Un Maudit Amour escrita por Laurus Nobilis


Capítulo 3
Cinco de abril de 1731


Notas iniciais do capítulo

"Le Jardin de Sainte Lucie" = O Jardim de Santa Luzia.



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Querida Emmeline,

 

Você não vai acreditar! Vi de novo aquele rapaz cigano. Aquele que ficou me olhando. Qual outro poderia ser? E não apenas vi, como sentei para conversar com ele, devido à sua insistência e talvez seu jeito simpático. O arrependimento ainda arde no fundo da minha alma.

Não fui à praça hoje. Encontrei-o no caminho de casa. Tudo começou quando me enviaram à feira na missão de comprar uma longa lista de alimentos. Voltei carregada de pacotes, mal enxergando o chão sob meus pés. Ainda assim, pude ver nitidamente uma coisa. O rapaz. Ele estava encostado em uma fachada de armazém com alguns outros meninos e eu senti quando ele me viu; senti seu olhar imediato de reconhecimento. Apressei-me para atravessar a rua, sem me importar com a possibilidade de derrubar algo no trajeto, mas ele veio atrás de mim no mesmo instante e apoiou a mão em meu ombro. Desvencilhei-me de seu toque e encarei com fúria aquele rosto jovem, bonito e altivo, que eu ainda não tinha visto de tão perto. Eu poderia ter gritado, gerado um grande escândalo, e, sem dificuldade, conseguido com que ele fosse preso ali mesmo. Eu deveria ter feito isso. Mas não controlo minhas reações automáticas. Limitei-me a dizer:

"O que você quer?"

Ele ostentava aquele mesmo sorriso do dia anterior. Sua expressão era sempre muito serena e isso me enfurecia ainda mais.

"Ajudar-lhe a carregar todas essas compras, talvez?", respondeu o rapaz em sua voz pacífica e agradável. Sim, esse tipo de observação surgia em minha mente contra minha vontade, o tempo todo.

"Estou muito bem, obrigada", retruquei, desviando o rosto. Neste exato momento, um pacote de laranjas escapuliu de minha mão e algumas delas saíram rolando rua afora. Deixei escapar um suspiro pesaroso.

A petulância encarnada soltou uma risadinha enquanto se abaixava para recolher meu pacote, recuperando uma fruta que estava ali perto.

"Tudo bem. Como você se voluntariou...", murmurei. Voltei a olhá-lo com dureza. "Eu te reconheço. De ontem."

"Que coincidência. Eu também", disse ele, e seu sorriso aumentou ainda mais. O idiota não deixava de me contemplar com aqueles olhos quentes de cigano.

"Jura?! Você era aquele bêbado assediador!", disparei.

"Assediador?"

"Sim. Existe um termo para esses homens desocupados que não respeitam o espaço pessoal das moças de família."

Ele reprimiu um riso estourado.

"Ninguém nunca me disse que olhar para alguém era um crime; uma falta de respeito. Mil desculpas."

De tão debochado, o cigano ainda se curvou em reverência. Fiquei tentada a pegar meu pacote de volta, empurrar o rapaz de cara no chão e sair correndo. Em vez disso, por alguma razão, perguntei:

"Qual o seu nome?"

"Ignus."

"O quê?", reagi estupidamente. Nunca ouvira nada semelhante.

"Ignus. Vem do latim 'igni', que significa fogo. Ridículo, eu sei." Ele revirou os olhos.

Na verdade, eu gostei bastante, mas não seria nada prudente dizer isso, então encolhi os ombros.

"Sou Marie-Clémence. Pode me chamar apenas de Clémence."

"Certo, Clémence. Combina muito com você." A forma como ele me olhava me deixava tão desconfortável... "Então decidiu aceitar minha ajuda?"

Ergui as sobrancelhas.

"Que tal me dizer o que realmente quer, Ignus? Não devo ser vista com você por aí."

Finalmente, a expressão dele se alterou para algo menos tranquilo ou amigável. Estava um pouco ofendido.

"É porque sou um cigano esfarrapado?", quis saber.

Corri os olhos rapidamente pela extensão de seu corpo. Ignus era um pouquinho esfarrapado, sim, mas eu de fato não tenho problemas com isso. Decidi chegar mais perto dele para responder:

"Não. É porque você é um homem que nem sequer conheço e a cidade inteira sabe que estou noiva."

Ele pareceu um tanto surpreso, em seguida disse em alto e bom som:

"Então quer dizer que seu noivo virá me espancar amanhã cedo por eu ter ousado trocar algumas palavras com a senhorita?!"

Ergui o olhar e percebi o motivo do teatro. Eu havia esquecido completamente dos amigos dele, que continuavam na entrada do armazém, muito entretidos assistindo a tudo. Lancei a eles o olhar mais furioso que consegui conjurar, algo que lhes desse a impressão de que eu seria capaz de rasgar suas gargantas com os dentes. Ou pelo menos tentei. Tenho plena consciência de que pareço uma boneca de porcelana chinesa, em traços físicos e padrão de roupas, e bonecas não costumam ser muito ameaçadoras.

Entretanto, não pude conter a raiva. Levantei a única parte do meu corpo que estava livre para ser usada como arma, ou seja, minha perna direita, e pressionei o salto da minha botina com toda a força contra o pé de Ignus. Ele reagiu de primeira com uma careta e uma exclamação de dor. Abri um pequeno sorriso.

"Se for para te bater, querido, eu mesma posso dar conta. Meu noivo é um rapaz de classe e não mora nesta cidade."

Ele me encarou com uma expressão aborrecida. Mas não aborrecida demais. Parecia quase que tinha gostado um pouco. Aposto como nunca havia sido agredido de qualquer maneira por uma menina como eu; sequer sonhara com uma façanha dessas.

"Então ouça, Clémence", pronunciou-se, "o que eu realmente quero é ter uma conversa com você. Quero que deixemos de ser totais desconhecidos. Mas você tem toda a liberdade de virar as costas e ir embora com esse seu monte de pacotes, e eu juro pela minha alma que jamais a incomodarei novamente."

Senti minha expressão abrandar um pouco, enquanto uma sensação estranha me invadia lentamente o peito. Eu não esperava aquilo.

"Naturalmente percebi que você me achou atraente", comentei.

"Não é isso", retrucou ele. "Você não é muito diferente de todas as moças que já vi por aqui. É alguma outra coisa."

Passei um tempo encarando-o em silêncio. Em seguida, separei metade dos meus pacotes e depositei em seus braços. Ao menos eu tinha uma vantagem em tudo aquilo.

"Se é apenas isso que você quer, tudo bem", disse-lhe eu, "mas eu escolho aonde iremos, e não poderei ficar por muito tempo porque estou sendo aguardada em casa."

Ignus assentiu com um sorriso pateticamente feliz. Lancei um novo olhar mortífero aos seus amigos, mas eles já não pareciam tão interessados assim no que estávamos fazendo.

Levei-o então a um dos meus lugares favoritos na cidade – porque ficava perto dali e eu conhecia bem. Le Jardin de Sainte Lucie. Você deve saber do que estou falando, Emmeline. Ainda tenho lembranças de nós duas na infância, brincando ali por entre as flores. Até hoje frequento bastante esse local. Quando estou precisando refletir a respeito de algo, me reclino em um dos bancos em torno da estátua de granito de Santa Luzia e contemplo seu rosto delicado como se pedisse por uma orientação. Não sei se há algo de sobrenatural nisso, mas sempre saio de lá me sentindo mais leve. E agora eu estava indo até ali com aquele rapaz cigano, para ter a conversa que por alguma razão ele tanto almejava. Quase me sentia profanando algo.

Enquanto caminhávamos até ali, eu tentava, discretamente, olhar ao redor em busca de conhecidos transitando pelas ruas. Ignus, muito esperto, não demorou a perceber isso e sussurrou ao meu lado:

"Não se preocupe, senhorita. Qualquer um que veja essa cena vai pensar que você me pagou para carregar suas compras, e não que estou fazendo isso de graça."

Talvez por já estar cansada de retorcer a cara, em vez de olhá-lo com desgosto em resposta a isso, dei um sorriso de canto. Logo chegamos. O jardim parecia estar vazio exceto por uma mãe que eu não conhecia com seu bebê em um carrinho. Quando entramos, ela nos olhou com ar inquisitivo e logo desviou os olhos. Eu teria feito o mesmo.

Guiei Ignus até um daqueles mesmos bancos em torno da santa e nos sentamos lado a lado, apoiando os muitos pacotes ao nosso redor. Inclinei a cabeça e passei um tempo olhando o céu, que começava a ficar nublado, anunciando chuva. É claro que fiz isso com o único propósito de não ter que encarar o rapaz ao meu lado, mas após um ou dois minutos, não tive escolha e percebi que ele me olhava de volta com muita concentração.

"O que foi?", perguntei, desconfortável.

"Nada. Você fica mais bonita quando não está tentando parecer furiosa. Eu já receava que aquele fosse seu rosto normal."

Suspirei.

"Esse seu jeito de ser deve lhe arranjar muitas brigas."

"Algumas", concordou ele com uma risada calorosa.

Eu estava muito constrangida. Sorte que não fico vermelha tão facilmente. Após uma breve pausa, tomei coragem e disse:

"Por que você não está na praça hoje?"

"Minha família preferiria que eu estivesse ajudando, mas às vezes eu canso de tudo aquilo, e como gosto da cidade, decidi dar uma volta."

"Sua família é grande?", perguntei por alguma razão.

"Bastante. E a sua?"

"Embora eu atualmente more sozinha com meus pais, tenho três irmãos. Ou melhor, dois", comecei. "Meu único irmão virou padre, minha irmã mais velha foi embora ao se casar e a mais nova faleceu quando eu tinha 10 anos."

Ele me lançou um olhar complacente.

"Sinto muito", disse com sinceridade.

"Tudo bem", repliquei com um sorriso triste. "Eu sinto como se ela nunca tivesse me deixado completamente."

"Entendo."

Houve mais alguns segundos de silêncio, mas em vez de encarar o chão, decidi trocar alguns olhares com Ignus. Enquanto meus olhos são azul-celeste, os dele são de um tom bem quente de castanho. Quem pareceu ficar constrangido dessa vez foi ele.

"Quantos anos você tem?", indaguei, por fim.

"19. Por quê?"

"Eu tenho 17. Meu noivo tem 24."

Ele ergueu as sobrancelhas.

"Seu noivo é bem mais velho que você", disse em seguida, como se fosse uma grande conclusão.

"Nem tanto. Poderia ser mais", retruquei.

Ele passou um momento olhando na direção da santa; o ar contemplativo.

"Se isso compensa, as coisas não são muito diferentes entre os ciganos", esclareceu, "mas, pelo menos, sempre casamos com pessoas com quem convivemos a vida inteira."

Não falhei em notar o que ele insinuou ali. Em vez de brigar, porém, preferi dizer:

"Interessante saber."

Ele sorriu suavemente.

"Você não sabe muito sobre os ciganos, certo?"

"Não", respondi, tentando não transparecer demais meu fascínio. "Ninguém sabe. Acho que, por isso, tanta gente tem medo."

Ignus pareceu achar esse fato muito divertido.

"Bem, não é nada tão complicado ou misterioso. Se você quiser manter uma amizade, prometo responder todas as suas perguntas."

Encarei-o com severidade.

"Qual parte de 'estou noiva' você não entendeu, Ignus?!", demandei.

O cigano cobriu com as mãos o rosto sorridente.

"Pelo amor de Deus!", exclamou.

"Não use o nome d'Ele em vão!"

Então ele explodiu em uma gargalhada e eu meti meu cotovelo entre suas costelas para que parasse. Neste ponto, reparei que a jovem mãe continuava ali com seu bebê e estava nos encarando sem qualquer escrúpulo agora. Embora ainda achasse compreensível, fiquei um pouco envergonhada e toquei o ombro de Ignus no intuito de que ele percebesse o que estava acontecendo.

Passamos a conversar mais civilizadamente. Perguntei de onde ele vem, ao que ele respondeu: "de lugar nenhum." Desde seu nascimento, lembrava apenas de estar sempre viajando de cidade em cidade dentro de maltrapilhas carroças de madeira. Os ciganos eram nômades por natureza. Tinham, entretanto, uma longa história relacionada ao seu povo e profunda tradicionalidade, as quais ele estaria muito disposto a me contar caso nos víssemos mais vezes. Logo percebi como Ignus se aproveitava de minha curiosidade para me manter perto dele. Era como se eu tivesse caído em uma armadilha para senhoritas distraídas.

Com isso em mente, quis saber também qual era a desculpa dele para querer tanto me conhecer, se realmente não tinha nada a ver com minha aparência. Adotando o típico tom de um herói romântico, ele disse ter percebido algo muito diferente em relação a mim; algo que o atraía em algum sentido espiritual, e caso ele tivesse me deixado escapar quando me viu pela segunda vez, tinha certeza de que passaria meses e meses agonizando. Afinal, ele precisaria ir embora em cerca de uma semana.

Devo reconhecer, aquela era uma das lorotas mais interessante que já ouvi. Entretanto, foi por volta desse momento que percebi há quanto tempo estávamos ali, e, nervosa, comecei a recolher meus pacotes. Compreensivo, Ignus me ajudou, carregando aquela sua metade. Em seguida, quase correndo, fomos embora do jardim.

Só deixei que ele me ajudasse até dobrarmos a esquina da minha rua; algo que ele aceitou meio a contra gosto. Antes, ele me falou sobre como frequentava bastante aqueles lados. Entendi de imediato o que ele quis dizer e tratei de torcer o rosto uma última vez.

"Esse foi o tipo de sorte que não se tem mais de uma vez na vida, caro Ignus. Muito obrigada pela ajuda."

Então segui sem virar a cabeça até minha residência, trazendo aquela pilha de compras que quase me fazia tropeçar. É claro que fui repreendida por ter demorado tanto. Mas como você pôde avaliar por meio de ontem, Emmeline, eu me tornei uma experiente mentirosa. Já havia elaborado uma simples desculpa: parei para descansar e perdi a noção do tempo. Isso era quase a verdade, com a parte do rapaz omitida. Naturalmente, nada me poupou de ser chamada de preguiçosa imprestável.

Estou me perguntando se tudo isso valeu a pena. Além de que já sei como ficarei com medo de sair de casa desacompanhada pelos próximos dias. Há um jovem cigano à espreita na cidade que, aparentemente, venderia a alma ao Diabo por uma amizade comigo.


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Notas finais do capítulo

Eu me subestimei achando que não conseguiria escrever capítulos muito grandes, mas não é que...?