. Hugo pareceu não ligar.

— Acorde Ana – Ela ouvia alguém gritar, mas não era Hufo, não era a voz dele.

— Acorde Ana! - Alguma coisa queria que ela fosse embora, mas como ela podia deixar aquele sorriso? Ela queria ficar presa bem ali, para sempre, como nos contos de fadas que ela detestava. Será que isso era pedir demais?
O sangue, o frio, tudo isso sumiu junto com o o calor e o sorriso perfeito de Hugo. A luz que emanava dele a cegava  fazia o seu corpo inteiro tremer como um graveto em uma tempestade.
— Acorde Ana! - Não aquilo com toda certeza não era Hugo. Ele estava parado bem ali na sua frente imóvel olhando para ela. Porém ela sentia que conhecia aquela voz.

Gritos. Ela começou a ouvir gritos agudos a ensurdecendo. Largou Hugo  e tapou os ouvidos. Nada fazia sentido, Hugo estava indo embora.

— Acorde Ana!-  Ela ouviu gritar mais uma vez e finalmente abriu os olhos ao ouvir os próprios gritos.

O rosto do pai com os olhos assustados e arregalados de joelhos sobre a cama apertando com força os ombros dela, a mãe no canto do quarto encostada no parede com as mãos sobre a boca e os olhos amedrontados.

Ana olhou em volta. Havia rachaduras nas paredes verdes de seu quarto. Todos os seus livros antes na estante agora abertos e atirados no chão junto com seus CDs.

O pai ofegava. Ana levou a mão ao rosto dessa vez sentindo finalmente as lágrimas inundarem a sua face. Estava ofegante como o pai, a respiração aos poucos voltava ao normal.

— O que eu fiz dessa vez enquanto... – ela sentiu a tensão nos dedos do pai que ainda apertavam seus ombros diminuir devagar. - Dormia? - perguntou.

— Foi horrível! – A mãe disse se aproximando e sentando na beirada da cama e tirando uma mecha de cabelo que caia sobre o rosto suado e lacrimejado de Ana que lembrou de Hugo , aquele rosto, tudo naquele sonho parecia tão real.

O sorriso, os olhos azuis, a voz melódica e todo o resto pareciam ainda correr em suas veias ainda dotadas de adrenalina e a pior parte é que ela nunca tinha visto aquele rosto, não tinha a menor idéia de quem ele era. Essa era a sua única certeza.

Tudo isso vinha acontecendo nas ultimas semanas, na verdade isso acontecia desde que ela nasceu, mas agora parecia pior, muito pior. Ana sempre foi diferente, se é que ouvir pensamentos e ter sonhos que faziam efeito no mundo real era apenas uma diferença insignificante como ser a única gordinha de suas amigas.

Entretanto, apesar de não gostar nenhum pouco disso ela não sabia exatamente o que era capaz de fazer, mas sabia que podia matar alguém enquanto... dormia.

— Você começou a gritar e chorar e... – A mãe limpou a garganta antes de continuar. - De repente as paredes começavam a tremer e rachar e seu pai tentava acordar você, mas...

— Filha, sua mãe e eu... – o pai disse interrompendo a mãe. - Achamos que talvez aqui não seja um lugar seguro. Que talvez deva ir para um lugar onde...

Ana enrijeceu-se. Os olhos grandes se arregalaram. Onde não pode machucar ninguém! Ela ouviu a frase terminada na mente do pai.

— Talvez seja o melhor para você – a mãe disse segurando levemente a mão da filha entre as suas. As mãos dela eram macias e Ana não gostou dessa sensação, de saber que os pais achavam que ela não era segura, que ficar perto deles poderia trazer danos e muitas rachaduras.

— Que tal passar as férias na fazendo do seu Tio Nick? - o pai perguntou forçando um sorriso.

Fazenda? Ana perguntou a si mesma atônita. Mas eu sou totalmente urbana.

— Não se preocupe – a mãe disse levantando-se da cama. - Lá tem energia elétrica" - e soltou um risinho.
Engraçadinha. Ana pensou fazendo uma careta para os pais.

O pai deu um beijo no rosto de Ana e saiu andando devagar totalmente ensopado de suor. Noite difícil!

— Ana querida... – a mãe chamou no vão da porta. “Quem é Hugo?”
A expressão de Ana mudou de alivio para NÃO ACREDITO QUE AQUILO ERA VERDADE!

Suas mãos recomeçaram a suar como se alguém tivesse descoberto um segredo profundo dela.
A mãe bocejou e Ana então conseguiu refazer as idéias.

— O que? - Ela perguntou sentando-se na cama rapidamente. Como a mãe podia saber sobre Hugo?

— Não fique preocupada – A mãe disse bocejando outra vez.  - É só que enquanto você estava sonhando... - limpou a garganta – Você disse esse nome. Hugo. E pedia que...
O que? Ana gritou em pensamento querendo que a mãe dissesse logo.

— Você pedia para que ele não a deixasse! - a mãe disse por fim.

— Não sei quem ele é -, Ana respondeu caindo de costas na cama. - Mas acho que... amo ele -  ouviu a mãe dar um risinho antes de apagar a luz e sair caminhando pelo corredor até o seu quarto com passos rápidos.
Ana tentou voltar a dormir e então lembrou da data do relógio digital. 18h43min, 6 de novembro.
Correu até a porta e conseguiu ver a mãe quase entrando no quarto.
— Mãe! - ela gritou. Segundos depois o rosto angelical e o olhar doce da mãe a fitaram.
— Algum problema? - a mãe perguntou aflita a voz retomando o tom tenso de um minuto atrás. - Aconteceu alguma coisa Ana? -

— Não mãe. Está tudo bem! Só queria saber, que dia é hoje? - sorriu forçado.

— É 6 de janeiro! Por que? – A mãe respondeu curiosa

— Nada -, foi tudo o que Ana disse antes de voltar para o quarto e não conseguir mais dormir. Daqui a poucas horas ela arrumaria as malas e iria para um lugar que ela só ia nas férias muito raramente. Era um lugar enorme, lindo e verde, na infância ela quase poderia jurar que aquele lugar era mágico e que tinha ouvido uma vaca falar com ela – mas agora por mais verde e lindo que aquele lugar fosse, ainda assim ela não queria ir para lá.


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Notas finais do capítulo

Vejo vocês nos comentários!



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