Matsu escrita por Zatanna


Capítulo 7
Sétimo — Shoutai




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Uma lufada de ar não era nada para um dragão, no entanto, significava muito quando vinha do maior deles. Ryuujin estava sentado em um trono cravejado de diamantes e de ouro, ainda esperando o filho pródigo retornar à casa.

Depois de algum tempo, uma leve preocupação se instalou no Watatsumi, pois não era do feitio de Nigihayami se atrasar. Na verdade, entre todos os dragões, ele era o único que regulava o tempo, talvez pela sua ânsia de superá-lo. Continuou encarando o teto, repleto de desenhos antigos que simbolizavam os seus tempos de grandeza, dos grandes desastres naturais e dos homens que se curvavam diante de sua soberania.

Não mais; como percebeu pelas reações da humana.

Sem muito o que fazer, o deus dragão finalmente resolveu tomar alguma atitude. Se não podia encontrar o seu filho, brincaria com a presa dele até que retornasse, mesmo que não a tocasse para isso. Escutá-la falar de Nigihayami era um privilégio, pois poucos reconheciam a grandeza de seu pequeno filho.

Caminhou a passos lentos, apreciando o palácio e as nuvens que se dispunham no céu. Ryuujin sabia que aquele encontro poderia ser próspero para seu filho, perdido constantemente nas memórias e lamentos sobre a humana, porém também tinha ciência que ele não estava disposto a sacrificá-la para finalmente tê-la.

Tinha um raciocínio incomum para alguém tão ganancioso com o resto.

Ao chegar no quarto de hóspedes, feito para humanos aperitivos, Ryuujin estranhou a porta entreaberta. Franziu o cenho com curiosidade, questionando-se se era possível para aquela humana escapar, mesmo com a armadilha disposta naquele ambiente.

Nenhum humano era capaz de romper a barreira de permanecer naquele quarto, somente se tivesse alguma magia consigo, contudo, sabia que a menina não era especial ou dotada de poderes. Era só uma humana comum.

Ao abrir a porta, para ter certeza, observou uma cena inusitada que o fez arregalar de leve os olhos por um instante e sorrir de canto. Seu filho, tão pontual e correto, havia se perdido nos braços de uma mortal, que se segurava nele como se fosse uma tábua em um mar revolto.

Infelizmente, para os seus olhos, só era capaz de ver a nudez de Nigihayami, a menina estava coberta pelo mesmo casaco branco que havia chegado até ali. Dessa forma, Ryuujin se questionou como o menino dragão havia descoberto a jovem presa.

— Eu sei que está acordado, filho — disse, rindo de leve para a expressão aborrecida de quem havia sido interrompido. — Gostou do presente? Ia contar para você assim que chegasse à nossa reunião.

Kohaku se levantou devagar, tentando não acordar Chihiro. Não a olhou como gostaria, pois sabia que seus movimentos eram analisados por seu pai. Se a valorasse demais na frente dele, ele a desejaria.

— Olá, meu pai.

O mais velho se sentou na cadeira, sem qualquer inibição enquanto o mais jovem procurava o seu quimono e o amarrava, após fazer a reverência costumeira. Nenhum dos dois parecia constrangido com a situação, porém, em contrapartida, Chihiro queria se encolher, porque tinha acabado de acordar do leve sonho que estava tendo.

 — Quando me contou sobre essa menina, não tinha narrado sobre os seus encantos femininos — comentou, coçando o queixo. — Talvez não quisesse a minha cobiça ou a de seus irmãos.

O jovem não respondeu, o que deu a Watatsumi a impressão de que aquela brincadeira não seria divertida. Ao observar o seu filho, o deus dragão constatou que algo estava muito diferente na forma que se portava e olhava, todas as ações eram, inconscientemente, voltadas à mulher que estava jogada na cama nuvem.

 — Ela também está acordada.

A fala fez com que Chihiro estremecesse e arregalasse os olhos com a surpresa, pois havia tentado enganá-los para fugir daquela situação embaraçosa. O homem de cabelos arroxeados continuava a encará-la, sabia bem porque sentia os pelos da nuca eriçarem.

Para o seu contentamento, Kohaku estendeu a ela as suas roupas e se pôs entre Chihiro e seu pai, fazendo com que a jovem observasse as semelhanças entre os dois. Eram mais do que podia perceber a priori, o formato dos olhos e da boca, a forma de se sentar e as mãos.

Enquanto se vestia, tentando cobrir o máximo que podia para o pai de seu amante não ver, Chihiro pôde notar cada um desses detalhes. Ela observava-o para saber que não estava sendo vigiada ao se trocar, o que havia sido infrutífero, pois já tinha visto praticamente tudo.

Aquilo fez com que a humana sentisse o rosto queimar de vergonha.

— Meu pai — chamou Kohaku. —, eu gostaria de saber se aquela opção ainda é possível.

O deus encarou o filho, franzindo o cenho com a questão, sabia dos limites de Nigihayami muito bem, pois, entre todos os seus herdeiros, era o que mais tinha compaixão quando se tratava do mundo dos homens.

Ainda mais dessa parte dele.

— Você tinha descartado a hipótese, se me lembro bem.

— Mudei de ideia.

A resposta veio tão rápido que quase Ryuujin não absorveu o impacto, dessa forma, preferiu desviar o olhar para a razão da mudança. No final das contas, quem tinha que decidir era a mortal.

— Você mudou de ideia ou ela decidiu por conta própria?

Chihiro levantou os olhos, absorvendo o ambiente. Kohaku, mesmo que decidido a respeitar sua opinião, parecia pouco a vontade a aceitar a ideia que seu pai havia sugerido.

Talvez aquela situação fosse familiar, tanto no sentido de comum quanto no restrito elo entre parentes. Contudo, se ia perder todo o seu mundo, só restava se adaptar a essas situações peculiares.

Decidiu, por fim, manifestar-se, antes mesmo de qualquer fala do homem que amava:

— Se as consequências recairão sobre mim, eu devo decidir meu destino.

Encarando-a, o deus dragão se levantou da cadeira, andando pelo cômodo à direção de sua nora, pelo que parecia. Kohaku fez um leve movimento, como se fosse impedir o avanço, no entanto, retesou-se, pois sabia que precisava da presença e da força de seu pai.

No fundo, os dragões se relacionavam de forma muito peculiar. As relações humanas, pelo que Kohaku pôde vislumbrar no mundo mortal, eram muito distintas, pois havia certa segurança e solidariedade quando se tratava de família. Entretanto, quando se tratava de dragões, existia preço.

Às vezes, em um excelente estado de humor, Ryuujin fazia as coisas porque queria.

— O quanto você a quer, Nigihayami?

A questão pegou Chihiro e Kohaku desprevenidos, fazendo-os olhar um para o outro. A jovem se sentiu levemente incomodada com o tratamento, porém pensou que aquela criatura milenar deveria ter tradições que desconhecia.

Seu amante, por sua vez, respondeu de forma que libertou seus anseios:

— O quanto ela me quiser.

Por um instante, o deus dragão parou e encarou o menino, perdido com sua afirmação estranha. Acreditou, por fim, que Nigihayami havia passado muito tempo com os mortais para dar voz ao que possuía de caro, fazendo-o parecer o objeto e não, o dono – da forma que deveria ser.

— O que eu preciso fazer para estar com seu filho, senhor?

Sentia que não deveria ceder aos caprichos de Ryuujin e da forma que a tratava, porém, se ele mudasse de ideia, perderia a chance de estar com Kohaku, talvez, para sempre. Não podia se dar ao privilégio de deixar o orgulho tomar conta de si.

— Primeiro, minha benção — disse-lhe, passo a passo, como se fosse uma simples receita culinária. — Em sequência, precisa chegar ao mundo mortal e morrer, tente não se machucar muito, porque as cicatrizes permanecem. Por terceiro, precisa fazer uma parada no mundo dos espíritos e entregar minha benção ao responsável. Depois disso, poderá morar em nossas terras, mas a viagem é árdua, Chihiro Ogino. Está disposta a enfrentar a morte e mundos pelo meu filho?

A tranquilidade dele fez com que os pelos, de todo o corpo, de Chihiro se arrepiassem, entretanto, o final parecia um alerta. Era como se houvesse mais uma jornada à frente até ficar com Kohaku.

— Sim.

A resposta foi suave e demorada, pois a jovem analisava cada uma das possibilidades daquele caminho e sabia que, no meio dele, estaria ao lado do homem que amava.

— Com a minha benção, você terá um dia no mundo dos mortais para morrer e lembrar de tudo que sabe agora. Se hesitar ou demorar mais que isso, você não terá mais a lembrança do que deve fazer e muito menos a benção que estou te dando. Você entendeu?

A menina acenou com a cabeça, Ryuujin achou que havia sido um sinal de fraqueza, contudo, ao observar os olhos dela, percebeu que a decisão parecia ter sido já tomada e todos os detalhes já calculados. Sorriu de leve, virando de costas para o casal apaixonado:

— Eu não dou nada de graça, nem mesmo aos meus filhos, pois tudo tem um preço — disse-lhes com segurança enquanto encaminhava-se para fora do cômodo. — O meu débito com você, senhorita Chihiro Ogino, está finalmente saldado. Você salvou meu filho das mãos da feiticeira Yubaba, cujo controle mágico, pelas leis dos nossos mundos, eu era proibido de interromper ou me envolver; e eu a farei ter a oportunidade de ser dele. Assim que estiverem prontos, venham buscar minha benção.

Um segundo depois, a porta foi cerrada. Kohaku observava Chihiro e um misto de preocupação e risada se fundiam em seu semblante, visto que ele sabia os perigos que a mulher que amava encontraria, no entanto, era impossível não querer rir da expressão indignada que ela fazia.

— Seu pai é um machista! Ele não sabe que quando duas pessoas se amam as duas são e se pertencem?

A questão fez com que o dragão a mirasse com um sorriso de canto pregado nos lábios. Ela o olhou, esperando que respondesse a sua pergunta, mas não surgiu nada de imediato, o que fez com que ela o encarasse por um tempo, até estar à sua frente.

Quando ele finalmente falou, a moça ficou envergonhada:

— Idade, poder e conhecimento não estão profundamente conectados, vocês dois são a maior prova disso.

Com o rosto ainda queimando, Chihiro abaixou os olhos, sentindo o toque da mão dele na sua. Apertou-a, forte o bastante para se abrigar, leve o suficiente para parecer uma carícia.

— Você vai me esperar, Kohaku?

— É um convite[1] irrecusável.

▬▬◘▬▬

Matsu

Esse foi o nome dado ao desenho exibido na cidade de Tokyo, em uma exposição de pessoas suicidas. A imagem ainda precisava de reajustes, mas parecia parcialmente completo quando a dona dele, Chihiro Ogino, resolveu se suicidar, deixando familiares, amigos e um futuro.

Contudo, alguns dos admiradores mais constantes do desenho da senhorita Ogino, podem afirmar que aquele dragão desenhado se movimenta. Uma parcela deles comenta que que já viu o animal mitológico piscar; outros, que os bigodes mudavam de posição; havia aqueles que diziam que todo o desenho se movimentou para fora da folha de papel de uma só vez.

Era impossível; alegaram alguns. Até um dia, em que uma senhora, muito baixinha, de cabeça protuberante e com várias joias nas mãos, exceto nos dedões, começou a narrar uma lenda sobre a menina desenhista e o dragão retratado.

Com a voz suave e idosa, ela narrou toda uma viagem ao mundo astral. Os ouvintes que participaram daquela sessão ficaram encantados, inclusive, a guia do principal museu da cidade.

— Mesmo o tempo e os caminhos tortuosos que fazem os amantes esperarem não foram capazes de impedir que esse dragão e essa desenhista ficassem juntos, meus jovens. — A senhora se levantou do acento que encontraram para ela com dificuldade, apoiada pela bengala de madeira que carregava consigo, bateu-a no chão e se apoiou para que pudesse ficar plenamente de pé, de frente a obra de sua querida amiga. — Eles eram como o céu e a terra, o sol e a lua; passaram dias, meses e anos, encarando-se a distância, mas não negaram o amor quando a oportunidade surgiu.

“Quando o céu e a terra se encontram: na chuva”; terminou de dizer.

Assim que todos os visitantes viram a senhora sair da sala, vagarosamente com sua bengala, cada um deles – alguns antes e outros depois – puderam ver a causa da morte da jovem Ogino: afogada pela chuva.

A senhora tinha sumido. O dragão tinha sorrido. 

 

[1] O kanji que faz a palavra “matsu” (つ), que é esperar, forma também a palavra “shoutai” (招), que significa convite. É um jogo de palavras, no português para o japonês, que eu quis incluir para dar mais ênfase ao título e a necessidade dos dois.


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Notas finais do capítulo

Acabou. :)

Obrigada a quem chegou aqui, espero que tenham curtido a história como eu curti - no início - escrevê-la. Eu realmente queria acabar, a Vit é testemunha, coitada, mas é aquilo: eu não consigo fazer algo - conscientemente - mal elaborado, com falhas nítidas, etc. Eu tentei não fazer isso, mas se fiz, perdoa meus vacilos.

O número de capítulos - depois que percebi que ia ser enorme - foi proposital. Mesmo que fizesse trinta capítulos com 4000 palavras, eu ia acabar em sete (se fosse 30 não ia ser sete, concorda? Mas obrigada por aceitar a hipérbole. Por que eu digo isso?

Então, a ideia é fazer um suprassumo de equilíbrio espiritual, mesmo com o suicídio que não é tão mal visto no Japão, inclusive. O número sete é o número da espiritualidade, o maior ponto do equilíbrio dela, inclusive, você vai ver essa representação nos dias da semana e nas cores do arco-íris. Considerado também o número da perfeição e aquele que INTEGRA DOIS MUNDOS, além de ser a totalidade do Universo em contínua transformação. Alto explicativo? Talvez sim, talvez não. Qualquer coisa, respondo sobre nos comentários. Espero que tenham curtido esse detalhe também.

Obrigada. A tradução de shoutai está na nota [1] e o seu sentido está explícito lá. :)

Beijos!



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