O Sangue do Mestiço escrita por Júlio Oliveira


Capítulo 12
Conversão


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura! :)



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Apesar do medo ainda afetá-lo, David sabia que não deveria ficar parado. Não, não seria certo. A vila dos ditos “civilizados” passava por tempos selvagens, e exatamente por esse motivo ele deveria ajudar. O tempo inteiro pensava em seu amigo Patwin e em todas as outras pessoas que conheceu. “Abster-me de qualquer ação é tão errado quanto me juntar a Edward Muller”, acreditava plenamente. Ele mesmo já admitira: era intrometido, mas por bons motivos. Sua intromissão o permitiu formar um bom aliado, ou ao menos assim pensava sobre o padre Marcus. Tinha ainda a Margaret, que havia se mostrado bem aberta, ainda mais em decorrência da condição semelhante que seu filho vivia. “Muitas pessoas boas, sim!”, repetia mentalmente.

Entretanto, o pequeno jornalista sabia que não deveria se permitir ter uma crença desacompanhada de astúcia. Também existiam pessoas muito ruins na vila. O próprio Edward era um exemplo óbvio, mas havia ainda todos os seus empregados. Seguranças? Soldados? David não sabia bem como chamá-los. “Ah, tem também o xerife Arnold”, lembrou. Sim, aquele homem gordo e malcheiroso, viciado em álcool e possivelmente com graves problemas de autoestima. “Quer dizer, quem é que se torna xerife para ser escravizado por um ricaço idiota?”, refletiu o garoto. Bem, o fato é que ele deveria tomar cuidado, ainda que desenhasse alguns planos em sua mente. O medo era um grande desmotivador.

“Aonde quero chegar?”, questionou-se enquanto se perdia em pensamentos. Sim, ainda estava lá, sentado naquele banco de igreja sem agir de fato. O padre o ajudara de várias maneiras, começando com informações e até mesmo trazendo alguma calmaria ao seu psicológico. Mas não bastaria. Estava na hora de traçar um plano prático, algo para ser feito naquele mesmo dia. David então puxou mais uma vez o seu caderno lotado de anotações. Começou a ler.

Não há segredo algum quando falamos dessa ‘cidadezinha’ de Roanoke. ‘Cidadezinha’ talvez seja um termo que passe a impressão de algo maior do que realmente é, mas tudo bem. O fato é que ela é literalmente uma reta. Sim, uma reta. Morta, feia, sem graça. Fico pensando em como eles (os moradores) aguentam essa vista repetitiva todos os dias. Na verdade, não posso julgá-los: aguento ficar encarando os mesmos prédios em Nova York diariamente. Mas vamos lá, na minha cidade ao menos passam uns carros e outras coisas legais. Bem, acabei me perdendo. Voltemos a falar da malha urbana (urbana?) da vila (melhor assim). Podemos definir três pontos principais: a igreja, bem simples, mas grande quando comparada com as outras casas. O bar, estando ele presente no centro da ‘linha’. E, por último, a mansão do todo-poderoso Edward Muller. Não há muito que descrever, basta chegar aqui e olhar. Vocês entenderão o que estou falando”.

David ria enquanto lia suas próprias palavras. “Preciso ser um pouco mais formal”, pensou consigo mesmo, ainda que admirasse aquele texto. Pulou algumas páginas a fim de encontrar informações mais úteis ou que ao menos o trouxessem um pouco mais de confiança.

“Tudo é bem previsível aqui. Pela manhã, crianças maltrapilhas e suas mães dominam a rua (eu ia escrever ‘as ruas’, mas não faria o menor sentido). Os pais, em maioria, estão pescando, cortando lenha ou trabalhando para Edward Muller. Quando a tarde se aproxima, surge um movimento em direção ao centro, onde se encontra o bar. Ele é comandado por Ronald Green, um cara meio grosseiro, apesar de não parecer mau. Ah, tem também a filha dele, Melinda. Não que isso importe, nem sei porque anotei. Prosseguindo: em poucas horas o lugar fica lotado. Não me admira: não existem outras opções de entretenimento na ilha. Enquanto eu olhava da janela do hotel, posso dizer que a pessoa que menos vi transitando pelo lugar foi o próprio Edward. Ouvi por aí que ele é o tipo de cara quieto, misterioso e que só abre a boca quando pensa muito. Olha, se ele fala tanta besteira pensando muito, eu preferiria que ele simplesmente não pensasse. Vida que segue”.

É isso! David sabia que não tinha motivos para viver em preocupação, como se não pudesse mais pôr os pés fora de igreja. Pelo contrário, era apenas saindo que ele poderia ajudar Patwin de alguma forma, ou pelo menos descobrir novas informações. Seria cauteloso, obviamente, mas deveria manter seu tato investigativo e coragem. “Coragem? Que coragem?”, a insegurança veio, mas o pequeno jornalista logo contra-atacou: “É só agir, eu consigo”.

Com a decisão tomada, levantou-se do banco da igreja, olhou para o Cristo na cruz e pediu apoio. Foi então em direção da porta e parou diante dela. Ele estava só, pois o padre havia deixado o lugar com a Selvagem alguns minutos atrás. “É agora, garoto”, disse para si mesmo. Abriu a porta e saiu.

O dia estava claro e praticamente sem nuvens. Fazia um calor infernal, mas isso contribuíra para a vila estar um pouco mais vazia naquele momento. Com a tensão batendo as portas, David acelerou o passo sem olhar para os lados. Apenas ouvia as crianças barulhentas, suas mães e o som de passadas pesadas de homens carregando grandes peixes e outras cargas. Não demorou para chegar no seu objetivo: a estalagem de Margaret Olsen.

— Pensei que tivesse fugido — disse a mulher sem pestanejar.

Ela não estava no balcão, como de costume. Estava, na verdade, sentada na ala das mesas, encarando fixamente a porta, como se previsse a chegada do pequeno jornalista.

— Eu queria — confessou. — Mas vai demorar para isso acontecer. Como vão as coisas por aqui?

David aproximou-se lentamente, tentando ver se não havia mais ninguém ali.

— Não se preocupe — Margaret falou em tom áspero. — Somos só nós dois aqui.

O garoto respirou aliviado e logo tratou de sentar à frente da mulher. A coitada parecia acabada: seus olhos estavam inchados e os cabelos totalmente desajustados. Não só isso. David observara que o próprio ambiente da estalagem abundava em desorganização. Era algo impressionante, tendo em vista que ele tinha visto o lugar em perfeito estado dias atrás. Agora a visão chegava a ser caótica.

— Seu filho vai ficar bem — David tentou ajudá-la de alguma forma. — Patwin é um homem muito esperto, aposto que está lidando muito bem com toda essa situação.

— “Toda essa situação” — ele repetiu com descrença. — A situação é que meu filho está no meio da floresta com Deus sabe quem. Para piorar tudo, o pior homem desse mundo está atrás dele.

O silêncio prevaleceu após aquelas palavras. David sabia que nenhuma palavra sua melhoraria aquela situação, apesar de desejar muito dizer algo que trouxesse paz ao coração daquela pobre mãe. Margaret, por outro lado, também sabia que o pequeno jornalista pouco poderia fazer, além de não ter culpa alguma.

— Olha, desculpe-me — ela ajustou levemente os cabelos. — Eu só não tenho cabeça para tudo isso. Pensei que Roanoke pudesse ser um recanto de paz, mas parece que eu estava enganada.

— Eu entendo em partes — ele realmente entendia. Também sentia falta e temia pela vida de seu amigo e colega. — Mas não podemos ficar parados. Quer dizer, você vive aqui há bastante tempo, certo? Deve haver algo que possa me dizer para combatermos esse idiota do Edward.

Margaret ficou em silêncio, apenas encarando o garoto com certa estranheza. Ele continuou:

— Sei que parece loucura. Bem, provavelmente é — começou a rir de si mesmo. — Mas sempre existem peças que podemos mexer. Informações que mudam o jogo todo. Não precisamos apelar para a força bruta, Margaret.

A mulher respirou fundo enquanto absorvia cada uma daquelas palavras. Sim, ela queria muito fazer algo. Desejava de todo o coração salvar seu filho, além de existir uma certa atração na ideia de prejudicar o maldito do Muller.

— Não há nada sobre ele que você já não saiba — começou. — É apenas um ricaço que manda em todos. O xerife recebe diretamente dele, além de todos aqueles guardas.

— Fidelidade comprada — David comentou com um risinho. Já sabia daquilo, mas também sabia maneiras de fazer com que as pessoas falassem mais do que realmente desejavam. — E se aparecer alguém que pague mais...

— Não existe — Margaret o interrompeu. — Quer dizer, a grande verdade é que ele que gira a roda da economia aqui. Ele é o Estado, o mercado e a lei. Ouvi boatos até de que tem amizade com políticos do estado. Isso explicaria todo esse desmando.

“Meu Deus do céu”, pensou David, além de alguns impropérios logo em seguida. Aquela ilha era realmente um universo paralelo. Como aquilo era permitido? Como as pessoas aceitavam? Toda a ideia parecia tão idiota para o pequeno jornalista que ele tinha dificuldade de racionalizar. Simplesmente começou a rir de desespero.

— Do que está rindo? — Margaret sentiu-se ultrajada.

— Calma — ele fez um esforço para conter a risada. — É só que isso tudo é novo para mim. Sinto que acabei pegando uma máquina do tempo do Júlio Verne sem querer, perdão.

O garoto esperava arrancar risadas e aliviar a tensão da pobre mãe, mas a brincadeira não surtiu o efeito desejado. Na verdade, Margaret aparentava um pouco mais irritada do que anteriormente.

— Alguma outra pergunta? — Questionou com impaciência.

David respirou fundo. Não queria desagradá-la ainda mais. Escolheu calmamente as palavras seguintes.

— Alguém a interrogou? — Perguntou vagarosamente.

— Edward Muller tentou me intimidar, mas eu o expulsei daqui — disse ela com uma ponta de orgulho. — Aquele miserável!

“Opa! Expulsou o Edward Muller? Eu ouvi isso mesmo?”, David se assombrou. Parecia que ele tinha encontrado a segunda pessoa mais poderosa de Roanoke, afinal.

— Você o expulsou? — O garoto estava claramente surpreso. — Como fez isso? Você acabou de me dizer que ele era superpoderoso e tal.

— Ele pode ser um monstro, mas ainda tem algum tipo de respeito pelas mulheres, aparentemente — explicou. — Não ousaria me ameaçar fisicamente.

Aquilo era algo novo para o pequeno jornalista. “Então Edward Muller não é um monstro completo. Guarda um pouco de cavalheirismo dentro de si? Tenho que anotar isso”, pensou por longos segundos. Lembrou-se logo em seguida do odiável xerife. Perguntou:

— E o Arnold? Digo, o xerife. Ele veio visitá-la?

— Felizmente não. Por sinal, já faz um bom tempo que não vejo aquele traste — falou com um misto de estranheza e alívio. — E sou verdadeiramente grata por isso.

— Você tem alguma história com ele? Digo, já fez algo de mau contra você ou seu filho?

— Além de ter vindo algemar o Richard por causa de simples quadros? Não que eu me lembre — seus olhos começaram a se encher de lágrimas com aquela lembrança. — Eu sei bem que o meu garoto pode parecer estranho, mas ele tem um bom coração. Nunca fez mal a ninguém e me ajuda sempre que pode. Ajudava-me, na verdade.

David ficou realmente emotivo ao ouvir o curto relato da mãe sobre seu filho. Era possível ver nos olhos dela todo o sofrimento e saudade. Parecia estar ainda mais devastada do que no momento em que o garoto adentrara a estalagem.

— Ei — ele disse segurando as mãos dela. — Nós daremos um jeito. Em breve Richard estará em seus braços e, de alguma forma, Roanoke vai se tornar um lugar melhor. Tenha fé.

Sentiu-se um padre falando aquilo, mas uma grande paz invadiu sua alma ao ver um sorriso de gratidão advindo de Margaret. Ela lhe deu um tenro abraço e agradeceu verbalmente.

O momento de carinho teve um rápido fim quando a dupla ouviu uma voz embriagada advinda de fora da estalagem.

— Margaret! — Arnold gritava. — Cadê você?! Não consigo abrir essa porcaria.

Falava enrolado e batia repetidamente na porta. “Estrupício embriagado”, pensou David. Margaret arregalou os olhos e encarou o pequeno jornalista.

— Sobe — sussurrou apontando para cima.

O pequeno jornalista disparou, subiu as escadas e logo se trancou no primeiro quarto que viu. “Maldição! Que droga de azar é esse?”, questionou enquanto olhava para o teto. O que deveria fazer? Esperar o xerife sair? Ele estava embriagado, não deveria ser difícil para Margaret lidar com ele. Mas e se o homem agisse de maneira violenta? Deveria David intervir? Essa intervenção surtiria algum efeito? “Droga, sou só um magricela de 19 anos”, pensou enquanto lembrava do tamanho do seu algoz. Resolveu esperar e, encostando o ouvido na porta, tentou entender o que era dito lá embaixo. Não seria tão difícil, tendo em vista que o homem estava falando aos gritos.

— Já vou! — Margaret berrou enquanto ia em direção a porta. — Quanta impaciência.

A memória de Arnold já lhe havia pregado várias peças. Mas dessa vez ele se lembrava bem: fora o garoto de cabelos claros que lhe trouxera toda aquela bebida no outro dia. Ele foi a última pessoa a ser vista antes da fuga do mestiço, do índio e do esquisito. Só poderia ser o responsável.

— Estou esperando — suas palavras saíam enroladas, mas eram compreensíveis.

Ao abrir a porta, Margaret se deparou com Arnold mais feio do que o comum. Seu rosto estava inchado após a punição que Edward Muller aplicara, além de seu odor estar forte e horripilante.

— Minha nossa — Margaret não escondeu o espanto. — O que você quer aqui?

Sem qualquer polimento, o xerife quase que atropelou a mulher e adentrou a estalagem. Respirou fundo e olhou para todos os cantos possíveis, procurando qualquer sinal de David ou qualquer outro suspeito.

— Esta não é sua casa — ela o lembrou antes de fechar a porta com força.

— Eu sou o xerife aqui — ele começou a andar em direção a cozinha. — Ele está aqui?

Margaret, com a paciência no limite, se interpôs entre o homem e a porta de sua cozinha.

— Ele quem? — Perguntou com aspereza. — Não faço ideia do que esteja falando.

— Claro que sabe — o xerife deu uma risada desdenhosa, de maneira que seu terrível hálito se espalhou e invadiu a respiração da moça a sua frente. — Ele se hospedava aqui junto com aquele mestiço. Qual o nome mesmo? Não lembro, mas sei que ele tinha os cabelos claros, baixinho. Cara de criança.

— Você deve estar confundindo as coisas. Está embriagado, definitivamente não está em condições de trabalhar.

Arnold deu um sorriso triste. Realmente não tinha condições de trabalhar com tanto álcool no sangue, mas sabia que por si mesmo também seria incapaz. Um lapso de memória então clareou as coisas para ele.

— David — falou com certa ferocidade. — Esse é o nome. Não tente negar, Margaret.

Ela engoliu seco. Estava diante de uma situação muito complicada. Certamente insistir que desconhecia o garoto não iria funcionar. Mas contar a verdade também poderia colocar seu próprio filho em risco. Como agir? Deveria ficar no meio termo, em cima do muro de alguma forma. Esforçou-se ao máximo para parecer calma.

— Ah, sim. Lembro-me dele — suas mãos suavam, mas ela manteve a serenidade aparente em seu rosto e voz. — Realmente se hospedava no mesmo quarto que o mestiço. Mas assim como seu companheiro, ele também desapareceu. É só isso que sei.

Ouvindo aquilo do quarto, David respirou aliviado. Aquilo certamente funcionaria. O que o xerife poderia argumentar?

— Ele sumiu? — Questionou o bêbado. — Então deve ter deixado seus pertences para trás. Creio que não tenha problema nenhum eu verificar os quartos, certo, senhora Margaret?

Aquilo a pegou de surpresa. Mesmo bêbado e fedendo, Arnold não deixava de ter um pouco de astúcia. O perigo era real. Margaret voltou a mentir:

— Eu mesmo fiz isso, xerife. Eles levaram tudo. Devem ter entrado durante a madrugada, sem dúvidas.

Arnold começou a sorrir. Era um sorriso incômodo para a mulher, um sorriso perigoso. Ele falou:

— Engraçado isso, não? — Começou a andar de maneira lenta e intimidadora em direção a moça. — Você parece tão calma para esse caso todo. Ainda mais quando lembramos que seu filho está entre os fugitivos. Um criminoso e tendo como maior inimigo Edward Muller. Aprecio sua frieza, Margaret Olsen.

Aquilo foi como uma lâmina atravessando a alma da pobre mãe. Não, ela não podia aceitar aquilo. Deu um passo em direção ao xerife nojento, reduzindo a distância, e, com a cabeça erguida, disse:

— Meu filho não é um criminoso! Você ou Edward Muller, não importa: ninguém fará mal algum contra Richard. Isso eu garanto. E coitado daquele que o fizer — sua voz não trazia grosseria, mas abundava em força e confiança, quase como uma profecia.

Aquela atitude assustou um pouco o xerife, que acabou recuando e apresentando uma clara vergonha da situação.

— Agora chega — disse ele. — Vou verificar os quartos você gostando ou não.

Margaret pensou em reagir de maneira mais agressiva, mas logo viu que aquilo apenas aumentaria as suspeitas do homem. Pensou também em como qualquer problema pessoal dela com o xerife poderia piorar a situação para seu próprio filho. Apenas torcia para que David tenha ouvido bem a conversa e fugido pelos fundos, pela janela, ou de qualquer outra forma.

O pequeno jornalista, no entanto, não estava tão preparado para aquilo. Começou a ouvir os passos de Arnold e entrou em desespero. “Meu Deus! Não saiu nada como planejei”, pensou enquanto tentava ver qualquer coisa que pudesse fazer para escapar daquela situação. Olhou para a janela, mas a altura, apesar de não tão elevada, fez o garoto revirar o estômago. “E se eu quebrar as minhas pernas? E se ele me ver fugir e isso piorar tudo?”, o medo tomava conta de sua mente. Todas as possibilidades negativas apareciam diante de si.

E, entorpecido pelo medo, só veio a despertar quando Arnold abriu sua porta sem nenhuma delicadeza. Com um forte chute do homem, a tranca não resistiu e simplesmente se rompeu. A figura do xerife estava mais feia e deformada do David se lembrava, o que tornou tudo ainda mais assustador.

— Ai, ai — a voz típica de embriaguez demonstrava desprezo. — Tão previsível.

— Falou o cara que todos sabem o que faz quando vê uma garrafa de álcool — David usava o humor para tentar disfarçar seus medos.

Sim, o garoto tinha um plano. Tinha pensado em tudo enquanto estava na igreja, mas definitivamente colocar em prática não era algo fácil. “Bem melhor pensar no silêncio, sem riscos e com amigos”, refletiu. Ele precisaria se virar como podia.

— É muita coragem — Arnold aproximava-se lentamente. — Margaret guarda um bandidinho aqui e ele ainda quer fazer brincadeiras estúpidas?

— Primeira coisa: a Margaret não sabe de nada. Escalei pela janela — o garoto não queria que a mulher sofresse ainda mais. — Segundo: eu menti?

O xerife rosnou de raiva e se aproximou ainda mais. A luz da janela bateu mais forte em seu rosto e David pôde finalmente vislumbrar todas as marcas que Edward deixara no homem. O pequeno jornalista não presenciara nada, mas podia deduzir muito bem quem tinha feito aquilo.

— O que é isso, xerife? — Questionou o garoto apontando para o rosto do seu algoz.

— Do que você está falando? — Arnold agora parecia mais raivoso do que o usual.

— Essas feridas? Quem fez isso? Acho difícil que tenha sido um índio.

O bêbado lembrou-se do que Edward o fizera. Aquilo o deixou ainda mais irado. Como podia aceitar aquilo? Como se sujeitava a um velho como aquele? “Não, tenho que fazer o meu trabalho”, tentou enterrar seus próprios questionamentos.

— Não é da sua conta — disse enquanto cerrava os punhos.

David viu que estava surtindo efeito. “Sim, é possível trazer para o nosso lado, ou ao menos algo próximo disso”, refletiu. Essa simples possibilidade acalmou o garoto e o fez agir com mais calma.

— Edward Muller, não é? — Questionou. — Um verdadeiro diabo. Você faz tudo para ele, e como que te recompensa? Com mais dor? Com marcas? É sério isso?

— Calado! — Arnold gritou.

Ele avançou com ódio e seu desejo era de agredir o garoto. David percebeu esse impulso e seu primeiro instinto seria sair correndo. Mas ele decidiu ficar apenas ali. Parado e com o peito estufado, o pequeno jornalista se fez grande diante do medo.

Vendo que o menino não se mexia, Arnold chegou a levantar o punho, mas logo interrompeu o seu movimento. Não fazia sentido bater em uma pessoa que não reagia de maneira alguma.

— Mas que droga é essa? — O xerife questionou sem entender a situação.

— Eu não sou seu inimigo, Arnold — David tinha total controle da circunstância. — Eu acredito que cada um recebe aquilo que merece. Nós aceitamos esse destino e escolhemos não reagir. E ficamos tão acostumados com a prisão, que não sabemos que podemos voar a qualquer momento.

Arnold recuou e permaneceu escutando com total atenção.

— O que te deixa preso a Edward Muller? Ele te paga, mas e daí? Faça seu trabalho como xerife, um servo da justiça. Ouviu bem? Da justiça, não de um homem — o pequeno jornalista sentia um conforto que já havia esquecido há tempos. — O que você teme? Que Muller te mate?

Arnold não respondeu, mas David percebeu bem que o homem engolira seco e prendera a respiração. “Sim, sente muito medo”, pensou o garoto.

— Ele não pode te matar. Você representa a justiça aqui. As pessoas podem não dizer, às vezes pode até mesmo parecer o contrário. Mas a verdade é que te amam — mentiu. — Se Muller fizesse algo contra você, ele perderia todo o apoio e poder. As pessoas se rebelariam. Entende? Você tem um grande poder em mãos, Arnold. Não seja escravo de um ricaço com complexo de Deus.

O pequeno jornalista conseguiu visualizar o efeito de cada uma de suas palavras nos olhos do xerife. Sim, ele estava sendo convertido para o seu lado. O homem parecia até mesmo sem jeito.

— Eu nunca... — ele tentava falar, mas não sabia que palavras usar. — Nunca havia pensado desse jeito.

“Funcionou!”, David queria sair pulando pelo quarto, mas se conteve ao máximo que pôde. Apenas apresentava um sorriso vitorioso.

— Ficamos assim, xerife: eu saio por essa porta e você esquece do nosso encontro. Continue com o seu trabalho. Mas peço algo: conte-me tudo que souber do Edward. Qualquer informação nova — o pequeno jornalista sentia verdadeira autoconfiança. — Sinto que podemos fazer muitas coisas boas juntos. E isso Edward Muller não pode pagar.

Ocorria uma briga dentro da cabeça de Arnold, mas durou pouco: ele havia sido verdadeiramente convencido pelas palavras daquele garoto. Pela primeira vez deu um sorriso sincero e, balançando afirmativamente a cabeça, começou a se retirar do quarto.

— Onde posso te encontrar? — Ele perguntou.

David pensou por um momento, mas logo teve uma ideia. Comunicou-a:

— Apenas deixe informações por escrito na igreja. Edward não vai questionar a religiosidade de um homem.

O xerife sorriu mais uma vez e se retirou. Margaret estranhou a facilidade com que David convenceu o homem a trocar de lado. Estando mais uma vez a sós com o garoto, questionou:

— Como você fez isso?

— Dizem que palavras podem cortar mais que espadas, perfurar mais que balas — ele estava triunfante. — Acredito nisso de todo o coração.

Dito aquilo, David se despediu de Margaret e partiu de volta para a igreja. Dessa vez, o seu caminho foi tranquilo, sem medo. Mas ainda tinha cautela: deveria evitar os lacaios malditos de Edward. Por sorte, tudo que encontrou foi um sol mais ameno e muitas crianças brincando, além de alguns cachorros.

Pensando estar livre de sustos e surpresas, David se espantou com o que viu assim que adentrou a igreja. Com o altar fora de sua posição original, o padre Marcus apareceu subindo uma escada, revelando que havia algum ambiente misterioso abaixo da igreja. O altar logo retornou a sua posição original a partir de algum mecanismo que o pequeno jornalista não conseguiu identificar.

— Padre? — Falou com descrença.

— Oh, David — Padre Marcus apresentou serenidade em suas palavras. — É bom te ver de volta.

Selvagem logo correu para encher David de amor e lambidas. O garoto não sabia como reagir: deveria questionar o padre sobre o compartimento misterioso, ou simplesmente seguir em frente? O homem agira de forma tão natural que não poderia ser algo de ruim. Ou poderia? Mais uma vez, uma espécie de medo agudo invadiu David.

— Alguma novidade sobre sua missão? — Marcus perguntou.

O pequeno jornalista refletiu: o padre só o ajudara até então. “Além de ser inimigo de Edward Muller”, lembrou, o que o deixou levemente aliviado. Resolveu contar parcialmente a verdade.

— Preciso de um novo lugar para ficar. Não me dou bem com os índios, mas posso ser um bom cristão — brincou.

— Precisando de abrigo? — O padre questionou com seriedade. — Bem, se está fugindo de Edward Muller, saiba que ele nunca vem aqui. Então se busca segurança, sim, você está no lugar certo.

Aquilo aliviou o garoto, apesar da imagem do padre emergindo do compartimento inferior da igreja ainda estivesse o aterrorizando de alguma forma.

— Tem uma cama sobrando e comida — o padre confirmou. — E o mais importante: Selvagem gosta de você.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!

O que achou do capítulo?

Nos vemos semana que vem ;)



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