Espion Noir escrita por carlotakuy


Capítulo 44
XXXXIV.




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Quando Arabella entrou na sala da mansão, acompanhada do alto ruído da porta, encarou surpresa duas figuras masculinas dispostas no sofá. Uma delas era seu avô e a outra, reconhecida depois de mais alguns passos no recinto, eram as bochechas mais famosas da organização.

— Samuel?!

O moreno, sentado e bem acomodado no sofá, virou seu corpo na direção da jovem e abriu um grande sorriso.

— O que faz aqui?

— Ele veio nos ajudar – adiantou-se Bill – por livre e espontânea vontade – acrescentou.

O moreno levantou, afim de cumprimentar a garota, e enquanto desamassava a roupa fina e de grife foi surpreendido por um abraço.

A cabeleira negra e curta chacoalhou com o movimento e Arabella apertou o homem contra si. Ela não pensou antes de agir e percebeu, tarde demais, a reação de choque do colega de trabalho.

Ou ex-trabalho.

Pela primeira vez ela notou que, se fosse a algum tempo atrás, sequer cogitaria tal ato. E ainda não acreditava que havia cogitado abraça-lo. Mas Arabella havia mudado e sorriu quando o soltou, confirmando o quanto tudo estava diferente.

— O que eu perdi? – ele olhou de Bill para Arabella com os olhos arregalados tentando explicar com movimentos da mão sua própria pergunta – o que aconteceu por aqui?

Arabella riu, sem pudor, enquanto o velho, ainda sentado, dava mais uma baforada com olhos avaliativos sobre o homem, que sequer notou.

— Onde está aquela garota arrogante e com ar de superioridade exalando até pelas axilas?

A jovem ergueu a sobrancelha para ele.

— Sem querer ofender – ergueu as mãos em inocência.
Arabella resmungou, mas riu em seguida.

— Estou exatamente aqui, Samuel – pôs as mãos na cintura.

— O que você fez com a profissional que conheço? Quem é você? – ele lhe segurou os ombros.

Quando o olhar de Arabella desceu sobre ele, o moreno engoliu em seco. Era ela, sem dúvida. O olhar afiado estava ali, bem na sua frente, mas o que era aquele suave brilho diferente?

Ela lentamente se apoiou nos braços do homem e sorriu de lábios fechados.

— Eu e ela estamos bem aqui na sua frente.

As palavras o pegaram de surpresa. Samuel não conseguia imaginar que a sua companheira de trabalho, aquela que ele acompanhou em tantas missões, estava tão diferente.

Além dos cabelos tudo parecia fora do lugar. Como a forma em que ela se mantinha de pé, seus olhos, suas mãos, o piscar de seus olhos. Se não o avisassem, ele perguntaria quem era aquela jovem bem ali na sua frente.

Por fim, afastando as divagações, Samuel sorriu, girando na direção do velho.

— Não sei porquê, acho que gostei mais dessa daqui.

Arabella riu e o moreno pegou a mão da mesma, levando-a aos lábios. A garota sorriu em resposta e encenou um agradecimento ao cumprimento. Seus olhos se chocaram ao final.

— Atualmente sou Heitor, mas pode continuar me chamando de Samuel. Soa bem melhor quando você me chama assim.
Arabella riu novamente sendo acompanha de um sorriso brincalhão do colega.

— E então, já terminou de paquerar minha neta ou devo esperar mais um pouco?

Bill resmungou, impaciente, dando um longo trago em seu cigarro no processo. Samuel riu voltando a sentar-se com Arabella fazendo o mesmo ao seu lado.

— Já falou a ele que está comprometida ou preciso intervir? Onde está aquele garoto quando preciso dele? – bufou.

Arabella lançou uma careta para o avô com Samuel rindo novamente.

— É verdade, eu ouvi sobre isso.

Ele olhou com um sorriso divertido para a jovem.

— Estou ansioso para conhecer seu pretendente, Arabella.

— O tema aqui é minha vida amorosa ou a missão?

Bill entortou a boca e Samuel sorriu animado.

— Eu estava falando para o agente Samuel sobre as investidas da organização – começou o velho.

Arabella assentiu.

— Eles estão mais fortes, mandando agentes cada vez mais qualificados. Nosso poder de defesa está sendo suprimido por eles.

— E o que pretendem fazer? – o moreno olho de um para o outro.

Arabella fitou o avô e ele fez o mesmo com ela. Foram curtos segundos assim, mas uma comunicação mútua foi instalada.

— Era exatamente isso que estávamos para discutir.

Samuel assentiu, internalizando as palavras de ambos, e em seguida apoiou o cotovelo nas pernas, se inclinando para frente.

— Então que comecemos a discutir.

Seu tom era sério e Arabella se perguntou se ele havia ido mesmo por livre e espontânea vontade ajudá-la. Ela conhecia muito bem a personalidade dele: era livre e espontâneo, fazia o que lhe dava na telha, mas ainda assim, era muito centrado.

Ele fora um dos únicos companheiros de trabalho no qual conseguiu Arabella colocar um pouco de sua confiança.

Mas não toda.

E essa parte que não se deixava vacilar a fazia duvidar de suas intenções.

Samuel era um narcisista nato, feito para ser admirado pelos outros, não para se doar por eles. Por que estaria então ele ali em prol dela?

Eles eram bons colegas de trabalho, sim. Mas não amigos.

Reprimindo as dúvidas ela focou no tema da reunião: a segurança de Alex. Bill começou explicando sobre a situação de seus agentes mortos. Dos cinquenta que estavam incumbidos da segurança da escola, dez haviam sido identificados e abatidos.

Em seguida iniciou-se uma discussão sobre os agentes de Bill que poderiam compor a segurança do garoto. Entre os variados espalhados pelo mundo o homem se prontificou de duplicar os agentes, fazendo ligações e mandando mensagens em plena discussão.

Arabella repassou a dupla na sala o acontecido na Junípero e comunicou a vontade do jovem de permanecer em sua rotina. Bill concordou de pronto com o garoto, assustando o moreno, e até disse que faria o mesmo na situação dele.

Samuel olhou espantado para Arabella e em seguida para Bill. A dupla o fitou em confusão e com gestos ansiosos o mesmo expressou sua indignação.

Como podiam concordar em deixar o garoto solto numa escola que já havia sido alvo uma vez? Era como jogá-lo em campo aberto, pronto para ser atingido a qualquer momento.

Mas o olhar de Arabella e suas palavras firmes o fizeram vacilar. Ela sabia do perigo, era o que sua boca dizia, e estava imensamente preocupada, gritava seus olhos. Samuel não soube como responder aos argumentos dela.

Quem diabos era o garoto que a deixou tão frágil?

Samuel conhecia Arabella fazia muito tempo para dizer com toda certeza que ela estava fraca, cegamente fraca.

Ao final se resolveu que Alex continuaria indo para a escola escoltado pelos agentes e Samuel, por sugestão dele mesmo, ficou responsável por tomar conta disso. Arabella continuaria ao redor do garoto, como vinha fazendo, para ter uma melhor perspectiva quanto aos possíveis inimigos.

Bill, por sua vez, se prontificou a adiantar todo o plano prático dentro da própria mansão, mas tão pouco revelou a dupla qual era ele. Exceto por uma troca de olhares com Arabella, que captou suas intenções sem palavras.

Ele não queria abrir todo o jogo na frente do agente recém chegado.

Arabella sabia que aceitá-lo como aliado podia ser muito perigoso, mas pela primeira vez ela quis arriscar. Conhecia as habilidades do moreno bem o suficiente para saber que era melhor estar com ele do que contra ele.

Com o mistério do plano pairando no ar a reunião se encerrou.

— Então, já que acabamos, vou voltar para a casa de Alex – a jovem se levantou.

— Se possível não use o seu carro – aconselhou o velho também erguendo-se – escolha algum da minha garagem, eles já devem estar de olho no seu Fox.

Arabella entortou a boca em contragosto.

— Ela pode usar o meu – interveio o moreno – não pretendo usá-lo.

— Nem eu – rebateu a garota – você era até segundos atrás um dos agentes da organização, não tenho como saber se eles tem acesso direto a seu carro.

Samuel abriu um sorriso de entusiasmo.

— Afiada como sempre! Nem mesmo eu pensei nessa possibilidade!

— Pois deveria começar a pensar a partir de agora – alertou o velho contornando o sofá em passos lentos – se está pronto para ir contra a organização conosco, tem que estar pronto para tudo.

— Inclusive pronto para nossa desconfiança – acrescentou a garota.

Samuel assentiu.

— Sim, sim, eu estou.

— Vou me retirar – Bill acenou com a cabeça – boa noite aos dois.

Arabella e Samuel observaram o velho sumir pelas escadas e em seguida se entreolharam.

— E você? O que pretende fazer agora?

O moreno se acomodou no sofá.

— Não sei, ainda não pensei muito sobre isso.

A garota ergueu a sobrancelha.

— Você não pensou muito em vir até aqui se oferecer para nos ajudar?

Samuel sorriu e inclinou-se para ela, ainda sentado.

— Exatamente.

Ela bufou.

— Não precisa se preocupar comigo.

— Não estou – resmungou a mesma.

O homem riu.

— Claro que está! Olha aí, sempre faz essa cara quando saio do plano.

Os olhos esmeraldas desceram sobre o homem e ele se calou teatralmente com as mãos sobre a boca.

— Nós não estamos em uma missão, Samuel. Você entende isso? Vir até aqui e desertar como eu desertei vai acabar com sua carreira.

Arabella sentou com tudo no sofá.

— Eu fiz isso por um motivo, mas e você? Um capricho pode acabar com toda a sua vida.

O moreno riu deixando a jovem desconcertada.

— Desde quando você se preocupa tanto comigo?

Arabella quis retrucar, mas ele sequer lhe deu tempo.

— Eu não me importo de acabar tendo que limpar chão por aí ou trabalhar como garçom.

— É isso que quer para o seu futuro?

Ele lhe devolveu o olhar intenso.

— O que você quer para o seu futuro Arabella?

Ela franziu o cenho.

— Foi isso que vim me perguntando desde que soube da sua saída da organização. O que você viu aqui, no mundo de fora, para deixar tudo que sempre fizemos para trás sem mais nem menos?

Ele cruzou as pernas e os braços, com os olhos fixos no tapete felpudo da sala.

— O que pode haver além do nosso mundo que eu ainda não vi? Eu quero saber Arabella, eu quero poder entender melhor coisas que não entendo.

O olhar que a jovem desceu sobre o companheiro foi terno. Samuel ainda era o de sempre: egocêntrico. Ele suspirou.

— A verdade é que vim aqui com o intuito de lhe fazer essas perguntas. Mas depois que ouvi de Bill que não foi um fato, mas sim uma pessoa que a fez desistir de tudo que construímos, fiquei intrigado.

Ele rebateu o olhar da mesma com seriedade estampada nos olhos negros.

— E vejo isso quando chego aqui.

O homem apontou para ela com as mãos.

— Vim pronto para encontrar a minha colega de trabalho. Aquela que me olha como quem sabe de tudo, com arrogância, que me corta quando necessário e que me deixa, quando quer, me exibir. Mas olha o que encontro: uma pessoa completamente diferente.

Ele sorriu com incredulidade.

— Você me abraçou! Me tratou como um amigo, um igual. Você se preocupou comigo. O que acha que estou sentindo agora?

— Isso era para ser um elogio? – Arabella ergueu a sobrancelha.

O moreno riu.

— Não sei, não sei. Mas sei que gostei do que vi e quero ver mais, muito mais. Não vou me arrepender de desertar, disso pode ter certeza. Eu encontrarei o meu motivo aqui fora, assim como você o fez e mesmo que demore a encontrar, tenho certeza que serei transformado assim como você foi.

Arabella sorriu sem jeito enquanto Samuel se sentia contemplado em suas palavras. Era verdade, afinal. Ver sua colega de trabalho tão diferente o inquietava, ele queria saber mais sobre isso, queria conhecer o agente da mudança, queria entender melhor como aquilo havia acontecido.

E, claro, tinha ciência de que era tudo em prol de si mesmo.

Arabella observou o moreno, sentado no sofá em sua pose usual, e suspirou. Por mais que Samuel parecesse suspeito, chegando lá do nada, indo direto na fonte, ela sentia que algo ali era verdadeiro.

Apesar de seus defeitos ele tinha uma única coisa: sinceridade.

Às vezes, até demais.

— Não sei se deveria agradecer as palavras ou mandar você embora daqui – ele riu com gosto fazendo-a sorrir – mas já que o conheço o suficiente para saber que não volta atrás em sua palavra, desejo que encontre o que veio procurar.

Os olhos verdes de Arabella fizeram Samuel derreter. De onde vinha tanta doçura? Quando aquela garota metódica deu lugar a tanta empatia?

— Sei que posso confiar em você e em seu ego. Agradeço muito.

Samuel levantou em um rápido movimento e abraçou a jovem, que riu pelo ato, correspondendo ao abraço.

— Sempre quis abraçar você – disse o homem afastando-se – você parece uma boneca de porcelana.

Samuel tentou apertar a bochecha da jovem, mas foi interceptado no processo, recebendo um sorriso da mesma.

— Uma boneca de porcelana letal.

O homem sorriu em resposta.

— Sim, tem isso também.

Ambos riram.

— E então? Quando vou conhecer seu namorado?

— Ele não é meu namorado – retrucou a mesma direcionando-se até a porta e sendo seguida pelo homem – ainda.

Samuel sorriu animado, a acompanhando.

— Maravilhoso! Maravilhoso!

— Ainda não sermos namorados?

— Também – ele piscou.

Ao saírem pelas portas da mansão, adentrando no pátio frontal, Samuel destravou seu carro pelo molho de chaves. O automóvel piscou no breu da noite na lateral da entrada da mansão.

— Aceita uma carona? Juro que não seremos perseguidos pela organização daqui para ali.

Arabella sorriu e encarando o veículo, aceitou.

 

•••

 

— Como foi sua última missão com a milionária?

Arabella e Samuel estavam no carro do homem, balançando no terreno acidentado de acesso a mansão em direção a pista principal. O rádio tocava baixo alguma música em inglês em conjunto com o ar-condicionado, que soprava ainda mais baixo seu ar gélido.

— Acabei rápido – ele deu de ombros – a mulher era mais besta do que pensei.

— Que cruel.

— Me desculpe se minha alma ainda não foi tocada por Deus como a sua – retrucou com os olhos fixos na trilha – por falar nisso, quem é ele? Como ele é? É o garoto que você falou naquela missão?

Arabella ficou perdida com tantas perguntas, mas assentiu. Se apoiando na porta ela abriu um pequeno sorriso lembrando-se da tarde que passara com o mesmo.

— Não sei como descrevê-lo. Só...

Arabella se calou, sem saber como expressar, e o moreno ao seu lado sorriu.

— Você está realmente apaixonada.

— Estou.

— Ele acabou com você.

O comentário do homem incomodou Arabella e ela fitou a parte externa da janela. Sua mãe também achava aquilo, talvez fosse normal aquela visão de quem a via da organização.

Afinal, Arabella abdicou de uma vida inteira por ele.

Mas ela não se arrependia nem um pouco.

— Ele pode ter acabado com uma parte minha sim – Arabella se endireitou ao banco – mas eu ainda estou e ainda sou eu. Não saberia te explicar melhor do que isso.

Samuel a encarou de soslaio, contrariado.

— É como se pudesse finalmente ver coisas que antes não conseguia – ela tocou no próprio peito – eu finalmente tomei consciência de quem eu sou. Eu sou eu mesma agora, não uma marionete. Esses sentimentos são meus, não de outra pessoa.

O olhar que desceu sobre o homem o fez estremecer.

— Eu não sou a senhora Fletcher ou a sua tão adorada Ravena. Eu sou eu, entende? Eu sou Arabella, com minhas qualidades e defeitos, eu sou o que sou.

Ela riu sozinha.

— É como se a partir dele eu pudesse realmente estar aqui, agora, em minha própria essência.

— Você torna tudo tão confuso...

Eles se entreolharam e sorriam.

— Entre o garoto que amo e um trabalho com o qual já não me identifico, e talvez nunca tenha identificado, fica claro qual seria minha escolha, não é?

Samuel concordou, ainda que com resistência.

— Mas você era tão boa no que fazia.

— Eu ainda sou boa no que eu fazia – ela sorriu se inclinando para frente e entrando no campo visual do colega – eu ainda sou uma profissional, Samuel.

O homem não conseguiu controlar o sorriso e em seguida a risada. Era gostoso poder ouvir aquilo com tanta propriedade. Arabella estava diferente, mudada, melhor, mas não deixava de ser sua colega, sua parceira.

Por mais que ela insistisse que agora ela era ela de verdade, Samuel sabia que não. Arabella sempre teve sua essência e nunca se desvirtuou tanto quanto ele, que era um mero capacho da organização.

Quantas vezes não a viu batendo boca com um companheiro de missão afim de seguirem um plano que não machucaria ninguém? Um plano que interferisse na vida de poucas pessoas? Um ataque que deixasse o mínimo de vítimas?

Ela mesma não percebia, cega pelas atrocidades de seu passado, mas em cada pedaço dele estava lá sua bondade e compaixão. Ele conseguia lembrar muito bem quando ela voltou frustrada de uma missão ranking S em que seus companheiros foram mortos.

Samuel viu nos olhos dela a tristeza e o peso da morte daquelas pessoas quando ele, sempre que isso acontecia, virava a página sem nem ao menos olhar quem foi deixado para trás e quem não.

Arabella era meticulosa, calculista e persuasiva e talvez por isso todas suas táticas funcionavam tão bem. Ela era uma joia bruta que foi lapidada pacientemente por sua mãe afim de que se tornasse o que era e ali, naquele carro, ele entendia exatamente qual era a frustração de sua genitora.

Não poder controlar a magnitude dela.

Arabella era intensa e devastadora. Em todas as missões ele constatava isso, por mais sutis que fossem seus passos tão cautelosos. O período em Dubai o mostrou isso e com sorte, o garoto que a fisgou também percebera.

Com um sorriso ele finalmente chegou na pista principal e aumentou o som do carro.

Arabella cada vez mais o surpreendia.


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