Indiezinho Também É Gente escrita por Alice Pereira


Capítulo 1
Mc Kevinho, Mac Demarco e bruxas de cabelos negros


Notas iniciais do capítulo

A história começa em maio de 2018, mais especificamente no dia 14, uma segunda-feira. Tudo bem, está no futuro, mas acho que chegamos lá rapidinho antes que a história vá muito longe no seu tempo, pois ão acho que conseguiria impedir essa indiezinha que tenho como personagem principal de se precipitar.
Bem, obrigada por ter dado uma chance à história, espero que não se arrependa!



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Tinha aquele jeitinho de se vestir padrão 2017, ainda que 2018 estivesse aí há tempos. Bastava olhar o cabelo chanel com franjinha e seu delineado gatinho pra saber, mas se ainda não tivesse que usar uniforme, uma camiseta do Arctic Monkeys, meia arrastão e talvez uma saia para arrematar facilitariam o reconhecimento.

Em seus fones de ouvido, no entanto, nada de “Snap Out Of It”, ainda que fosse ser adequado para a situação. Ao invés, Mc Kevinho com seus eufemismos a fazia entrar em desespero, lembrando-a do sábado anterior e do conflito interno que ele lhe havia causado. Não que a música tivesse ido parar em sua playlist por acidente, após a festa de debutante da melhor amiga. Parecia até que gostava de se torturar (e quem sabe gostasse de ser torturada, de fato)!

Não tinha o costume de ouvir funk, raras eram as exceções. Preferia suas bandinhas indie-não-tão-indie-assim e kpop. Ouvia, neste caso — e este era o motivo de seu desespero — para lembrar-se melhor de Belatrix e em como ela estava fantástica na pista de dança. Tão fechada em sala de aula, jamais imaginaria que ela podia dançar, rebolar, enfim, daquela forma. Estonteante, era a única palavra que lhe vinha em mente para descrever a garota.

Algo tinha sido despertado em si ao visualizar a cena, algo que ela talvez preferisse não identificar, muito menos nomear. Respirou fundo e tentou afastar os pensamentos vergonhosos que tinha em mente, no entanto a imagem continuava voltando mesmo após de ela ter passado para a próxima música. Nem mesmo “Here Comes A Thought” a fez desviar seu pensamento, o que era preocupante, porque era basicamente inevitável pensar em tudo que vinha acontecendo no cartoon quando alguma música de Steven Universe tocava.

Seus devaneios continuavam a correr e neste ponto, já tinha desistido de tratar a comunidade LGBT como se fosse Lord Voldemort e não pudesse ser nomeada. De qualquer forma, ela não podia ser lésbica, certo? Afinal, era perdidamente apaixonada por Ique há anos. Tampouco era bi, pan, enfim, só não podia ser. Agora ser LGBT é moda, né?, diriam, afinal ela era aquela garota que vivia a se modificar, se adequando a tudo como um camaleão.

Não seria levada a sério, nem mesmo ela sabia se o fazia. Talvez estivesse apenas confundindo as coisas, Isabela dançava muito bem, era difícil não se impressionar. Sempre admirara a menina, também, tinha algo nela que a fazia se destacar em meio a qualquer grupo, independente do quão fechada fosse, parada nos cantos da sala, apenas observando a todos com seus olhos pretos.

Talvez fosse a coma que lhe descia até a cintura. Aqueles volumosos cabelos negros, ora encaracolados, ora ondulados, próprios da bruxa. Era intimidadora, ao menos até que alguém a fizesse rir: como ria! Nunca ouvira risada tão contagiante quanto a dela. Seu silêncio certamente não se devia à timidez, do jeito que era, provavelmente só achava mais proveitoso permanecer calada.

Um sorriso nasceu em seu rosto ao lembrar de todos esses detalhes. Três longos anos apenas aumentaram o afeto que tinha por ela, conquistado já de início, não havia porquê de encarar esse carinho de forma diferente agora. Contente com o desfecho que havia encontrado para suas dúvidas, olhou pela janela do ônibus, colocando uma mexa de cabelo atrás da orelha.

Adorava fazer aquilo, sentia-se em um clipe toda vez, ainda que repetisse a ação todos os dias. Curitiba era tão bela sem os curitibanos, amava-a, no entanto sabia que um dia teria que partir. Enquanto esse dia não chegava, tentava capturar cada novo detalhe, desenho e pixação que surgia pelas paredes e postes pelos quais seu ônibus passava.

Tocava “My Kind Of Woman” quando chegou ao seu ponto, ela teria ficado no ônibus pra sempre só pra poder continuar ouvindo aquela música, porém a pausou e guardou os fones. Não se sentia segura em andar ouvindo música na rua, era melhor manter a existência do seu celular o menos exposta possível, considerando que a mãe dificilmente lhe daria outro se alguém o levasse.

Quase se perdeu em novas divagações, porém a voz arrastada de Mac Demarco continuava ressoando em sua cabeça ao longo do trajeto, cantando you’re my, my, my, my kind of woman. Sabia que a música não sairia de sua mente tão cedo (my, oh, my, what a girl) e, ao menos quando chegou na escola, ela continuava lá.

Ao entrar em sua sala, sentia que olhares acusadores pesavam sobre suas costas. Paranóia, sabia bem, porém isso não a fazia ficar menos angustiada com a situação. Teria Belatrix percebido a forma e o tempo que ela passara fitando sua circunferênciaperfeitaquetemopodernamedidacertaprateenlouquecer? Dificilmente, devia estar se divertindo demais pra isso.

Entretanto ela não era a única a ter olhos, qualquer um podia ter visto e desconfiado de alguma coisa. Mafer podia. Se fosse o caso, sabia bem que a demônia faria questão de vir pressioná-la pessoalmente para saber de tudo e, então, Lô não teria opção senão encarar o que sentia. Era um livro aberto para a amiga, que, para sua infelicidade, gostava de lê-la quase tanto quanto gostava de futsal e esportes no geral.

Sentou em seu lugar e ligou a música novamente, aliviada pela melhor amiga ainda não ter chegado. Não era comum que ela chegasse depois de Lorena, quem sabe até faltasse a aula, já que hoje era seu aniversário. Isso seria um presente dos deuses para ela, um dia a mais sem aqueles olhos castanho-escuros varrendo sua mente. Era nisso que pensava quando seu 1,75 de alegria (e de apreensão, no momento) surgiu na porta da sala, carregando uma mochila nova nas costas.

— Bom dia, flor do dia! — exclamou. Não seria preciso nem olhar, até a sua voz sorria ao falar.

Jamais tinha decidido se amava ou odiava a alegria (pasmem, genuína) que a menina exalava. Parecia escorrer pela sua pele como suor, chegava a ser grudento de vez em quando, especialmente nas manhãs nubladas em que tudo que ela queria era deitar a cabeça na mesa e dormir até a aula acabar.

Sentou-se na carteira de trás, para que a mais baixa conseguisse enxergar o quadro, e pôs-se a arrumar seu material sobre a mesa. O professor não havia chegado ainda, no entanto Mafer estava sempre pronta, não importava para que. Era bonita de ver a calma com que ela fazia as coisas, como se tivesse todo o tempo do mundo sob seus pés.

Seus cabelos pretos, lisos graças à progressiva, caíam para a frente quando se inclinava, cobrindo-a quase por inteiro na carteira. Tinha o rosto redondo e sobrancelhas grossas sobre olhos grandes, mais escuros que sua pele morena. Lorena daria tudo para tê-los no lugar dos pequenos botões azuis que tinham sido costurados em sua face pela parte alemã da família, sem nem ter a cortezia de dar-lhe um tom de azul bonito, chamativo, límpido ou qualquer coisa do tipo.

Se dissesse essas coisas à amiga, ela provavelmente rebateria a mesma coisa. As coisas são assim, afinal, a grama do vizinho é sempre mais verde, independente de quantos segredos, podres e inseguranças dele tenham sido confiadas a você.

Já que voltamos ao assunto, seu segredo — podia chamá-lo assim, já? — continuava intacto e suas preocupações pareciam ter sido vãs, até o momento. A conversa girou em torno do aniversário, o que não ajudou a aliviar sua apreensão, no entanto não parecia se desviar do que já havia sido dito por mensagem.

Seu textão de aniversário estava no perfil de Maria Fernanda desde meia noite e um, mas isso não a impediu de puxar o parabéns pra você para que a turma cantasse. Isso apenas fez com que o sorriso dela se transformasse em risada, então em sorriso de novo, contagiante demais para que Lô não a acompanhasse.

Evitava sorrir, sempre ficava feia quando o fazia, ao seu ver. Porém isso realmente não quer dizer que ela conseguisse, não tendo aquele poço de felicidade e teimosia sempre ao seu lado. Poucas foram as vezes, ao longo de três anos, em que a viu triste, menos ainda as que ela levou mais de um dia para se recuperar do baque. Não entendia como aquilo era possível, contudo desejava mais que tudo ser assim também.


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Notas finais do capítulo

Adoraria receber o feedback de vocês, o que acharam dos personagens, da premissa, da narração, enfim. Qualquer erro que tiverem notado, por favor, me avisem! E não se sintam acanhados em criticar, contanto que de forma construtiva (elogiar também tá valendo).

Músicas mencionadas no capítulo:
Arctic Monkeys - Snap Out Of It
https://www.youtube.com/watch?v=1_O_T6Aq85E
Mc Kevinho e Léo Santana - Encaixa
https://www.youtube.com/watch?v=q1MJcxAdkx0
Here Comes A Thought, de Steven Universe
https://www.youtube.com/watch?v=dHg50mdODFM
Mac Demarco - My Kind Of Woman
https://www.youtube.com/watch?v=wIuBcb2T55Q



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