Oceanos de Traição e Sangue escrita por txagos


Capítulo 2
Capítulo 1




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O sol esquentava minha pele clara, sem medo de deixar qualquer queimadura, mas eu não me importava, pois ela emanava um alegre calor com o contato da luz branca, como uma dádiva que eu tinha de aproveitar.

A areia branca brilhava ao meu redor e cada pedra refletia aquela luz em que me deliciava, como se fosse mais que importante expandir o alcance daquele calor luminoso.

Abaixei-me para pegar outro ponto reluzente trazido pelas ondas, dessa vez uma concha, vinda do vasto mar a minha frente.

A concha era bege, manchada com pequenos pontos escuros.

Tentei imaginar onde ela estivera antes de repousar naquela praia de pequenas dunas de areia, o quão fundo chegara do oceano antes de ser carregada pelas correntezas e perder sua cara metade.

Imaginei qual pérola de que colar aquela concha teria confeccionado e que mulher estava jantando com um colar feitos das filhas daquela pequena criatura marinha.

Ri de meus devaneios, guardando a pequena concha num dos bolsos de minha saia, e procurando por outras enquanto fazia o caminho de volta para casa. Claire ia amar ter mais daquelas "preciosidades" em sua vasta coleção.

Observei o mar colorido durante a caminhada, o verde e azul cristalinos se misturando de modo tão belo, tendo que decidir-me entre dar um mergulho, e receber uma bronca de meu pai quando chegasse em casa, ou apenas molhar os pés.

Com certeza a segunda opção.

Suspirei feliz com o contato da água fria. O calor do sol e o frio do mar compondo um par perfeito.

Andando nas águas e molhando os pés descalços com o balançar das ondas, enchi o bolso da saia de conchas para minha irmã e cantarolei enquanto observava o ir e vir da maré.

Uma música calma e antiga saía de meus lábios; uma que ouvia minha mãe cantar para mim quando eu era apenas uma menina. O quebrar das ondas do Mar Sangrento faziam uma melodia harmoniosa e o vento completava a música perfeitamente.

Não era muito de cantar, ou ao menos tinha uma voz boa para isso, no entanto, quando cantava sentia-me mais próxima de minha falecida mãe, e o momento em que eu voltava do trabalho era sempre o melhor para isso.

Eu cantava enquanto contemplava a vastidão das águas que ligavam Tydra aos outros reinos, e, sozinha, sentia-me confortável para soltar a voz sem pudores, sempre me lembrando dos sonhos em que uma mulher doce me colocava para dormir com um beijo na testa e muito carinho.

Ainda cantarolava quando os coqueiros começaram a diminuir de quantidade e as casas de pesca e mercadorias navais começaram a surgir. Primeiro uma a cada cem passos, depois muitas delas, coladas a restaurantes especializados em frutos do mar ou a tavernas lotadas de marinheiros, mesmo que ainda não passasse das dez da manhã.

Percebi que não importava se meu mundo parava enquanto sentia as ondas em meus pés e o vento em meus cabelos, o resto dele continuava a girar e a trabalhar normalmente.

Acelerei os passos até o conjunto de moradias que ficava logo atrás dos galpões, esses separavam as tavernas e a vila do grande porto de Ledy, o principal da cidade.

Acenei para alguns mercadores conhecidos de todas as manhãs e passei pelas ruas com um bolso cheio de conchas, outro cheio de moedas, uma sacola repleta de vegetais, outra com meus sapatos e uma manta presa ao braço.

Moro em Ledy desde que me entendo por gente. É uma das várias cidades humanas que existem em Tydra, que diferente de Hegir e reinos mais ao sul do Oceano Austral, não é um país totalmente humano, ou sequer governado por reis humanos, mas uma exceção fascinante dentre todas as terras que cercam o mundo. Um lugar onde todas as criaturas, mágicas ou não, podem coabitar em paz.

Ou ao menos, essa era a ideia original quando o país foi unificado.

Tydra, assim como os vários reinos que compartilham o Mar Sangrento, passou por eras de guerra entre as raças. Eras em que aéras e naturalis se detestavam, humanos e golemites tentavam sair ilesos da ira dos povos mágicos, cuddlys tentavam defender suas casas, as árvores, e eram massacrados.

Com o fim das batalhas, as raças foram se acalmando e tratados se erguendo, o principal deles dizia que não deveriam haver intrigas entre as raças, principalmente as que levassem a morte de qualquer ser.

E pelo pouco que eu sei de história, suponho que foi desse tratado que Tydra se formou, obrigando os habitantes a se aturarem e viverem em comunhão, tanto com os refugiados quanto com os povos de culturas diferentes.

Bom, começou bem errado, então eu creio que não demorou muito para que os povos se separassem por raças, formando assim as cidades humanas, os bosques do centro e as concentrações meridionais; cada povo tomando uma parte do país para si, e as raças se mantendo afastadas geograficamente.

Essa regra se aplicou a todo o território de Tydra, exceto o leste, onde fica a capital. Pelo que dizem, Corselya é o exemplo do que todo o país deveria ser, sendo o único lugar em que a "harmonia entre todos os povos" ainda está viva.

Nunca fora a Corselya para saber se era verdade, e nunca tinha visto mais que pinturas de qualquer ser de outra raça. No máximo uns cuddlys correndo, pulando e dançando pelas margens dos bosques, ou um navio golemite ao longe no mar, quatro vezes maior que qualquer nau humana, feita para ocupar o povo que tinha cerca de três a cinco metros de altura.

Mas ver os descendentes dos elfos ou anjos? Apenas nas pinturas.

Bati a areia dos pés antes de passar pela porta dos fundos da casa. Joguei as sacolas e a manta na mesa da cozinha e deixei os sapatos no quarto que dividia com Claire.

Vivíamos eu, meu pai e minha irmã num casebre perto dos galpões e do mercado.

Meu pai trabalhava vendendo peixes na frente de casa, peixes que ele próprio pescava nos fins das tardes, e eu vendia mantas e peles que costurava para alguns senhores ricos que viviam nas cidades vizinhas. Não tínhamos uma renda gorda, mas por meu pai ser um velho querido da cidade, nunca chegamos a saber o que era a fome.

Procurei por Claire nos poucos cômodos da casa e não a encontrei, com um pouco de estranhamento decidi deixar as conchas em sua caixinha de coleção.

Enchi-a até o talo de conchas e fui guardá-la junto das outras dentro do guarda-roupa antigo que preenchia toda uma parede do cômodo. Notei que o espaço para acomodar tantas caixinhas repletas de conchas estava acabando.

Suspirei.

Decidi limpar-me e trocar de roupa, e o fiz calculando o quanto tínhamos gasto naquelas caixinhas de madeira, todas usadas para guardar as conchas sem valor. No entanto, não pude culpar Claire por aquilo, fazíamos qualquer coisa para preencher o vazio que fora deixado por nossa mãe. Enquanto eu costurava ou saía para nadar na praia, Claire enchia as caixinhas de conchas e as organizava por tamanho e cor. Era muito organizada para sua própria idade.

Dando de ombros fui para a frente da casa ver se meu pai precisava de ajuda. Vi que ele atendia nossa vizinha, Sra. Anaíle, que como sempre, pedia algo para o almoço e petiscos para seus cachorros.

— Agora mesmo, Gertrudes. — fala meu pai, alegre. — Uma truta e seis atuns para os filhotes.

Aproximei-me dele pondo a mão em seu ombro, avisando que havia chegado, e prendo o cabelo para não sujar com o cheiro dos peixes nos baldes d'água ou congelados.

— Bom dia, Coral! — a Sra. Anaíle exclama sorridente, feliz demais para quem acabara de acordar. — Canon estava muito movimentada esta manhã? Vou dar uma passada lá mais tarde.

— Estava bastante movimentada, consegui vender quase todas as peles desta vez. — retribuo o sorriso amigável — Os senhores de Canon são extremamente generosos com as moedas, pude fazer a feira da semana sem me preocupar dessa vez.

— Que bom, minha querida! — Gertrudes pega as compras com meu pai e agradece, o sorriso estampado em seu rosto enrugado e rechonchudo nunca se desfazendo. — Flint, como você é sortudo por ter uma filha tão trabalhadora e presente! Foi nessa idade que meus filhos foram morar com o pai para se tornarem soldados, sinto tanta falta deles...— Deu uma moeda de cobre para meu pai, que guardou no bolso do calção exatamente como eu fizera com as conchas. — Obrigada pelos peixes.

— Você é sempre muito bem-vinda Gertrudes. — disse animado, olhando para mim e dando uma piscadela. — Eu sei que minha Coral é ótima.

A senhora foi embora com um aceno, desaparecendo no fim da esquina, assobiando e carregando a sacola de peixes com seu vestido vinho volumoso dançando ao seu redor.

Sentei-me num banco perto de meu pai e o observei enquanto enchia um caixote de peixes com gelo. Ele se virou para mim e sorriu, mostrou as mãos vazias e levou uma delas até atrás de minha orelha, tirando dela a moeda de cobre que acabara de ganhar como se viesse do nada.

— O senhor está meio velho para brincar de mágico, não acha "Flint"? — imito o modo da Sra. Anaíle de falar seu primeiro nome, fazendo meu pai dar uma risada sarcástica.

— Gertrudes nos dá uma moeda de cobre por dia, ela pode me chamar do jeito que quiser. — diz, ainda com o sorriso sarcástico no rosto e olhando para a rua.

Meu pai, ou Flint, como queiram chamar, tem por volta dos seus quarenta ou cinquenta anos, nunca soube ao certo já que sempre odiara comemorar seu aniversário e nunca contou sua idade. Considerava ele uma das melhores pessoas que podia ter em minha vida, um melhor amigo, até mais que Morgan ou Luke, que conhecia desde pequena.

Para mim, minha família era a coisa mais importante de todas, principalmente depois da morte de mamãe, e, mesmo que meu pai mimasse mais minha irmã que a mim, sabia que o amor entre nós era o mesmo.

— Você vendeu todas as peles em Canon? — pergunta, meio impressionado.

— Quase todas. Sobrou uma manta, mas era a que eu ainda não tinha acabado. — ponho a mão no bolso da saia, um que não tinha enchido de conchas, e peguei várias moedas de cobre e prata. — Um senhor rico pagou três moedas de prata só pela pele de cervo, usei o resto do dinheiro pra comprar vegetais e legumes, vou fazer um ensopado pro almoço.

Meu pai ergue as sobrancelhas surpreso, as rugas de cansaço nos cantos de seus olhos e testa se destacando enquanto olhava para as moedas que eu segurava, pegando-as e as colocando junto da sua de cobre. Não era uma quantia enorme, e sentia que ele se sentia mal por não ganhar tanto quanto eu. Para ele, o mais velho deveria prover a casa, e não depender do trabalho de sua filha para comprar as coisas da casa.

Decido mudar de assunto.

— Onde está Claire? — Estava começando a me preocupar com sua ausência, não era de seu costume acordar cedo, muito menos sair de casa.

— Creio que esteja com Luke, ele havia prometido levá-la na oficina hoje. Chegou uma carruagem nova para ele dar uma olhada.

— E desde quando Claire se interessa por carruagens velhas? — Estava surpresa. Minha irmã era o tipo de garota que, tirando sua mania por organização e a coleção de conchas, passava a tarde com os meninos pregando peças nos vizinhos ou enchendo o saco de seus irmãos mais velhos, vulgo eu. Era bastante trelosa, mas amada por muitos. Era tão querida em Ledy quanto meu pai.

— Algo sobre a realeza vir visitar o país. — fala, mostrando desinteresse.

— Venegar? — pergunto.

Tydra não tinha uma monarquia como nos outros reinos vizinhos, não havia uma família real, ou sangue real, ou nada disso. E como as relações entre Tydra e Hegir, o reino humano separado de nós por um rio, não eram das melhores, duvidava que qualquer um da realeza hegiriana ousaria entrar no país.

Ao contrário de Venegar, o reino dos seres mágicos com poderes que todos já haviam ao menos ouvido falar, os naturalis, descendentes dos antigos elfos "imortais" e dos humanos. Venegar e Tydra tinham uma relação comercial muito forte, e se apoiavam politicamente. Por isso foi o primeiro reino que pude pensar quando meu pai citou a realeza.

Ele assente, cruzando os braços e fechando a cara. Não era o maior fã dos naturalis. Acreditava que se alguma raça deveria ter poderes mágicos, essa raça deveria ser a dos cuddlys, os guardadores das florestas. Não acreditava que existissem seres mais bondosos que eles.

Em meu ponto de vista considerava os naturalis abençoados, capazes de mudar o mundo. Era um sonho poder fazer coisas como eles, como curar alguém apenas com o toque... se eu tivesse esse poder poderia ter feito algo por minha mãe quando ela precisou.

Diziam que os naturalis tinham, além das estranhas orelhas pontudas, a beleza e magia da natureza herdadas dos elfos, e a mortalidade e mentalidade herdada dos humanos. Então não eram perfeitos, mas se consideravam superiores aos outros povos, principalmente aos aéras, filhos dos anjos, e por isso tinham tantas desavenças passadas entre os dois povos.

Dou de ombros e suspiro. Não me interessava muito no que poderia estar a realeza fazendo em Tydra, mas não podia deixar de sentir curiosa para saber como seriam os naturalis pessoalmente. Nas pinturas eram retratados como quase humanos, porém mais altos, belos, com peles claras como a luz ou escuras como as trevas, todos totalmente lindos. E claro, com a marca principal que os distinguia das outras raças, as orelhas pontiagudas, apontadas para o alto.

Afasto os pensamentos de minha cabeça e me levanto quando mais clientes se aproximam da casa, abro um sorriso amigável para todos eles até sentir minhas bochechas adormecerem e ver o sol dar a volta no céu, a manhã e início da tarde se encontrando e sendo deixados para trás.


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Notas finais do capítulo

O que acharam? Posso melhorar em algo?



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