Quantas dúvidas escrita por DiHen Gomes


Capítulo 34
34 - Bia




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Preciso passar em casa antes de ir evangelizar, pois falhei de novo ao esquecer de levar minha blusa de obreira para o trabalho. É o que dá não usar bolsa. E nesse horário tem chances de minha avó estar em casa. Não aceito entrar em discussão e quebrar o jejum logo no primeiro dos vinte e um dias.

— Bia, não pagou a TV esse mês de novo?

Meu irmão fala como se me intimidasse com esse tom de voz. E para piorar, minha mãe entra na discussão:

— Ana Bianca, quando é que você vai tomar juízo? É seu nome que vai ser negativado por causa da sua irresponsabilidade. Se seu pai estivesse aqui, com certeza você ia apanhar dele mais uma vez. Tá precisando pra ver se essa sua cabeça volta pra Terra e você acorde pra realidade. É uma estúpida, uma burra mesmo. Acha que as coisas caem do céu? Você tem que pagar suas contas, não achar que vão sumir por milagre…

— É só uma televisão, mãe! Não precisa tudo isso.

Nem sei mais do que ela está falando. Só o Espírito Santo para me dar paciência.

— Você quase não assiste, por isso pra você não faz diferença.

— Não é isso…

Até seria. Agora, então, três semanas direto em jejum, sem assistir a nada.

— É o quê, então? — Lucas me fuzila com o olhar. — Pensa que não sei que você vai dar tudo, suas férias e décimo terceiro, tudo na igreja?

— Isso é particular — respondo na maior calma possível. — E, Luquinha, agora que você tá trabalhando, pode ajudar a pagar as contas. Já que estão dizendo tanto que você está num emprego melhor que o meu…

Minha mãe chega bufando entre mim e Luquinha, e defende-o como se fosse um bebê agarrado na barra da sua saia.

— Bia, você tá muito chata, nossa! Dá um tempo. Vai morar na igreja, pede pro pastor te sustentar!

Viro-me para ir ao meu quarto, pego minhas coisas, uso minha bolsa seminova (quase nunca usei desde que a comprei, dois anos atrás) e vou à calçada. Luquinha vem atrás de mim puxando algo grande.

Meu colchão.

— Tô falando sério — minha mãe grita da janela. — Já que você dá tudo pra igreja, e sustenta aqueles engravatados em vez de bancar as contas da própria casa, vai morar com eles de uma vez!

Luquinha abandona o colchão no quintal e volta para a sala. Isso está acontecendo? Real? Fico parada olhando para a janela, agora fechada, por tempo indeterminado. Levanto os olhos ao azul totalmente descoberto do céu, e clamo pelo único que está ao meu lado.

— Por quê? O que está havendo, meu pai? Meu Deus, meu pai, eu não sei agora como agir. Não vou me deixar abater, mas, meu pai, me dá forças. — Pego o colchão, vou para a rua e deixo-o encostado no muro da frente de casa. — Senhor meu Deus, eu peço a sua direção, ó, meu pai, pra onde vou. Agora vou te servir, no evangelismo, e depois está nas tuas mãos, meu Deus. Conta comigo para ganhar almas, é tudo que importa pra mim. O resto é resto.

Alguns jovens estão evangelizando comigo, mas ninguém precisa saber que não tenho para onde voltar depois. Rio normal das brincadeiras sem graça do Felipe, continuo de olho no Meck e na Thalia, e também no Bruninho e nas outras meninas.

A obreira recém-levantada fica puxando conversa comigo. Não estou a fim de conversa, mas depois da reunião da liderança não sobrou outra pessoa comigo, para não ficar só com o pastor na igreja (o que não é certo). Pergunto onde ela mora, e sua resposta divaga em outros assuntos e muitas palavras emendadas.

— …além dos gatos peludos, que são quatro, tão fofos, você precisa de ver, eles parecem entender o que a gente diz, sabe? A Tina, a mais branquinha, eu acho que tá prenha de algum gato da rua, toda noite é aquela barulheira no telhado, argh! Mas é bem tranquilo onde moro, e… Puxa, eu tô falando sem parar, desculpa Bia, o que você queria?

— Viu, Mokado, quero dizer, obreira Mokado, a senhora…

— Só Mokado mesmo, tá bem? A gente é amiga. E nem vem com essa de senhora pra cima de mim. Sou mais nova que você! Ha-ha!

— Certo. Posso pedir um favorzinho? Na verdade é um favorzão. Eu… eu… pensei em… pousar na sua casa.

— Uau!, sério? Será demais, Bia! Vamos sim. Estava pensando em preparar um macarrão frito hoje, mas como meus pais estão viajando, eu sozinha seria um desperdício. Mas agora, ô, você vai ver, não, você vai provar que delícia que é! E você ainda vai poder conhecer meus gatos!

Sempre ouvi dizer que japoneses eram calmos, mas essa Mokado não tem nada a ver. Ela não fica um segundo parada. Nem que seja apenas batendo um dedo contra outro, alguma coisa ela precisa mexer. O tempo todo. Imagino o sacrifício dela em ficar parada na hora da palavra quando ela trabalha nas reuniões de quarta-feira!

Sacrifício. Mal peguei meu envelope e a prova já começou. É sinal de que estou no caminho certo, e o próximo testemunho a ser dado no altar será o meu.


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