Há duas luas no céu esta noite escrita por Yokichan


Capítulo 1
Há duas luas no céu esta noite




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/752885/chapter/1

Ethan ainda está na cama, recostado à cabeceira, e apanha entre os dedos o cigarro já pela metade. Cinzas caem sobre o lençol amarfanhado e seus lábios entreabertos sopram para o alto volutas de fumaça que se contorcem até desaparecerem junto ao teto do quarto. O corpo magro e esguio, nu da cintura para cima, deixa ver os ossos da clavícula sob a pele e os ombros largos. Seus olhos de uma escuridão incomum observam os movimentos da garota que se veste à sua frente, de pé no centro daquele quarto miserável cujas paredes já perderam a cor e em que o ar rescende ao bolor do tempo.

E ao sexo que acabaram de fazer.

Ela prende o fecho do sutiã e ajeita as alças sobre os ombros. Ethan se pergunta de que cor ele é – branco, azul ou lilás? Não apenas o tempo, mas as cores também são indistintas ali. Estão suspensos em uma dimensão à parte, em uma brecha que não deveria existir, mas que, de algum modo, expande-se e contrai-se para que eles possam estar juntos. Juntos. Ethan pensa que aquele se tornou um conceito que, como a água, escorre por entre os dedos. Ele dá uma última tragada no cigarro e apaga-o sobre o tampo de madeira do bidê ao lado da cama. E olha através da janela logo acima.

No escuro de um céu sem estrelas, duas luas pálidas flutuam como irmãs gêmeas.

— Há duas luas no céu esta noite.

A voz de Annie chama-o de volta.

Ela está sentada diante da velha penteadeira, olhando-se no espelho cujas bordas mostram manchas de ferrugem. Seus longos cabelos de um loiro escuro caem em ondas sobre os ombros nus e ela os escova lentamente. Ainda não completamente vestida – sobre a roupa íntima, usa apenas a saia de botões –, ela encontra os olhos dele através do espelho e esboça uma tímida linha de sorriso. Ethan nunca soube distinguir se aquele traço do rosto dela significava felicidade, complacência ou tristeza. É algo que o desconcerta profundamente.

Então ele desvia os olhos.

Fecha o zíper do jeans surrado e ergue-se da cama. As duas luas siamesas encaram-no sob aquela claridade opalescente e ele sente na palma da mão a madeira fria e áspera da moldura da janela. E pergunta-se como pode aquilo tudo ser tão real. “Há duas luas no céu esta noite”, é o elo que os une ali, naquele espaço incorpóreo e, ao mesmo tempo, tão concreto. É a porta que os conduz ao mesmo sonho, noite após noite. São as palavras que eles juraram jamais esquecer. Mas, por algum motivo, elas se apagam da memória de Ethan toda manhã.

Ele é incapaz de lembrar-se dos sonhos.

— Não faz sentido. – ele acaba dizendo.

— O quê?

— Nós dois, aqui.

— Por que está dizendo isso?

— Você sabe que eu vou esquecer.

Annie sabe.

Ela é a única que lembra-se de tudo durante o dia. Obcecada por aquelas palavras – “há duas luas no céu esta noite” – como se fossem um portal para outro mundo, o significado de toda a sua existência, rabisca-as no bloco de anotações sobre a mesa de trabalho, nos guardanapos dos restaurantes enquanto espera que o garçom lhe traga o almoço, repete-as em silêncio ao caminhar pelas ruas da cidade barulhenta, onde ninguém conhece ninguém, dentro do metrô que a leva para casa ao fim do dia, debaixo do chuveiro que parece lavar toda a imundície daquela vida rasteira. Como se traduzissem sua essência mais profunda, aquelas palavras estão gravadas dentro de Annie, no âmago de seu ser. E, enfim, quando a noite chega e ela fecha os olhos, tudo o que mais deseja é estar com ele outra vez.

Ethan.

Ela sabe que ele é real, mesmo em sonhos.

— Não importa. – ela diz. – Nós estamos aqui agora.

Annie levanta-se da penteadeira e vai até ele. O assoalho envelhecido geme debaixo de seus pés e aquele som é tudo o que há no mundo de sonho e angústia em que se encontram. Ela abraça-se às costas de Ethan e sente o cheiro familiar de suor desprendendo-se de sua pele, sente o pulsar abafado de seu coração e sente que o ama. Então ele vira-se para ela, para a garota de olhos úmidos que parece existir apenas na camada mais funda de sua consciência, e beija-a durante muito tempo.

Ethan deseja que aquele sonho não acabe.

Mas sabe que o único sonho eterno é o da morte.

— Há duas luas no céu esta noite. – ele murmura na inútil tentativa de não esquecer.

Ela ergue-se nas pontas dos pés, porque Ethan é um palmo mais alto, e toca a ponta de seu nariz no dele. Acaricia seu rosto e seus cabelos cortados rente, e então ele percebe que os lábios de Annie tremem rapidamente. Percebe que ela quer manter-se firme, o porto-seguro para o qual ele pode sempre voltar, embora seu interior esteja a ponto de desmoronar. Nesse momento, Ethan é assaltado por uma vontade quase desesperadora de agarrá-la com força e de impedir que ela se vá mais uma vez. Entretanto, tem consciência de que aquele é o rumo natural e inflexível das coisas e apenas deixa que aconteça.

— Eu amo você. – ela sussurra contra o peito de Ethan.

— Eu quero encontrar você.

— Eu estou aqui.

— Não aqui. Lá. – no “mundo real”, do outro lado do sonho.

— Você não me reconheceria.

— Você sabe o que deve fazer.

— Há duas luas no céu esta noite... – ela diz mais para si mesma do que para ele.

O mundo efêmero do sonho começa a se mover daquela maneira líquida, quase nauseante, que ambos conhecem tão bem. É o momento de dizer adeus, embora aquele adeus sempre seja triste demais para ser dito. Num sobressalto, Ethan segura-a e beija-a com pressa, antes que tudo se desfaça mais uma vez. Annie. Ela tenta dizer-lhe alguma coisa, mas então o tempo desmembra-se e o pensamento desarticula-se de forma que tudo desapareça. E logo não há mais nada além da angústia de ser cuspido para fora de si mesmo.

***

Embora durma quase oito horas por noite, Ethan sempre acorda exausto. Por conta disso, precisa programar o despertador em meia hora mais cedo a fim de que o torpor do corpo e da mente o abandonem a tempo de sair para o trabalho. Ao longo da manhã, necessita regularmente de três copos de café – o primeiro na estação de metrô e os outros dois no escritório. Caso contrário, é incapaz de manter um bom desempenho profissional. Na maioria das vezes, sentado diante da tela do computador, sente como se tivesse lutado batalhas épicas durante a madrugada, apesar de não possuir nenhuma lembrança entre o adormecer e o despertar.

Depois de ter consultado médicos, experimentado uma rotina adequada de exercícios e tornado a alimentação o mais saudável possível, acabou se convencendo de que o cansaço inexplicável só podia ser uma mania estúpida de seu organismo ou uma reação involuntária à vida pouco estimulante que leva. O trabalho na empresa de segurança digital é tedioso, apesar de bem pago, não houvera qualquer espécie de evento surpreendente em sua vida nos últimos tempos e ele não é do tipo sociável. Considerando tudo isso, Ethan não acha que deva definir-se como um cara infeliz, embora também não saiba dizer exatamente em que consiste a felicidade.

Ethan pensa que, talvez, seja apenas um tipo comum.

Entretanto, há algo que, em determinado momento do dia, o incomoda e o chuta para fora da zona de conforto. Ele não é capaz de especificar o que seja esse algo, mas sente como se qualquer coisa estivesse fora do lugar. É como se ele estivesse deixando passar algo importante, como se não estivesse vendo o elefante em cores berrantes bem diante de seus olhos. Em suma, uma sensação que o atormenta e da qual ele não consegue livrar-se. Quando isso acontece, Ethan interrompe o que quer que esteja fazendo, fecha os olhos e aperta as têmporas com as pontas dos dedos. Ele se esforça, esquadrinha a consciência a fim de encontrar o erro, mas tudo o que consegue é torturar-se ainda mais.

Então irrita-se e acaba deixando para lá.

Porém, no dia seguinte, tudo se repete.

À noite, antes de ir para a cama, Ethan sai para a sacada do apartamento e observa demoradamente a lua. Há qualquer coisa que o atrai na luz noturna daquele globo pairando sobre sua cabeça, qualquer coisa de estranho, mas também de encantador. Não é como se ele acreditasse em presságios ou interpretações místicas, mas o fato é que a visão da lua parece despertar coisas esquecidas dentro dele, coisas que ele não sabe que possui. Se Ethan pudesse comparar tal sensação com alguma outra, seria a de sentir as palavras na ponta da língua e não ser capaz de dizê-las.

***

Annie está sentada em uma das desconfortáveis cadeiras de espera do Terminal 5. Enquanto aguarda que alguém anuncie o embarque de seu voo, ela observa a pista de pouso e decolagem através das grandes vidraças do aeroporto e aperta inconscientemente a bolsa contra o peito. E pensa, em uma espécie de histeria muda, que está indo encontrar um homem que só viu em sonhos. Quando se dá conta disso, seu coração bate em um ritmo violento e ela sente vontade de gritar, de correr de volta para casa, de convencer-se de que realmente não consegue dar aquele passo rumo ao desconhecido.

Ethan.

Sempre que pensa no nome dele, ela sente os olhos encherem-se de água.

Cada pessoa costuma ter seu próprio sonho, mas, por alguma falha no funcionamento do universo ou do que quer que seja, os dois acabaram encontrando-se no mesmo sonho. E como se isso não fosse suficientemente absurdo, os sonhos em comum repetiram-se em quase todas as noites desde então. Bastava fechar os olhos e resvalar para o escuro adormecido da mente, para aquele lugar sobre o qual geralmente não se tem controle, para que Annie o encontrasse. Às vezes, viam-se em intermináveis campos verdes, sob um olmo centenário, banhados pela luz das duas luas. Às vezes, girando lentamente em uma roda gigante cujas luzes piscavam contra o escuro da noite, comandada por ninguém e perdida no silêncio de um parque de diversões fantasma. Às vezes, no decrépito quarto de uma estalagem de beira de estrada, com móveis que pareciam pertencer a outro século e paredes de madeira em decomposição.

No começo, Annie pensou que Ethan era apenas mais uma daquelas figuras insólitas que costumam aparecer nos sonhos. Um rebento da imaginação insone. Mas então se deu conta de que ele era real, de que existia, em carne e osso, em algum lugar do mundo concreto, e a consciência disso a espantou. Mas também despertou dentro dela alguma coisa antes nunca sentida, jamais experimentada. Ela decidiu que poderia chamar essa coisa de amor. Nos sonhos, com Ethan, Annie sentia-se inteira – algo que não acontecia na existência comum do dia a dia. Eles faziam amor, como um homem e uma mulher de verdade, e desejavam que o tempo demorasse a passar.

Havia sempre duas luas no céu.

Annie sente que os braços começam a doer e percebe que esteve apertando a bolsa contra si. O corpo está rígido, tenso, como o de um animal acuado. Ela solta o ar em um suspiro angustiado e tenta relaxar, mas tudo o que consegue é tremer enquanto muda de posição na cadeira. O painel digital sobre o portão de embarque do Terminal 5 ainda exibe aquelas palavras que Annie já decorou – “Viaje com segurança com a AmericanExpress”. Sim, ela pensa, tentando colocar os pensamentos em ordem. Ela está deixando Oregon, no extremo oeste dos Estados Unidos, para voar até Londres, do outro lado do oceano. Ela está indo encontrar Ethan, mesmo sabendo que ele pode não reconhecê-la.

Ela o ama.

Algumas noites atrás, em um dos sonhos em que eles se encontram na roda gigante, Ethan a convenceu de que ela precisa encontrá-lo e fazê-lo lembrar. Ele passou-lhe seu endereço em Londres e fê-la prometer que iria até lá. Olhando em seus olhos, Ethan disse que a amava e ela respondeu com um beijo úmido das próprias lágrimas. Annie baixa os olhos para as mãos sobre os joelhos e lembra-se das palavras dele – “eu posso ser um idiota, mas, por favor, não desista”. Então ela sorri e sabe que está no caminho certo.

Ethan.

Como seria vê-lo fora de um sonho?

Uma voz que não parece humana preenche a sala de espera, anunciando que, em dez minutos, o portão de embarque será aberto. A mesma voz pede, de forma muito polida, para que os passageiros do voo 571 encaminhem-se para a fila de embarque com os documentos necessários. Annie tem o coração na garganta quando levanta-se e dirige-se para o local indicado. Em suas mãos, os documentos ficam úmidos e amassados. Em sua memória, a voz de Ethan diz que ficará tudo bem.

***

Em um desses sábados chuvosos em que as pessoas entediam-se em casa, Ethan veste o sobretudo e atravessa a rua molhada até a cafeteria decadente cujo letreiro em neon já não brilha com a mesma força. Apesar da escuridão proporcionada por pesadas nuvens de chuva, ainda são apenas cinco da tarde. A porta da cafeteria emite um rangido aconchegante quando Ethan passa por ela e bate os sapatos molhados no tapete de entrada. Nesse horário, não há mais do que três ou quatro clientes espalhados pelas mesas, e Ethan pode escolher uma junto das vidraças que dão para a rua.

Ele pede à garota que vem atendê-lo um café forte e, quando ela se afasta, ele tira do bolso o maço de cigarros e acende um. Uma nuvem cinzenta de fumaça logo se forma sobre sua cabeça e ele abre uma fresta do vidro para que ela seja dragada para fora. Ethan sente o prazer da nicotina no corpo e respira fundo. Logo, seu espírito atormentado por aquela sensação de angústia, por aquela mesma sensação de todos os dias, começa a se acalmar e a mão sobre o tampo da mesa deixa de tremer. Ele se pergunta se, afinal, aquele não é o início de um processo de demência.

A garota lhe traz o café e ele fica a observar a xícara fumegante diante de si.

Lá fora, a chuva cai torrencialmente. Exceto pelos carros que passam eventualmente pela rua, parece não haver ninguém que deseje enfrentar toda aquela água e mau tempo. Em dias assim, a cidade adquire um aspecto lúgubre e tristonho. Enquanto o cigarro queima entre os dedos, um fio de fumaça subindo e enroscando-se no ar feito uma serpente que logo desaparece, Ethan bebe um gole do café e concorda mentalmente que está realmente forte. A porta de entrada geme novamente e ele ergue os olhos a fim de ver alguém que, como ele, fora fustigado pela chuva.

Então percebe tratar-se de uma mulher.

E vê que, estranhamente, ela olha diretamente na sua direção.

Ethan pensa que ela parece-lhe familiar, mas não consegue lembrar-se de onde a conhece. Parada ali, a mão ainda segurando a maçaneta da porta e as pontas dos cabelos molhadas, seu rosto ilumina-se em um esboço de sorriso – apenas um movimento dos lábios a meio caminho entre o afeto mais genuíno e a dor mais velada. Ele não sabe como interpretar aquilo, e subitamente é tomado pela sensação de que não é a primeira vez que experimenta esse sentimento. E como se não bastasse o sorriso que o atordoa e o olhar que o atravessa, a mulher decide vir na sua direção.

Ele se dá conta de que a sensação de estar perdendo alguma coisa volta a assolá-lo com a força de uma onda que cresce e que engole tudo o que há pela frente.

Sem dizer uma palavra, a mulher senta-se à sua frente, do outro lado da mesa, e cerra os lábios enquanto o sorriso se apaga de seu rosto. Ela parece obstinada, mas confusa, e Ethan percebe que ela tenta domar as próprias emoções. Num gesto mecânico, ele apaga o cigarro no cinzeiro e espera que ela diga qualquer coisa – inexplicavelmente, ele se flagra desejando que aquela mulher dê fim à sua angústia de todos os dias, como se apenas ela tivesse poder para isso.

Talvez, ele esteja mesmo enlouquecendo.

Os olhos dela possuem um tom profundo de verde e o encaram sem medo. É como se já se conhecessem há tempos, embora este seja o primeiro encontro. Ethan é perpassado por tal pensamento e conclui que a ideia não faz sentido. Então ela finalmente diz o que precisa dizer.

— Há duas luas no céu esta noite.

Annie.

Ele não sabe de onde veio aquele nome, mas o fato é que ele agora está ali, ressoando com força dentro da memória, dentro de todo o seu ser, como se tivesse despertado depois de um longo e profundo sono. Isso o assusta e Ethan recua o corpo na cadeira. De súbito, percebe que tem os olhos úmidos e um nó apertando-lhe a garganta. Ethan não compreende como um nome que nunca ouviu antes possa comovê-lo dessa maneira.

O que diabos ele não está vendo?

— Ethan... – a voz dela é vacilante ao pronunciar seu nome. – Você se lembra?

— De quê?

— De nós dois. Das duas luas.

Ele engole o nó na garganta e, com as mãos trêmulas, demora a acender um novo cigarro. Quando finalmente o consegue, dá uma longa tragada e suspira profundamente. Sua memória está estranha – não apenas sua memória, mas algo dentro do peito. Olha para a rua através da vidraça molhada e, de repente, é preenchido pela certeza de que uma parte de sua consciência precisa ser escavada, desenterrada.

“Há duas luas no céu esta noite”.

Ethan lembra-se de coisas que não fazem sentido, de imagens difusas como se encobertas por um denso nevoeiro. Lembra-se de uma mulher, e, quando tenta resgatar a memória do rosto dela, tudo o que consegue alcançar é aquele nome, Annie, e uma vontade quase palpável de estar junto dela. Olhando para a mulher à sua frente e tentando encaixar os fragmentos das lembranças que parecem ter pertencido a outra pessoa, Ethan se dá conta de que pensar racionalmente é inútil porque, obviamente, a lógica de tudo aquilo é bem outra.

Ele a vê esperando uma resposta sua como se sua vida dependesse daquilo e sente vontade de beijá-la – o que parece despropositado, considerando a tensa realidade da situação. O fato é que ele não sabe o que dizer. Sente que sua própria história depende da história daquela mulher e, como se adivinhasse sua incapacidade de reação, ela começa a falar. De início, Ethan não compreende uma palavra do que ela está dizendo, como se estivessem se comunicando através de um canal com problemas de interferência. Ela fala sobre sonhos, sobre imagens que, de forma incompleta e abstrata, começam a surgir diante dele – um campo à noite, as luzes da roda gigante, o quarto envelhecido, a cama desfeita e suas próprias mãos abrindo os botões da blusa de uma mulher, da blusa de Annie, da mulher que agora está falando sem parar.

Ethan sente como se alguém tivesse aberto sua cabeça e, de repente, jogado um monte de coisas para dentro dela. A sensação o torna pesado, lento e estranho. Subitamente, ele sente-se cansado. Percebe que o cigarro queimou completamente entre os dedos e que muito tempo deve ter se passado desde então. Pensa em acender outro, mas sabe que até mesmo isso o deixaria exausto. Ethan olha dentro dos olhos daquela mulher e vê-se ali, refletido no verde escuro que se parece muito com o tom dos campos de colinas adormecidas. Então sente que tudo está bem, que não há mais nada com o que se preocupar.

Surpreendentemente, a sensação de angústia não existe mais.

Annie continua falando e agora ele vê que ela está a ponto de chorar, de desabar ali. De alguma forma, ele sabe que a ama há muito tempo. Naquele momento, ele se dá conta de que está apaixonado por aquela mulher, embora muitas coisas ainda não façam sentido. Finalmente, ela para de falar e, diante do silêncio dele, morde um canto do lábio inferior para impedi-lo de tremer. E aquele pequeno gesto parece-lhe tão familiar, tão encantador, que Ethan acaba fazendo a única coisa que sabe que pode fazer agora.

Ele inclina-se até ela e a beija.

Annie.

Lá fora, a chuva enfraquece até resumir-se a uma silenciosa garoa. As calhas das lojas e dos prédios escoam a água dos telhados e sobre as calçadas formam-se poças que refletem o céu cinzento de Londres. Debaixo de guarda-chuvas, as pessoas voltam às ruas e, lentamente, o burburinho de todos os dias ganha força outra vez. Nessa noite, haverá apenas uma lua no céu, enorme e branca como o leite – se as nuvens permitirem que ela se mostre. Ethan e Annie nunca mais verão as luas gêmeas, e, ao que parece, esse é o rumo natural que as coisas devem tomar. Às vezes, as linhas do universo se contorcem de maneira inesperada e coisas estranhas acontecem. Não há explicação matemática ou científica que as resolva, e talvez isso seja o que chamam de “mistério da vida”. Afinal, como disse Hamlet, há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura.
Se quiser deixar um comentário, ficarei contente. ♥