Meu Anjo da Guarda escrita por Milady Sara


Capítulo 1
Sapatos azuis




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Amanda soltou um suspiro forte depois de o garotinho ruivo sair de sua sala fechando delicadamente a porta. Esse era sempre o dia mais difícil do ano para ela, a orientadora e psicóloga daquela escola do interior. Um lugar pequeno, sem quase nenhum apelo turístico onde os típicos caipiras norte-americanos viviam aos montes.

Sempre no começo de maio as classes de alunos mais novos promoviam a mesma atividade, desenhar a sua casa com todos os moradores juntos, como em um dia comum. As crianças raramente se freavam nessas horas, eram totalmente honestas e então, era hora de fazer a seleção dos desenhos. Todo o corpo docente se reunia para essa tarefa, separar os desenhos inofensivos dos que revelavam lares potencialmente problemáticos.

Os que não tinham nada de mais, apenas desenhos fofos e felizes eram pendurados nas paredes das salas, enquanto que os mais preocupantes vinham parar em sua mesa, e cada uma das crianças que os desenhou vinham até sua sala para uma breve conversa. Dependendo da conversa, os funcionários seriam alertados para ficarem de olho nos alunos e eventualmente ela tinha que entrar em contato com a polícia ou o conselho tutelar.

Esse ano não havia tantos desenhos, mas isso não tornava a tarefa mais fácil. Pegando a próxima pasta, ela leu o nome etiquetado nela.

Hannah River

 Abriu a pasta, colocou o desenho na horizontal para contemplá-lo melhor e poder ler a ficha da garotinha de cinco anos. Deixou uma caneta a postos em cima da página em branco de seu caderno e se esticou para conferir se a caixa com bichinhos de pelúcia ao lado da cadeira à frente de sua mesa não tinha nenhum integrante faltando.

Amanda duvidava que eles fossem ser necessários, geralmente os meninos precisavam de um amigo peludo, mas as meninas eram mais duronas. Então, apertou o botão a sua esquerda para falar com sua secretária.

— Maria, pode trazer a Hannah River, por favor.

Sim, senhora. - uma voz respondeu e pouco tempo depois, Maria abriu a porta para uma garotinha um pouco pequena demais para sua idade. Ela sorriu conduzindo de leve a pequena a entrar, e antes de fechar a porta, piscou para Amanda.

— Oi, Hannah. – disse Amanda com seu sorriso doce, porém não simpático demais. Algumas crianças eram muito desconfiadas.

— Oi, senhorita Sinclair. – Hannah respondeu baixinho. Parecia uma criança normal e bem cuidada, apenas tímida escondendo seus olhos cor de avelã entre os cabelos negros.

— Pode se sentar, por favor. – disse gesticulando para a cadeira à sua frente. Pensou que Hannah fosse fazer uso dos degraus que havia ao lado da cadeira para subir, mas ela se colocou na frente da cadeira e subiu com a força de seus bracinhos, sentando-se na beirada. – Tudo bem com você? – a garotinha assentiu que sim, olhando para baixo. – Quer algum bichinho de pelúcia para ficar com você enquanto estamos aqui? – dessa vez ela balançou a cabeça negativamente. - Não vamos demorar muito, tudo bem? A propósito adorei seus sapatos. – a pequena não respondeu, mas um leve sorriso preencheu seu rosto com o elogio. Amanda decidiu ler rapidamente a ficha da garota e analisar novamente seu desenho antes de começarem.

Hannah balançava levemente seus pés, admirando seus sapatos. Lindos sapatos azuis com florezinhas brancas e um laço de fita em cima, eram seus sapatos favoritos e ela os usava para ir a todo lugar. Não cansava de ver como eram azuizinhos e de tentar contar suas flores, mas ela não conhecia tantos números assim então sempre parava ao chegar em 25. Por sinal, hoje estava usando suas roupas favoritas, seus sapatos azuis, seu vestido roxo e sua presilha de coelho que ela colocara cuidadosamente depois de se pentear.

— Hannah? – Amanda a tirou de seus devaneios e ela olhou para cima, para os olhos verde água da loira. – Podemos começar? – ela assentiu evitando baixar demais o olhar, se fixando na plaquinha escrito “Amanda Sinclair” virada para si. Seu pai dizia que essa mania de falar olhando para o chão era irritante, então ela vinha trabalhando nisso. – Aqui diz que você tem cinco anos, mas que fará seis daqui a dois meses, está certo?

— Sim, faço aniversário dia 11 de julho. – ela entoou e Amanda sorriu por pareceram estar finalmente engatando uma conversa.

— Aqui também diz que você nunca chegou atrasada, nem arranjou problemas com nenhum outro aluno... Basicamente, você é uma boa menina. – a criança sorriu novamente com mais esse elogio. – Mas você já sabe disso, então não precisa se preocupar, não chamei você aqui porque está encrencada. – ela pegou o desenho com as duas mãos e o mostrou para Hannah. – Reconhece esse desenho? Foi você que o fez na aula da senhora Michaellis, não foi?

— Sim, senhorita.

— Eu chamei você aqui por causa desse desenho. – esclareceu baixando o papel e o virando novamente para si. – Lembra o que desenhou?

— A minha casa, como todo mundo.

— Isso mesmo. Então deixe-me ver... Esse aqui na frente da televisão é o seu pai, na sua sala, certo? – a pequena assentiu em resposta. – E tem vários objetos no chão e na mão dele, o que são essas coisas Hannah?

— São garrafas de felicidade.

— Garrafas de... Felicidade?

— Aham.

— O que são garrafas de felicidade? – a garota deu de ombros.

— Eu não sei direito. Algumas parecem água, mas uma vez eu cheirei uma vazia e ela tinha um cheiro muito muito forte e ruim. Então perguntei ao papai o que era aquilo, ai ele disse: - ela simulou uma voz mais grossa e esticou o braço na direção de Amanda, como se segurasse uma garrafa invisível. – “Isso aqui querida, é a única coisa que faz o papai feliz hoje em dia.” – Amanda franziu o cenho enquanto a garota baixou o braço.

— Seu pai bebe muitas delas?

— Toda noite ele chega do trabalho e bebe um montão na frente da TV.

— Entendi... E quando ele as bebe, ele fica zangado?

— Papai é sempre zangado, mas quando bebe felicidade ele grita.

— Com você? – ela assentiu em resposta.

— E com a mamãe. Depois disso ela me manda pro meu quarto dormir e fechar a porta.

— Entendi. – Amanda rabiscou algumas palavras em seu caderno. – E sua mãe? Ela também bebe... “Felicidade”?

— Não... – Hannah fez um beicinho. – Mamãe está sempre triste e chora muito. Se ela bebesse felicidade talvez ficasse alegre, mas eu não quero que ela grite comigo.

— Sua mãe não grita com você? – dessa vez ela balançou a cabeça.

— Não, não. Mamãe fala baixinho, como se tudo fosse um segredo.

— Certo... Mas Hannah, por que aqui no desenho você desenhou sua mãe deitada no chão? Ela caiu?

— Eu não sei. Mamãe deita no chão às vezes e chora, ela tenta fingir que não chora, mas dá pra ouvir.

— E porque ela chora, você sabe?

— Eu não sei... – a garotinha voltou a olhar para seus sapatos, as mãos juntas, apertando seus próprios dedos, contando novamente as flores branquinhas. Uma, duas, três, quatro...

— Tudo bem. Você não precisa saber de tudo. Okay? – sem resposta. Sete, oito, nove... – Você gosta dos seus pais, Hannah? – doze, treze, quatorze, quinze... – Pode falar querida, essa conversa é só nossa, eu não vou contar nada para eles.

— Eu gosto mais da mamãe... – soltou baixinho.

— Eu também amo muito a minha mãe. – Hannah ergueu os olhos e viu o calmo sorriso de Amanda, ela suspirou e soltou suas mãos uma das outras. – Eu sei que é uma conversa difícil, mas não precisa ter medo, pode confiar em mim, tudo bem? – a criança apenas a encarou. Pegando a caneta rapidamente, ela anotou mais algumas palavras e se voltou para a menina. – Mas eu preciso perguntar Hannah... Seu pai já fez algo com você que você não gostou? Te tocou em algum lugar, te fez fazer alguma coisa... – ela não reagiu a essas palavras, então Amanda decidiu ir por outro caminho. – Te bateu...? – Hannah balançou a cabeça negativamente. – Tem certeza? – dessa vez ela assentiu.

— Papai não faria isso. Ele só grita. O trabalho dele é difícil. Foi o que a mamãe disse.

— Ela disse?

— Sim. Que o papai tem um trabalho difícil e nós temos que ser compreensivas com ele, porque ele não é um homem mau, só cansado.

— Entendi. – Amanda escreveu novamente em seu caderno. – Agora Hannah, eu preciso saber só mais uma coisa. – pegando novamente o desenho, ela virou a folha, esquecendo a sala de estar e a cozinha desenhadas e olhando agora para o que seria o quarto de Hannah, onde havia um desenho dela e de um homem. Ela o apontou e mostrou para Hannah. – Quem é esse? – a garota sorriu.

— É o meu anjo da guarda.

— Seu anjo da guarda?

— Sim! Ele me visita quase toda noite.

— É mesmo? E o que vocês fazem?

— A gente brinca e fala com as nossas mentes.

— Falam com as suas mentes?

— Sim, ele não tem boca, então ele fala na minha cabeça! – isso explicava porque o desenho do tal anjo da guarda não estava sorrindo como os outros membros da família. – Ele também não tem olhos nem nariz.

— E porque isso?

— Eu não sei, ele disse que nasceu assim.

— Certo, e porque ele usa um terno? – Amanda sabia que era um terno, porque Hannah havia sido muito cuidadosa ao desenhar seu quarto, talvez o cômodo que ela melhor conhecesse na casa, por passar mais tempo lá.

— Ele disse que é bom sempre se vestir elegante e com o que a gente gosta, e ele gosta de ternos.

— Entendi. – a loira fitou novamente o desenho do homem sem rosto e terno. – Alguém mais consegue ver esse seu amigo?

— Não. Ele só gosta de aparecer para mim, diz que eu sou a melhor amiga dele.

— Que legal. – a orientadora sorriu fazendo sua última anotação. – Bom, acho que é só isso Hannah. Viu como nossa conversa não demorou tanto? – e olhou fundo nos olhos da garotinha. – Você já pode voltar para sua sala, mas antes, pega isso aqui. – ela tirou um de seus cartões do bolso e entregou na pequena mão da menina. – Enquanto estiver na escola você pode vir falar comigo sempre que precisar, mas estando fora dela, basta ligar para esse telefone, tudo bem?

— Okay. – Hannah disse segurando o cartão com as duas mãos. Com um leve pulo ela logo estava no chão e indo até a porta. – Tchau, senhorita Sinclair. – em resposta Amanda sorriu levemente.

Ao ouvir o clique da porta se fechando, voltou sua atenção para suas anotações.

 

HANNAH RIVER

Tímida    Independente    Pai alcoólatra?    Mãe emocionalmente abalada. Distúrbio mental?

Possível abuso psicológico   Sem marcas de traumas físicos visíveis, consultar professora

Violência doméstica? Consultar antecedentes na polícia e no hospital

“Anjo da guarda” Amigo imaginário – Sinal de carência? Se sente desprotegida? Terno?

 

Hannah estava entre os sorteados que ela teria que dar andamento no dia seguinte. Arrancou a folha de seu caderno e colocou na pasta, segurou o desenho o observando uma última vez.  Aquele não era um dos casos mais pesados que já havia descoberto, tampouco o desenho era o mais perturbador.

Algumas crianças desenhavam detalhes ou escreviam pequenas legendas para o que desenhavam e era interessante ver como algumas processavam certas coisas ou acreditavam nas mais simples mentiras dos pais. Virando a folha, Amanda encarou a face sem rosto do tal anjo da guarda e sentiu um leve desconforto, o que era ridículo, afinal ele era apenas um círculo em uma folha de papel.

Jogou o desenho dentro da pasta, a fechou e colocou na primeira gaveta á sua esquerda, aquela destinada aos casos que seriam levados adiante. O dia estava mais cansativo e tóxico do que ela esperava. Massageando suas têmporas antes de apertar o botão à sua esquerda novamente, decidiu que convidaria Maria para tomar uma garrafa de vinho naquela noite.

~*~

Hannah correu ao lado de Hazel até ambas chegarem à calçada da escola, as tranças de Hazel sempre ficavam perfeitas e arrumadas do começo ao fim da aula, e Hannah se perguntava o que ela passava no cabelo para isso acontecer.

As duas riram e sorriram uma para a outra, Hazel começou então a falar sobre como seu novo irmãozinho chorava a noite inteira. Fazia pouco tempo que o bebê havia nascido e a garota só sabia falar disso. Hannah não tinha irmãos e achava aquela conversa chata, então apenas ouvia calada, ajustando a alça de sua mochila que levava nas costas.

Quase todas as crianças tinham mochilas de rodinha e colocavam suas lancheiras na alça desta, já ela tinha uma mochila normal e levava sua lancheira na mão, o que fazia Crystal frequentemente perturbá-la por isso. Na verdade, Crystal a perturbava por qualquer motivo que encontrasse, mas ela não ligava mais.

A mãe de Hazel buzinou quando o carro encostou na calçada e acenou para Hannah, que repetiu o gesto. Sua amiga deu um tchau rápido e correu para o grande carro, deixando a garotinha dos sapatos azuis sozinha, mas ela já estava acostumada. Sempre ficava com Hazel até sua mãe chegar, então esperava todas as crianças que conhecia irem embora, para enfim ela ir a pé para casa.

Não gostava de admitir que seus pais trabalhavam demais para ir busca-la, então a pequena dizia que eles apenas demoravam um pouco, assim todos os seus conhecidos iam embora e ela fazia sua caminhada. Não era nenhum sacrifício, ela morava ali perto. Sem contar que gostava do som que seus sapatos favoritos faziam ao baterem no concreto da calçada, ela se sentia uma sapateadora.

Perdida em seus devaneios, nem percebeu que já estava em casa. Uma casa pequena, o que para ela fazia sentido, ela e os pais eram apenas três, mas gostaria de ter uma casa maior, talvez assim ela não ouvisse com tanta clareza os gritos e outros barulhos que o pai fazia. Tirando as chaves do bolso de seu vestido, ela ficou na ponta dos pés para abrir a porta, entrando, seguiu em linha reta para abrir a porta de correr do jardim e deixar o ar entrar.

Agora se iniciava sua rotina de quando estava sozinha em casa, a única parte do dia em que se sentia bem naquele local. Bom, tirando talvez quando estivavam apenas ela e sua mãe.

Colocou a lancheira em cima da bancada da cozinha e subiu para seu quarto, chegando lá, tirou e limpou cuidadosamente seus sapatos e os colocou ao lado da cama, para o dia seguinte. Antes ela andava descalça em casa, mas começara a pisar em pedaços de vidro quebrado, então agora usava um chinelo com desenhos de nuvens que sua avó havia lhe dado de presente. Deixou a mochila ao lado de sua mesinha e guardou a presilha de coelhinho.

Tirando papeis e seus lápis de cor da mochila, ela começou a desenhar. A conversa com senhorita Sinclair a havia deixado com vontade.

Enquanto seus dedinhos se movimentavam pelo papel, uma figura apareceu ás suas costas, sem que ela percebesse.

Poderia ser um homem incrivelmente alto, magro e pálido usando um terno tão negro quanto uma poça de piche, se ele tivesse rosto, ou fosse humano.

~*~

— Meu amor! – Rachel gritou chamando pela filha quando abriu a porta de casa. – Cheguei! – ela viu a lancheira da menina em cima da bancada da cozinha e a porta para o jardim aberta, então ela já estava em casa. – Hannah? – então ela veio, correndo a escada, mesmo que já tivesse sido advertida sobre isso várias vezes e pulando de pelo menos seis degraus mais altos para se jogar em seus braços. Rachel riu fazendo carinho no cabelo dela.

— Bem-vinda mamãe! – a pequena sorriu. Aquele sorriso era o que dava forças a Rachel para continuar cada dia. – O que é isso? – ela perguntou olhando para a sacola que segurava com a mão livre, com um fardo de cervejas.

— É para o papai. – disse pondo a pequena no chão. – Pronta para jantar? – ela assentiu animada. – O que vai querer hoje? – perguntou colocando o fardo na geladeira.

— Ervilha! – Hannah gritou ficando em pé em uma das cadeiras da pequena mesa de jantar. Por algum motivo, ao contrário de todas as crianças do planeta, a sua filha gostava de ervilhas. Em compensação nunca a conseguiu fazer comer uma laranja.

— Só ervilha? Que tal colocar um pouco de arroz e frango junto? – a menina bateu palmas enquanto Rachel separava as panelas. – Desculpe ter demorado hoje meu amor, a loja estava muito cheia.

— Tudo bem, mamãe. Meu anjo me fez companhia. – a mãe sorriu com aquele comentário. Saber que a filha era tão solitária a ponto de criar um amigo imaginário a entristecia, mas por outro lado aquilo não era realmente incomum na idade dela.

— E na escola, como foi? – perguntou ligando o fogo e segurando a garrafa de óleo.

— Normal. A senhorita Sinclair me chamou para a sala dela hoje. – falou sentando-se.

— A orientadora... Por quê? Você arranjou briga na escola?

— Não... Ela queria falar sobre um desenho meu.

— E o que tinha no desenho?

— Nossa casa. – Rachel travou apertando a garrafa de óleo, a frigideira logo se tornou uma piscina e ela se recompôs.

— Ela disse alguma coisa?

— Perguntou de você e do papai.

Rachel sentiu-se congelar.  O que Amanda Sinclair sabia? Hannah não devia ter dito nem desenhado nada grave se não nem teria vindo para casa, mas se Sinclair pensasse que havia motivos para desconfiar, com certeza a polícia iria aparecer por ali. Ben ficaria tão furioso...

Indo rapidamente até a filha, ficou de joelhos para olhar em seus olhos e segurou seus ombros.

— Escuta, meu amor... Eu sei que a senhorita Sinclair é uma moça bonita e simpática, mas não você não pode falar para sobre eu ou o papai ou o que acontece aqui em casa.

— Por que não?

— Porque... Porque... – por que...? – Porque é a nossa vida e eu não quero que pessoas estranhas venham aqui e nos digam o que fazer. – Hannah virou a cabeça levemente de lado, confusa. – Apenas não comente com ela, nem com mais ninguém, tudo bem?

— Sim, mamãe. – Rachel sorriu e deu um beijo na testa da filha antes e voltar para o fogão.

Como sempre acontecia, ela e Hannah já haviam terminado de comer a algum tempo e até já haviam lavado os pratos quando Ben chegou. A mesma cara de exausto de sempre.  Ao vê-lo entrar na cozinha, Rachel rapidamente colocou seus cabelos cor de palha para trás da orelha.

— Boa noite, querido.

— Boa noite. – ele murmurou e passou a mão na cabeça de Hannah, fazendo um breve afago, que secava os pratos e os colocava no armário de baixo. Em seguida, foi até a geladeira. – Não tinha nada mais forte não?

— D-d-desculpa, querido, mas o gerente tinha reservado as últimas garrafas de destilado para uma festa que ele vai dar hoje.

— Hm... – ele murmurou abrindo uma lata de cerveja e dando um gole. – Eu vou ver TV. – disse com a voz cansada e foi até a sala, o som da televisão ligando chegou aos seus ouvidos.

— Hannah, meu amor. – disse para a filha. – Pode deixar que eu termino isso aqui, vai tomar um banho. – a pequena subiu velozmente escada ao ser liberada de seu serviço.

Quando a ouviu fechar a porta do banheiro, Rachel rapidamente guardou os outros pratos, tirou um com comida de dentro do forno, colocou dois talheres em cima dele e pegou o resto das cervejas na geladeira com a mão livre.

Na sala, no sofá há tanto tempo monopolizado por Ben por não terem uma poltrona, lá estava ele, exatamente no meio, seus sapatos jogados de qualquer jeito pelo chão assim como o paletó. Rachel lhe entregou o prato e colocou as cervejas a seus pés antes de pegar as peças de roupa e as pendurar no varal dojardim, só lavaria roupa na noite seguinte.

Logo Hannah desceu e ela lhe instruiu que fizesse seu dever ali na mesa de jantar, queria aproveitar o tempo que ainda tinha com a filha antes de manda-la ir dormir. Enquanto ajudava a pequena a soletrar, olhou de relance para a sala e viu que quase todas as cervejas já haviam sido bebidas, então foi até lá recolher as latas e o prato.

Enquanto lavava aquela louça, ouviu um grito de Ben e o som de uma lata de cerveja sendo arremessada contra a televisão. Consultando seu relógio, viu que ainda não eram nem oito horas, era muito cedo.

— Hora de ir dormir, meu amor. – falou para a filha, que como sempre, sem reclamar, a obedeceu. Deu-lhe um beijo no topo da cabeça e a viu subir as escadas.

— Por que mandou ela pra a cama? – falou Ben, atraindo seu olhar. – É cedo ainda.

— Ela está cansada, brincou muito na escola hoje. – explicou sentando-se ao lado dele, que logo colocou a mão em sua coxa. Rachel olhava para a televisão, sem realmente assistir.

— Pega uma garrafa de whisky pra mim. – disse ele quando a última lata de cerveja acabou.

— Acho que não temos mais whisky, querido.

— Pega uma garrafa de whisky pra mim. – repetiu ele mais autoritário. Indo até o armário, ela constatou que tinham apenas mais uma garrafa de vinho. Respirando fundo, ela pegou a garrafa e a levou até ele. – Eu disse whisky!  Que porra é essa?

— Não temos mais whisky, Ben, nem vodca. – falou baixinho.

— Achei que fosse sua obrigação deixar essa casa abastecida. – ele estava ficando com raiva. – Mas tô vendo que nem pra isso serve. – por favor, não...

— Querido, eu expliquei. O gerente...

— CALA A BOCA! – ele a cortou, ficando de pé e aproximando seus rostos. – Eu não terminei de falar. – o cheiro de álcool entrou pelas narinas de Rachel, Deus como ela odiava aquele cheiro. – Vai me interromper de novo? – ela ficou quieta. – EU TE FIZ UMA PERGUNTA, RACHEL! – e então a dor veio. Dessa vez um tapa ao invés de um soco. Suas pernas tremeram. – É PRA ME RESPONDER QUANDO EU FALO COM VOCÊ! – e então mais um, dessa vez suas pernas não aguentaram e ela caiu no chão, as lágrimas vindo para seus olhos contra a sua vontade. – Agora fica ai, pra você aprender onde é o seu lugar. – voltando a sentar no sofá, ela o ouviu abrir a garrafa de vinho provavelmente com seu canivete.

Então Rachel chorou, como quase toda noite. E como quase toda noite, ela sabia que dali a algum tempo eles iriam dormir, ele estaria mais calmo, e na manhã seguinte ele lhe pediria desculpas pela noite anterior, porque ele se arrependia.  Ela sabia que ele se arrependia. Ben era um bom homem, ele apenas sentia muita raiva quando bebia e infelizmente ela não conseguia fazê-lo parar de beber por mais de três dias. O máximo que conseguia agora era evitar que ele bebesse bebidas mais fortes.

Chorou e fungou. Mas estava tudo bem, ela podia aguentar aquilo, não era nada com que ela já não estivesse acostumada. Seu marido precisava extravasar sua raiva, e como sua esposa, cabia a ela deixar que ele o fizesse. Mesmo que ela não gostasse de como ele liberava sua raiva, estava tudo bem. Enquanto ela aguentasse, enquanto fosse ela ali deitada no chão e não Hannah estava tudo bem.

Estava tudo bem.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Capítulo bem grande, eu sei, mas fiquei feliz com ele :3.
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