O Maravilhoso Bistrô do Polvo escrita por Fairbolt


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

DESAFIO O MARAVILHOSO BISTR?” DO POLVO • GRUPO CANETA TINTEIRO

Bon appetit!



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O dia amanheceu quente, como de costume naquela época do ano no Rio de Janeiro. O sol, além de realçar a beleza natural da cidade, atraía turistas do Brasil e do mundo, alavancando, por conseguinte, o comércio da região. Assim, além de pontos turísticos como o Cristo Redentor, o Pão-de-Açúcar e o Museu do Amanhã, os excursionistas buscavam lojas de lembrancinhas, para levar consigo um fragmento da Cidade Maravilhosa na viagem de volta, e restaurantes famosos, objetivando degustar pratos da culinária local. Claro, havia lugares para todos os públicos, mas; ao se tratar de alguém mais... Abastado, os cariocas não hesitavam em indicar o Bistrô do Polvo, conhecido pelos gastrônomos como “o lorde da gastronomia brasileira” em decorrência das iguarias que encantavam o paladar qualquer um que pusesse os pés ali, mas que pudesse pagar, é claro, pois os preços, assim como a comida, eram bem temperados.

Acontece que o Bistrô do Polvo não era visado apenas pelos turistas, mas também por cozinheiros, que se digladiavam para trabalhar ali quando viam a notícia de que havia vagas em aberto para novos funcionários.

Obviamente, a seleção não era nada fácil, pois era necessário que os candidatos à vaga, além de vencer duelos de culinária entre si, obtivessem uma vitória, também, numa disputa contra um dos cozinheiros do local. Após tais testes, apenas um seria contratado pelo melhor restaurante cinco estrelas do Rio de Janeiro e, talvez, do Brasil.

Todavia, a dificuldade não intimidava nem um pouco Samuel, um jovem mestre-cuca recém-formado pela Universidade de Salamanca, que, ao tomar conhecimento de uma nova seleção para cozinheiro, não mediu esforços para se inscrever e, assim, concorrer a uma vaga na equipe do restaurante cinco estrelas. “Tendo empenhado quatro anos de minha vida estudando a culinária mediterrânea, dando ênfase nos frutos do mar, especialidade do Bistrô do Polvo, em Salamanca, estou mais do que preparado para os duelos.”, pensava o rapaz enquanto checava mais uma vez seus dados na lista de candidatos.

Claro, espalhou a notícia entre seus familiares e amigos dias antes da seleção, mas, como se já não soubesse, sua amável progenitora fez uma tempestade num copo d’água, de mesma forma que sempre fazia com todos os assuntos que diziam respeito à vida profissional do filho. E pior: a mulher escolheu exatamente a manhã da avaliação de Samuel para dar um de seu telefonemas inconvenientes.

— Mãe, a senhora tá em Recife. – Samuel falou, ao celular, respondendo sua genetriz – Como que quer me acompanhar na seleção estando tão longe?

— Pegando um avião! – a mulher gritou tão alto, que era como se a função viva-voz estivesse ativada – Não posso perder esse momento especial do meu rebento.

O rapaz revirou os olhos com a atitude da mãe, pois, mesmo morando longe de si, a mulher fazia questão de se envolver em todos os assuntos do filho. Certo, Samuel a amava, mas essa proteção exacerbada que ela lhe dirigia, mesmo ele já tendo vinte e três anos de idade, o irritava. Assim, o mestre-cuca pensou em estratégias para dobrar a tagarela e logo lhe veio uma.

Não consigo escutar a senhora... – Samuel falou ao passo em que fazia chiados com a boca simulando uma interferência no sinal do celular  - Ligo depois, beijinhos!

— Mas filho... – a mãe de Samuel tentou responder, mas foi interrompida pelo filho desligando o smartphone em decorrência da “queda de sinal”.

Agora, sem mais interrupções, o jovem tratou de correr depressa para embarcar no primeiro metrô que o levasse do Parque Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste, até Copacabana, na Zona Sul do Rio. Não queria arriscar chegar atrasado ao restaurante para os testes, pois ouviu relatos de cozinheiros que foram desclassificados por chegarem apenas dois minutos depois do horário combinado pela equipe do Bistrô do Polvo. Ademais, Samuel gostava de sair cedinho quando não havia tanta gente transitando pelas ruas, então - para ele - foi a união do útil ao agradável.

Dentro do transporte coletivo, o mestre-cuca pensava sobre as infinitas possibilidades que o aguardavam, caso fosse contratado. Haveria de aprender muitas coisas e, assim, aprimorar sua culinária. Além disso, quando crescesse lá dentro, lhe seria dada a proposta de gerenciar uma filial dentro ou fora do Brasil, uma vez que era costume do lugar oferecer sociedade para todos os grandes chefs que colaborarem para elevar cada vez mais os status do lorde da gastronomia brasileira. Obviamente, os critérios para tanto eram rigorosíssimos. “Sem dúvidas, vou escolher abrir um Bistrô do Polvo em Salamanca, onde estudei gastronomia. Vou dominar a Espanha!”, o jovem pensava enquanto admirava a beleza natural carioca, da qual nunca se cansava.

Depois de um tempo, Samuel finalmente desembarcou na estação Cantagalo, a mais próxima do Bistrô, e pôs-se a correr com toda velocidade que conseguia, não por estar atrasado, pois ainda tinha um bom tempo sobrando, mas por ansiedade. Contudo, em meio ao seu ímpeto de chegar cedo, acabou esbarrando num rapaz que caminhava distraído por ali.

— Desculpe... – o jovem mestre-cuca tentou terminar a frase, mas não conseguira em virtude daquele que foi vítima do seu esbarrão.

O homem a quem ele havia derrubado era bem alto, tinha a barba bem feita, olhos cor de mel, músculos desenhando o seu corpo e uma pele lisa sem quaisquer imperfeições. Tal beleza deixou Samuel hipnotizado, a ponto de se esquecer da avaliação por alguns minutos.

— Avental, toque blanc¹ e muita pressa. – o belo homem disse, examinando-o dos pés à cabeça. – Parece que hoje é dia de seleção no Bistrô do Polvo! Dê o seu melhor.

Ao ouvir aquilo, o aspirante à chef do restaurante mais renomado do Rio voltou a si e lembrou que deveria estar indo ao local dos testes, então se restringiu a respondeu àquele que percebeu o motivo de sua pressa com um “desculpe, obrigado” e pôs-se a correr novamente.

O Bistrô do Polvo era um lugar majestoso. O piso era de um reluzente mármore negro, onde havia luzinhas azuis que davam aos clientes a impressão de estarem caminhando no fundo do oceano. Colaborando com essa imagem, o lugar estava repleto de aquários com várias espécies exóticas de peixes, e milhares de conchas estavam coladas ao teto. A mobília também impressionava, pois, na forma em que foi elaborada, parecia com crustáceos e cefalópodes.

O mesmo êxtase sentiu ao entrar na cozinha, logo depois de transitar pela parte da frente, pois se tratava de um gigante compartimento com os equipamentos mais modernos do mercado e ingredientes finos dos mais variados lugares. Todo aquele luxo impressionou Samuel mais do que ele imaginava. Era certo que esperava algo grandioso, mas o Bistrô do Polvo ultrapassava os limites da magnificência.

Enquanto admirava as instalações do lugar, Samuel nem percebeu a chegada dos outros candidatos, os quais eram apenas três. Aliás, o mundo poderia era pegar fogo, que o jovem mestre-cuca não daria nem um olhar, de tão hipnotizado que estava com toda a pompa do estabelecimento. Acontece que não foram apenas os competidores que adentraram o local, mas também os avaliadores, os quais também formavam um trio: uma senhora idosa, aparentando ter seus sessenta e seis anos, um rapaz de meia idade um tanto gordo e um garoto cuja idade parecia ser igual a sua.

— São só vocês?! – a idosa perguntou incrédula, exclamando. – No meu tempo, havia uma fila dobrando o quarteirão. Os jovens de hoje são uns frouxos!

Os dois homens que a acompanhavam concordaram com aquela fala ao passo em que se posicionavam ao seu lado, analisando cada um dos poucos participantes como se fossem suas presas. Sem dúvidas, pensavam que nenhum dos presentes conseguiria passar da seleção e assumir a vaga de cozinheiro.

— Já que só tem quatro, deveríamos cancelar, Irene. – o avaliador mais jovem propôs.

— Não seja assim, Claudio. – a anciã o repreendeu. – Não devemos ir contra a política do Bistrô só porque as esperanças parecem estar perdidas.

Irene, então, indicou com a cabeça para que todos a acompanhassem num pequeno tour pelos armários e congeladores da cozinha. Ela queria que o quarteto soubesse da localização dos ingredientes para que não perdesse tempo procurando-os. Por conseguinte, deu algumas instruções básicas e sentou-se à mesa ao lado dos dois outros avaliadores.

— Agora que já falei algumas coisas básicas sobre a estrutura, vamos ao que interessa. – ela falou, desenrolando o talher – A competição.

Ao ouvir aquela palavra, Samuel sentiu uma pontada de nervosismo. Claro que o jovem estava mais do que preparado, todavia era do Bistrô do Polvo que estava falando, então lhe seria exigido nada menos do que a perfeição, fato que deixava qualquer mestre-cuca desconcertado.

— A primeira fase vai ser moleza. – Claudio indagou – Preparem uma entrada que remeta ao mar.

— Ficará organizado da seguinte forma: Adenor contra Fabíola, Samuel contra Fausta. – o participante de meia idade afirmou. – Vocês têm quarenta e cinco minutos.

Assim que terminou sua fala, o homem apertou uma campainha, dando largada à competição. Todos os participantes correram até seus respectivos postos, que continham todos os equipamentos necessários. “Santa culinária do Mediterrâneo, que maravilha! O que não faltou em Salamanca foram pratos que remetessem ao mar! Me dei bem.”, Samuel pensou ao mesmo tempo em que corria para reunir os ingredientes. Prepararia uma salada com salmão defumado, uma entrada muito apreciada nos países banhados pelo Mediterrâneo, cujo preparo consistia em picotar cenouras, alface romana, cebolas e mistura-los com gill - um tempero muito usado na Europa - pimenta, azeite e, obviamente, salmão defumado. A aparência era muito convidativa, além do fato de que abriria o apetite dos juízes para o prato principal.

Assim, por ser uma refeição de fácil preparo, a salada com atum defumado ficou pronta em pouquíssimo tempo, permitindo que Samuel desse uma espiada no desempenho de sua adversária. Fausta finalizara um consumê de camarão e, com pressa, entregou aos juízes, os quais não exibiram uma expressão muito alegre ao ingerir a primeira colherada da entrada. Na verdade, era como se estivessem se segurando para não regurgitar o alimento.

— Está... Estranho. – Irene falou, provando o consumê de camarão feito por Fausta.

— Consegui engolir. – o avaliador que apertou a campainha afirmou. – Acho que vou sobreviver, digo, não me fez mal de primeira.

Tem certeza de que pôs camarão?- Claudio perguntou, retoricamente. – Só sinto o gosto da farinha de trigo.

Fausta mudou sua expressão confiante para uma careta de decepção ao notar o desdém dirigido a sua entrada por parte da equipe avaliadora. Sem dúvidas, deve ter ouvido falar da impetuosidade dos julgamentos dos críticos culinários do lorde da gastronomia brasileira, mas foi chocante ver sua comida ser tratada daquela forma.

— Talvez eu tenha esquecido de por mais camarão devido ao nervosismo. – a mulher comentou, estampando um sorriso muxoxo na face.

— Veja bem onde você está. – Claudio indagou – Aqui não há lugar para nervosismo. Num dia normal de trabalho, o nome do restaurante estará em jogo e, caso alguém erre na receita por estar nervoso, esse nome será jogado na lama.

— Já pensou se você serve um consumê de camarão sem camarão aos clientes? – Irene questionou – Me senti como aqueles trabalhadores na obra do metrô que pedem uma marmita contendo baião de dois e, quando a recebem, há apenas arroz e alguns míseros caroços de feijão. Isso é bem frustrante.

A última parte da explicação de Irene fez Samuel estremecer um pouco. “Ter seu prato comparado a uma marmita é um choque e tanto. Será que ela está bem?”, ele divagou. Com aquele julgamento ferrenho, pensou, por alguns minutos, que tinha esquecido algo, mas constatou que estava tudo bem ao dar uma última conferida nos ingredientes. Dessa forma, dispôs sua salada na tábua que usou para fazê-la e serviu ao time avaliador.

— Na tábua? – Claudio foi o primeiro a falar. – Que meigo. Além disso, aparência está ótima.

Irene parecia estar gostando da comida, pois, a priori, não prestou atenção na aparência, nem no cheiro.

— Adoro salada com salmão defumado. – a idosa comentou, mordendo o petisco – Esta está particularmente divina. O que você acha, Tomás?

O avaliador de meia-idade a quem Irene dirigiu a palavra demorou para voltar a si. Comia como se estivesse preso numa gaiola há dias e, ao terminar, limpou a boca com um guardanapo. Certamente, gostou da refeição preparada por Samuel.

— Ah, sim, obrigado por nos ajudar a esquecer do gosto do consumê. - Tomás comentou enquanto lambia os dedos – Adoro o sabor exótico da culinária mediterrânea.

Os três juízes, depois de um tempo conversando entre si, deram seu veredito. Considerando os comentários sobre as duas receitas, Samuel e Fausta já sabiam que seria o vencedor: a salada com salmão defumado de cujo sabor Irene, Claudio e Tomás gostaram. Claro, a presunção da dupla estava correta e o vencedor daquele duelo foi Samuel, que não se conteve e vibrou de alegria, extraindo pequenos risos dos críticos e dos outros candidatos. Por falar nestes últimos, da segunda dupla, Fabíola levou a vitória através de um prato tailandês chamado Tiradito thai, o qual era feito usando peixe branco no limão e molho de abalone (molusco do Pacífico), vencendo pelos mesmos motivos do se Samuel: estar incrivelmente delicioso e ser exótico, como Tomás acentuara.

— Sinto muito pelos que perderam. – Irene confortou os que se saíram mal. - A saída fica próxima do aquário das raias, boa sorte na próxima vez.

Adenor e Fausta saíram do restaurante cabisbaixos, logo depois de desejar boa sorte para Fabíola e Samuel. Este último sentiu um pouco de pena dos desclassificados, pela maneira pela qual foram tratados. Certo, não atenderam aos requisitos dos juízes, mas tinham potencial. O consume de camarão feito por sua oponente podia, aos olhos dos juízes, carecer do gosto do referido fruto do mar, mas, para o rapaz, tinha seu valor, pois os outros ingredientes compensavam a ausência daquele. O comportamento ácido de Irene, Claudio e Tomás feriu o orgulho daquelas pessoas enquanto cozinheiras.

— Descansem um pouco e pensem no que fazer para o prato principal. – Tomás falou. – Queremos mais um prato que remeta ao mar, mas vocês devem tirar totalmente o seu gosto. Vão descaracterizá-lo.

Dito isso, os avaliadores saíram do lugar e deixaram a dupla sozinha. Fabíola anotava algo num bloco de notas e Samuel tratou logo de cuidar do peixe que iria usar: o bacalhau. Tirou-lhe as escamas e as espinhas, o deixou de molho no suco de limão por meia hora, colocando-o, logo depois, numa travessa com vinho branco, alecrim, manjericão, pimenta branca e hortelã. Deixou o peixe descansar na mistura até o retorno da equipe julgadora.

Por alguns minutos, Samuel se perguntou se aquilo era verdade ou não passava de um sonho. Há alguns anos, tinha conhecimentos meramente básicos em culinária, então estudou gastronomia em Salamanca e se formou com honras. Finalmente, voltou ao Brasil e ali ele estava prestes a participar da segunda fase da seleção do Bistrô do Polvo. “Esses anos passaram rápido demais.”, ele devaneou, mas foi tirado de seus pensamentos quando o trio de juízes voltou do intervalo.

— Senhores, gostaria de lhes comunicar uma coisa. – Fabíola disse, correndo até o trio. – O candidato Samuel está trapaceando.

A equipe do lorde da gastronomia brasileira se entreolhou e encarou a candidata, atenta. Os três queriam saber o porquê de alguém trapacear numa seleção do Bistrô do Polvo.

— Como assim? – Claudio perguntou.

— Ele estava preparando o peixe antes dos senhores voltarem para dar a largada. – a garota respondeu, deixando Samuel incrédulo.

Para a surpresa do jovem mestre-cuca e decepção de Fabíola, os avaliadores riram daquela acusação infundada.

— Quando falei para vocês irem pensando no que fazer para o almoço, não proibi de porem o pensamento em prática. – Tomás respondeu, fazendo a tentativa chula da candidata cair por terra. – Não obrigamos vocês a ficarem parados sem fazer nada. Aliás, se quisessem, poderiam até já ter preparado o prato.

— Estratégias ardis de eliminação de adversários são indignas da nossa equipe. – Irene tomou a palavra. – Agora, faça silêncio e comece a cozinhar. Vocês têm uma hora.

Samuel deu um sorriso de alívio ao visualizar que os juízes não deram ouvidos à tentativa da garota de eliminá-lo daquele modo. Resolveu perdoá-la, mas nunca a daria sua confiança ou sua amizade, pois ela parecia não ser o tipo de pessoa que alguém gostaria de ter por perto. Então, voltou seu foco ao trabalho e começou a cozinhar de onde tinha parado.

Enquanto o bacalhau estava no vinho, o jovem cozinheiro separou os ingredientes que haveria de usar na receita. Tinha certeza de que o tempo no suco de limão e no vinho tirou uma boa parte do sabor natural do peixe, mas, como Tomás dissera, ele teria que descaracterizar totalmente o gosto do animal. Então, resolveu usar o seguinte ingrediente: farinha de bacon, que era feita tostando-o e fragmentando-o no liquidificador até que ficasse em pequeninos flocos. Ademais, agregou – também - jamon² ibérico e queijo parmesão à receita.

Em seguida, tendo consigo todos os ingredientes dos quais precisaria, começou a dar vida ao seu prato. Teve o cuidado de cortar o bacalhau em filés e de costurá-los ao jamon de modo que os juízes não percebessem a sutura, deixando-o esteticamente perfeito. Ademais, os legumes acrescentaram charme ao prato, deixando-o ainda mais convidativo. Aliado a isso, a farinha de bacon e o queijo parmesão criaram um cheiro único e maravilhoso, cuja fragrância penetrou imediatamente nas narinas dos julgadores.

— Faltando poucos minutos para acabar o tempo. – Claudio indagou. – Antes tarde do que nunca.

— Que perfume divino! – Tomás exclamou, fungando forte o ar. – Mande logo esse prato, meu jovem!

Samuel riu sem jeito e serviu seu bacalhau mediterrâneo acompanhado de um vinho tinto português. Imaginou que o sabor estaria forte demais, então se sentiu inseguro, porém a reação dos avaliadores tirou essa ideia de sua cabeça, pois todos estavam apreciando o sabor da refeição. Irene abandonou a etiqueta e pôs-se a devorar a comida como se não houvesse amanhã, Claudio terminou de comer em poucos minutos e Tomás estava em dúvida entre comer rápido para sentir todo o prazer que aquele alimento oferecia de uma vez ou se comia devagar, apreciando cada garfada daquele manjar dos Deuses.

— Está sublime! – Irene falou, elevando o tom de voz. – Adorei o que você fez! O bacalhau mediterrâneo é um grande às dessa culinária. Mas claro, a tarefa era descaracterizar o sabor que remetesse mar, por isso temos aqui a farinha de bacon, o jamon e o queijo parmesão deixando o peixe com gosto de... Guloseimas. A guloseima mais deleitante que tive o prazer de ingerir.

— Me lembra um hambúrguer gourmet que comi em Madrid. – Tomás comentou. – Está perfeito.

Obviamente, o aspirante a chef se alegrou com a opinião da equipe avaliadora. Contudo, a felicidade virou apreensão quando um odor igualmente convidativo invadiu as narinas de todos ali. Fabíola acabara de terminar seu prato: salada de folhas verdes e lula com molho de manga, mais uma receita tailandesa. Assim como fizeram com o bacalhau, os jurados devoraram a refeição de garota com ímpeto.

— Amei. – Claudio tomou a palavra. – É como se a lula tivesse se transformado num vegetal, pois só consigo sentir o gosto de verduras. Estou me sentindo tão fitness!

— Curry, shoyu, amendoim, açafrão, manjericão, pimenta jamaicana, alecrim, noz moscada, dentre outras especiarias... – Irene percebeu ao provar. – Para harmonizar tudo isso, o molho de manga foi um golpe de mestre!

— Se eu pudesse, diria que os dois pratos são vencedores. – acrescentou Tomás. – Contudo, somente um pode ir para última fase. A salada da Fabíola estava ótima, mas o bacalhau do Samuel estava implacável.

— Prefiro a salada de folhas verdes e lula com molho de manga. – Irene perguntou, divergindo do colega. – O bacalhau tem um sabor notável, mas a maestria da Fabíola com temperos é implacável.

Um empate. Agora, caberia ao Claudio dar o voto que resolveria o impasse. Provando novamente ambas as receitas, ele analisou escrupulosamente a aparência, o cheiro e o gosto enquanto os dois candidatos estavam tensos à espera de sua decisão. “A Fabíola, apesar de ter usado toda a sorte de temperos, conseguiu deixar a comida dela com um sabor leve. Aposto que ela vai ganhar. É, valeu a tentativa.”, Samuel pensou, estampando no rosto uma expressão melancólica.

— Voto no bacalhau. - Claudiu falou, dando o voto de desempate - Adorei o sabor leve da salada, mas tive a sensação de que faltou mais… Sustança. O bacalhau, ao contrário, está mais consistente.

A garota cuja tentativa de prejudicar seu oponente falhou arrumou suas coisas cabisbaixa e foi embora sem se despedir. No fim, seus meios ardis para chegar à vitória não valeram a pena, pois o talento de seu adversário ofuscou sua salada de lula. “Talvez, se tivesse cuidado da minha lula assim como ele o fazia com seu bacalhau, meu prato teria ficado melhor e eu estaria indo para última etapa da avaliação.”, ela pensou. Todavia, era tarde para arrependimentos.

Sozinho com os juízes, Samuel aguardava estático a última fase da avaliação. Os três conversavam sobre o desempenho do rapaz nas disputas anteriores e o que fariam para tornar a prova mais difícil, pois, segundo Irene, as duas primeiras foram fáceis demais.

— Muito bem, hora de sortear o seu oponente, dentro da equipe do Bistrô do Polvo. – Irene disse, tirando um papel enrolado de um pote de vidro depois que terminou a discussão com seus colegas – Você desafiará o chef Henrique Choay, dono do restaurante e membro da família fundadora.

As pernas do garoto gelaram e ele engoliu seco. Pensou no azar que tinha em ter que duelar com o dono do lorde da gastronomia brasileira. Claro, não desistiria, mas tinha total certeza de que perderia na última etapa. Assim, o chef foi contatado e, em alguns minutos, entrou na cozinha, fazendo o jovem mestre-cuca ficar de queixo caído pelo fato de ser o mesmo homem no qual ele esbarrou cedo, de manhã.

— Ora, se não é o carinha desastrado. – Henrique disse, piscando para o seu oponente. – Dê o seu melhor porque é exatamente o que vou fazer.

— P-pode deixar. – Samuel respondeu, corado.

— Por se tratar do chef, você precisa apenas empatar. – Irene comentou. – O desafio será preparar uma sobremesa, em duas horas, que não seja do seu ramo da culinária, ou seja, nada de pratos mediterrâneos ou brasileiros, especialidades de vocês dois.

O membro da família fundadora sequer piscou com o fato de ter que fazer algo fora de sua especialidade. Agia de maneira calculista, como se todos os seus movimentos fossem pensados e repensados. Mexia nas suas facas como um espadachim e socava a massa como um lutador boxe. Já Samuel travou. Não sabia o que fazer, pois, além da culinária mediterrânea, não sabia de mais nada.

— Devo lembrar-lhe do tempo máximo da prova? – Tomás perguntou, arqueando uma das sobrancelhas.

— Não, senhor. – Samuel respondeu nervoso. – Só estou pensando um pouco.

No meio do seu desespero, o jovem mestre-cuca lembrou-se de um amigo argentino que conhecera em Salamanca, com quem aprendeu a fazer uma sobremesa muito saborosa na Argentina: o alfajor. Seria ele a salva-lo naquela última etapa. Assim, reuniu duzentos gramas de manteiga, cento e sessenta gramas de açúcar, três gemas, duzentos e cinquenta gramas de amido de milho, cento e oitenta gramas de farinha de trigo, trinta e seis gramas de cacau em pó, uma colher de chá de bicarbonato de sódio, uma colher de chá de fermento em pó, uma colher de café de aroma de baunilha, uma colher de sopa de conhaque, raspas de um limão para a massa. Em seguida, coletou quatrocentos gramas de doce de leite pastoso de boa qualidade, uma colher de sopa de conhaque e, alterando um pouco a receita, compota de frutas vermelhas, mel e chocolate rosa derretido para o recheio. Por fim, para a cobertura, derreteu mais chocolate rosa, assim como barras do amargo.

— Nossa, você está bem? – Claudio exclamou, vendo que Henrique se queimou ao retirar a assadeira do forno.

— Estou ótimo. – o dono do Bistrô respondeu. – Melhor, impossível.

Era possível visualizar a enorme queimadura na mão de Henrique, mas ele não soltou nem um gemido de dor. Ignorando seu estado, continuou a dar forma ao seu prato. “Ele poderia parar. Sendo o dono daqui, não teria nada a perder, então por que tanto esforço?”, Samuel pensou, admirado com a determinação do chef. Para não ficar para trás, correu para iniciar o preparo da sua sobremesa. Bateu a manteiga e o açúcar, ao passo em que adicionava as gemas uma por uma, continuando o procedimento até conseguir um creme esbranquiçado e leve. Adicionou, então, o amido de milho, a farinha de trigo, o cacau em pó, o bicarbonato, o aroma de baunilha, o conhaque e por fim as raspas de limão, misturando bem até conseguir uma massa homogênea. Logo após, cobriu com filme plástico, levou à geladeira e reservou por doze minutos. Enquanto esperava, resolveu fazer logo o recheio. Para tanto, colocou o doce de leite, a compota e chocolate em três panelas e as levou ao fogo médio, mexendo sempre durante alguns minutos. Depois, acrescentou o conhaque e mexeu bem, reservando os três recheios no término. Posteriormente, retirou a massa da geladeira e a pôs sobre uma tábua polvilhada com farinha de trigo, abrindo-a com o auxílio de um rolo até que ela ficasse com poucos milímetros de espessura. Por fim, cortou a massa em círculos com, aproximadamente, dois centímetros e meio, pôs os recheios, deu forma aos alfajores e os colocou numa assadeira untada e enfarinhada e os levou ao forno pré-aquecido a cento e oitenta graus Celsius, deixando assar até que dourasse.

— Não tenho palavras para descrever esse gosto. – Claudio afirmou, apreciando o sabor do prato do chef Henrique.

— Sigo à risca a política do restaurante sobre imparcialidade nas avaliações. – Irene suscitou, dando uma bela garfada na sobremesa – Então, como crítica e não como cozinheira do Bistrô, digo que o seu mille-feuille³ está monumental.

— Sinto o gosto de caramelo, chocolate belga, açúcar, frutas, leite em pó, etc. – Tomás estava a contabilizar os sabores. – Quantas camadas esse aqui tem?

— Algumas. – Henrique respondeu – Não contabilizei. Ah, prove também, Sammy!

Samuel, corado com o apelido, aceitou provar o prato do chef. De repente, ao ingerir uma pequena garfada do mille-feuille, sentiu que prazer semelhante ao sexual. Era como mastigar nuvens e os sabores o faziam pensar que estivesse no Éden, pois tinham um palato quase celestial. “Quero que ele faça essa sobremesa pra mim por toda a eternidade!”, o jovem mestre-cuca pensou, devorando o prato de seu oponente em poucos minutos.

— Tem certeza de que está bem? - Claudio perguntou, vendo que Henrique, agora, exibia uma careta de dor.

— Não, preciso gritar. - o dono do Bistrô afirmou, dando o maior grito que conseguia.

“Ele estava mesmo se contendo. Já admiro esse cara, pois queimaduras como essa doem demais e, enquanto servia, ele nem chiou.”, o jovem cozinheiro pensou, observando o desespero de Henrique ao pôr a mão sob água corrente enquanto xingava até o ar que respirava.

— Deem um tempinho a mais ao Sammy, já que eu o interrompi. – o dono do Bistrô do Polvo ordenou, pondo um pacote com gelo sobre sua queimadura – Eu ficaria muito mal, se ele se prejudicasse porque provou meu prato.

Os três julgadores acenaram positivamente com a cabeça e reprogramaram o cronômetro. Conseguintemente, Samuel voltou sua atenção novamente à sua sobremesa. Passado o tempo de assadura, retirou os alfajores do forno e os colocou sobre uma grade, para que esfriassem. Enquanto isso, derreteu os chocolates destinados a cobertura, mergulhou neles os doces argentinos, pôs tudo no papel manteiga e os levou à geladeira por dez minutos. Finalmente, serviu aos jurados.

— Eu não ganho um? – Henrique fez biquinho por não ter recebido sobremesa.

— C-claro! – Sammy o respondeu, entregando-lhe um de seus alfajores. – Bom apetite!

Os quatro degustaram a sobremesa e demonstraram ótimas reações. Tomás, inclusive, quis mais um, pois não se contentou com o primeiro.

— É tão maravilhoso! – o chef exclamou. – Por favor, seja meu esposo!

Tal fala fez Samuel ficar tão vermelho quanto as pimentas da dispensa. Contudo, não pôde deixar de sentir orgulho de si mesmo ao receber um elogio, ainda que fosse acompanhado de um pedido de casamento, do dono do restaurante mais famoso do Rio e, certamente, do Brasil.

 - O-obrigado, eu acho... – o rapaz respondeu, ainda corado.

— Por acaso, você usou aquele novo chocolate produzido pelos suíços? O rosa? - Irene interrogou.

— Sim, o próprio. – Sammy a respondeu. – Na hora em que o chef Henrique se queimou, eu o olhei preocupado, então pude notar que ele usou de tudo, menos chocolate rosa.

— Então você aproveitou a oportunidade para trazer algo que meu prato não tinha. – o membro da família fundadora concluiu. – Que astucioso você é!

Sem dúvidas, o rapaz estava feliz com a satisfação que seu alfajor estava trazendo aos jurados. No fundo, tinha uma pitada de esperança de vencer a avaliação. Assim, foi tirado de seus devaneios quando a equipe avaliadora anunciou o veredito.

— As duas sobremesas estavam mais que perfeitas. – Claudio afirmou. – Mas o mille-feuille superou o alfajor.

— Henrique harmonizou vários sabores num prato só – Irene disse, mordiscando um alfajor de doce de leite. – Creio que isso tenha sido o diferencial, já que o alfajor, apesar de estar excelente, não nos causou a mesma surpresa.

— Veja, Samuel, você é criativo, talentoso, inteligente, tem ótimas referências e é como um mago da culinária mediterrânea... – Tomás estava a falar, mas foi interrompido pelo dono do lugar.

— É por isso que eu o quero aqui. – Henrique falou, devorando todos os alfajores que via pela frente.

“Mas como? Eu perdi! Como ele pode me querer no Bistrô do Polvo, se falhei na seleção?”, Samuel pensou enquanto retirava seu toque blanc e seu avental.

— Mas chef Henrique, ele perdeu... – Claudio falou, tentando manter a política do lorde da gastronomia brasileira acima de tudo. – Certo, o Samuel é um cozinheiro brilhante, mas perdeu.

O dono daquele lugar suntuoso quis a lavar a louça que utilizara, assim como a de seu adversário, mas foi impedido pelos juízes, por causa de sua queimadura, a qual ainda latejava. Apesar de toda a sua fama, era um homem humilde. Claro que conhecia o regimento interno de ponta a ponta, por isso quis que Sammy ficasse ali, pois havia um pequeno item no regulamento do restaurante que o permitia dar tal privilégio.

— Sim, ele perdeu. – Henrique respondeu, enxugando um prato. – Mas há no regimento um artigo cujos dizeres afirmam que, caso o candidato duele contra alguém da família fundadora, no caso eu, estará sujeito, também, ao julgamento deste.

Folheando o livro com as normas do Bistrô do Polvo, os três avaliadores encontraram o que seu chefe havia dito. Apesar de ser inferior ao mille-feuille, o alfajor de Samuel estava delicioso. Nisso, os jurados concordavam. Contudo, nunca houve um caso onde aquele artigo fora aplicado, o que os deixou intrigados, pois tentavam imaginar o fator influenciador da decisão de Henrique de contratá-lo.

— Vi o currículo dele. – o dono do Bistrô continuou. – Ok, ele se formou em Salamanca, mas ainda é um recém-formado. Um recém-formado que derrubou cozinheiros mais experientes, bem como preparou uma sobremesa gostosa o suficiente para agradar os juízes e o chef. Nesses termos, tudo o que tenho a dizer é: Bem-vindo ao time, Samuel! Espero que possamos dividir boas experiências juntos.

— O-obrigado. – o jovem mestre-cuca o respondeu, não conseguindo conter lágrimas de emoção.

A equipe avaliadora levantou da mesa e pôs-se a aplaudir o mais novo cozinheiro do Bistrô. Tinham em mente que o lorde da gastronomia brasileira haveria de aprender muito com Samuel e sua culinária mediterrânea e prosperaria ainda mais, como se isso fosse possível. Obviamente, não podia faltar o famoso abraço em grupo com o novo contratado, então Henrique, rapidamente, agarrou todos ali num caloroso abraço de urso, extraindo reclamações de Irene e suspiros desesperados de Samuel, cujo corpo não estava acostumado a abraços destruidores de costelas.

— Bem, você começa amanhã. – Henrique afirmou, vendo o novo cozinheiro do restaurante. – Não exijo nada mais, nada menos do que o seu melhor, chef Samuel!

Aquele vocativo fez o rapaz dar um sorriso de um canto a outro de seu rosto. Agora, haveria de começar uma nova etapa de sua vida e estava ansioso por isso! Não era mais o calouro inexperiente que entrara na Universidade de Salamanca, mas sim um cozinheiro no melhor restaurante do Brasil e daria tudo de si para honrar a oportunidade.

— Pode deixar! – Sammy disse, com um brilho diferente no olhar. – Vou me esforçar ao máximo. Sempre me esforçarei!


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Notas finais do capítulo

1 - Aqueles aventais de cozinheiro.
2 - Presunto. No caso, presunto ibérico.
3 - http://www.gourmettraveller.com.au/recipes/recipe-search/video/2014/10/chocolate-and-almond-millefeuille/