Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 4
O Leitor


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é sobre uma pessoa trans, peço que se você tiver qualquer dúvida pergunte e eu ficarei feliz em responder. E a musica de hoje é brasileira:
Vagabundo - Aretuza Lovi



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A entrega de provas é uma hora tensa para qualquer pessoa, mas Lune se sentia pessoalmente mais afetado por esse fatídico momento. Isso porque, apesar de se apresentar e ser chamado de Lune por seus amigos (e qualquer outra pessoa eu tenha o mínimo de bom senso), este não é o nome que esta em sua certidão de nascimento e, portanto, não era o que estava nos seus trabalhos escolares. Felizmente naquele dia, porém, a professora apenas pôs as provas na sua mesa e pediu para que os alunos fossem até lá pegar.

Sem hesitar, Lune foi o primeiro a se levantar, pegou a prova escondendo o nome e a pôs na mochila com rapidez. Viu sua nota por um breve instante apenas, tinha tirado 8,4. Maravilha! Lune Verdan se identificava como uma pessoa agênera, ou seja, ele não se via como uma menina (como a maioria das pessoas o via devido ao corpo feminino) e nem muito menos como menino. Lune era apenas uma pessoa, e estava tudo bem com isso, pelo menos para ele. Após a aula ele passou na lanchonete e, com uma coxinha em mãos, se sentou no hall da faculdade. Estudava letras na UERJ de São Gonçalo.

Não que ele precisasse estudar claro, o pai é um famoso deputado carioca, envolvido na política já há dez anos. Mesmo se Lune não trabalhasse nunca, poderia viver uma vida tranqüila, freqüentava a faculdade mais como um passatempo. Nem para ingressar foi difícil, visto que o pai pagou todos os cursinhos que ele pediu, e pagaria outros se ele reprovasse nos vestibulares. Sentado no hall, com alunos passando de um lado para outro, Lune pegou seu caderninho de anotações. Era um caderno muito pessoal, tinha poemas e desabafos em prosa e anotações sobre leitura de pessoas.

Desde que seu pai ingressou na política, Lune e sua mãe foram introduzidos numa esfera social fina e elegante. O jovem detestava esse mundo, mas durante os anos leu inúmeros livros e artigos sobre linguagem corporal, e via esses eventos como a oportunidade perfeita. Sabia perfeitamente como ler as pessoas, como saber o que elas não falavam verbalmente, mas deixavam escapar pelos gestos e posturas do corpo. Com o caderninho em mãos, ele se pôs a observar as pessoas andando. Uns estavam apressados, outros precisavam de uma noite bem dormida, outros estavam morrendo de tesão (sim, o corpo diz isso também).

Então Lune se concentrou num casal que aparentemente estava tendo uma discussão. A garota suplicava para que a outra a perdoasse, mas ela mantinha a cara fechada. Entretanto, seu pé virado para a amada revelava um desejo abafado. As pessoas são assim, elas tem conflitos internos que não contam pra ninguém, mas, se você souber ler seus corpos, saberá identificá-los. Já de barriga cheia, Lune se levantou e foi para o apartamento de classe média que divida com seu melhor amigo. Dez minutos a pé. Cumprimentou o porteiro e se viu sozinho no elevador.

Encarou o espelho com gosto, apreciando a própria imagem, Demorara tanto tempo para aceitar o próprio corpo que agora fazia questão de aproveitar todo o amor próprio. A pelo tinha aquele tom de pele meio indefinido característico do brasileiro, nem branco nem preto. O cabelo preto ele deixava cortado a máquina três, e usava sempre roupas masculinas, se você considera que roupas têm gênero claro, algo que Lune já aboliu há muito tempo. As unhas pintadas de marrom completavam sua expressão de si mesmo.

No corredor já era possível ouvir a música alta. Musica de drag, o tipo favorito de seu colega de quarto e melhor amigo. Quando Lune abriu a porta, José Bonifácio nem sequer interrompeu a performance que fazia na sala de estar. Pelo contrário, continuo dublando a musica e inclusive incluiu Lune no close. Os dois dançaram rebolando a bunda e batendo o cabelo (que ambos não tinham) até a musica acabar e eles se jogarem no sofá.

“Como foi o dia?” José perguntou indo em direção a cozinha.

“Ah foi ótimo, tirei oito em Paulo Freire” ele abaixou o volume da TV.

“Quem você subornou dessa vez, seu riquinho?” O garoto veio com dois copos d’água.

“Eu estudei! Devia tentar isso às vezes, seu emergente!” eles riram juntos.

José fazia matemática na UERJ, e, ao contrário de Lune, se esforçou para ingressar na faculdade. Ele vem de família pobre, sempre se esforçou pra conquistar qualquer coisa na vida. Tinha o mesmo biotipo magro de Lune, a pele caramelo e o cabelo crespo e curto, essa semana, tingido de branco.

“Eu vou tomar banho, pode fazer a janta?” Lune se levantou.

“A janta já está até pronta, meu amor! Você acha que eu brinco em serviço?”

“Brincar eu não sei, mas com certeza performa.” Ele disse, aumentando novamente o volume da TV.

Depois que saiu do banho, Lune se sentou a mesa com José. Eles comeram e falaram sobre coisas fúteis por uns minutos, até a campainha tocar. “Está esperando alguém?” José perguntou. Lune respondeu que não, desconfiado, mas foi atender a porta. Para tornar indigesta uma refeição tão saborosa, sua mãe surgiu atrás da porta. O jovem abriu a porta com um suspiro “Oi, mãe.”

“Oi, Laura, querida! Oi José.” ela sorriu meio sem graça. Sempre ficava sem jeito quando visitava o apartamento de Lune.

A Sra. Verdan e seu marido moravam numa bela casa de dois andares no Leblon, mas Lune abdicou dela quando se mudou pra São Gonçalo. De vez em quando, porém, sua outra vida vinha lhe visitar.

“Ãhn, você quer um copo de água ou alguma outra coisa?” Lune continuou bloqueando a porta.

“Ah, não precisa não meu amor.” Sua mãe era uma verdadeira lady: simpatia e elegância sempre em primeiro lugar. “Eu vim te fazer um convite. Seu pai e eu fomos convidados pra um baile debutante de uma gente rica do senado. Gostaríamos que você fosse, Laura.”

Ouvir seu nome de registro fazia Lune sentir calafrios, mas ele resolveu jogar o jogo de sua mãe, pelo bem da relação mãe e filhe.

“Sim, claro eu posso ir. Me passe o dia e o endereço por whatsapp ta?”

A Sra. Verdan ficou uns instantes na porta até reparar que Lune estava educadamente a expulsando. “Ah, sim minha filha. Muito obrigado. Tchau José!” O menino deu um tchauzinho antes eu a porta fechasse.

“Tudo bem?” ele perguntou a Lune.

“Sim sim. Isso só foi bem esquisito e desconfortável, como sempre.”

“Pode deixar que eu lavo a louça.” Ele acariciou Lune no ombro.

O jovem agradeceu e foi para o seu quarto, onde acendeu um incenso e se sentou no chão. Lune tentava diariamente ficar pelo menos alguns minutos meditando, isso o fazia muito bem. Ele respirava devagar, sentindo o ar entrando e saindo do seu corpo. Muita gente acha que meditação é sobre não pensar em nada, mas não. Meditar era justamente sobre pensar, mas não por rédeas nos próprios pensamentos.

De olhos fechados, Lune sentiu energia passando pelo seu corpo e se concentrando no peito. Isso costumava acontecer todas às vezes, mas nessa noite foi mais intenso. Ao invés de apenas uma sensação leve de calor, ele estava sentindo uma vibração, e que não vinha de seu coração, mas de algum outro lugar, não exatamente no seu corpo. De repente ele sentiu vendo passando pelo seu corpo e, ao abrir os olhos, estava no topo de um prédio sendo encarada por um homem de meia idade.

Seu corpo e seu rosto falavam de forma desarmônica, um misto de felicidade e tristeza; esperança e pena. Stefan disse “Se ajudem” e Lune estava novamente sentado em seu quarto com as luzes apagadas e as pernas cruzadas. Ele apenas continuou meditando sobre o que havia acabado de acontecer. Quem era Stefan, e como Lune sabia seu nome?


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