Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 3
A Fantasma


Notas iniciais do capítulo

Eu tentei buscar a maior diversidade musical possível , tendo músicas brasileiras, americanas, russas, alemãs, hip hop, pop, funk, rap e rock. A música de hoje é alemã:
ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUVWXYZ - Käptn Peng & Die Tentakel Von Delphi



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A dona Sales, no auge dos seus 82 anos, teve um total de cinco filhos. O primeiro a nascer foi Rafael, menino negro hoje com 23 anos, é quem sustenta a mãe e os outros irmãos trabalhando como garçom. Ele ganha pouco, mas também recebe um pouco de ajuda do segundo filho, Miguel, pele num tom claro de preto e 22 anos; este se envolveu com o tráfico de drogas e armas de Amadora aos dezoito, é um dinheiro sujo, mas útil mesmo assim. A terceira criança a nascer foi Maria Roberta (chame ela só de Roberta pelo amor de Deus, ela acha nomes compostos muito desnecessários), a única menina da família, de pele cor de avelã e dezenove anos; terminou a escola e hoje não trabalha nem estuda, mas tem uma penca de hobbies. Os últimos dois meninos são os gêmeos ruivos João Sérgio e João Baco com quinze anos; passam o dia em casa, ora estudando, ora assistindo TV.

 Diz-se por aí que cada gravidez da dona Sales foi com um cara diferente, o que de fato explicaria a diferença da cor de pele das crianças. Roberta não se importa com os rumores. Alias, ela nem precisa se importar, pois mesmo se ela se importasse, ninguém iria reparar. A jovem era como um fantasma em sua própria casa, sempre ignorada pelos irmãos. A única que lhe dava atenção era a mãe, mas ela agora passava seus dias no hospital.

Roberta respirava música. Ouvia música o tempo inteiro, ora com os fones de ouvido ora sem eles. Escutava música enquanto dançava, enquanto desenhava, quando ia ao mercado, durante o banho e, claro, quando praticava pequenos furtos. Ao meio dia, enquanto Roberta almoçava o que ela mesma havia cozinhado, os gêmeos chegaram da escola, sempre barulhentos. Sérgio e Baco passaram por ela sem nem reparar, se serviram de comida e foram comer no quarto. Ser ignorada já era cotidiano, Roberta nem se importou, ou fingiu não se importar. Assim que terminou pôs o prato na pia e gritou para que os irmãos mais novos fizessem o mesmo. Tomou um banho rápido, pôs roupas que ‘terminaria de sujar’ e saiu com os fones de ouvido.

A família morava numa aglutinação de três casas, todas pequenas. A primeira era cor de rosa, mas a tinta barata já estava desbotando; a segunda, ao lado, era verde claro, mas a tinta barata já estava desbotando; e a terceira, acima das duas, era azul bebê, mas a tinta barata já estava desbotando. Na teoria a casa da esquerda e a de cima pertencem aos filhos mais velhos, Miguel e Rafael, mas na realidade todos os irmãos circulam pelas três casas livremente. Roberta ia ouvindo música em direção ao centro da cidade de Amadora, em Portugal. Ia cantarolando musicas e quase que dançando pelas calçadas. Fez ballet quando era criança, clássico e contemporâneo, mas teve que sair quando os gêmeos nasceram, sua mãe não podia mais pagar. Apesar disso, Roberta continuou a dançar em casa, explorando outros ritmos musicas pela internet.

O horário de visitas do Hospital prof. Doutor Fernando Fonseca acabava as dezoito horas. Se ela ficasse mais um tempo no centro, poderia chegar às 16h com folga, e esse era exatamente o seu plano. Desceu do ônibus e se pôs a andar sem rumo específico. Qualquer tempo que passava fora de casa era tempo bem aproveitado pra Roberta, e logo ela aprendeu a unir o útil e o agradável. Quando tinha quatorze anos, Miguel a ensinou como roubar alguém sem que essa pessoa percebesse. A princípio Roberta achou uma habilidade meio inútil, mas logo a transformou em mais um de seus hobbies.

Olhava para as pessoas andando com olhar clínico, procurava as mais distraídas, as mais fracas e as que tinham menos probabilidade de correrem por muito tempo. Achou seu alvo andando apressado num terno suado, cheio de bolsos internos. A jovem rapidamente foi em sua direção. Tudo acontecia muito rápido, quando a vítima se dava conta de que tinha sido roubada, Roberta já estava longe. Ela esbarrou no homem com truculência, quase o abraçando. Sem tirar os fones de ouvido nem parar de se mover, ela se desculpou e continuou andando com igual pressa. Repetiu o processo mais três vezes aquele dia, chegando ao hospital com sessenta euros nos bolsos.

Desceu do táxi e foi no caminho já decorado para o leito onde a doce dona Sales lia o jornal distraidamente. Quando Roberta chegou ao leito, a mãe abriu um largo sorriso e a chamou para perto da cama.

“Como a senhora está?” Roberta perguntou.

“Ora o de sempre, nada pra fazer, comida péssima e a enfermeira continua insuportável!” ela largou o jornal e pegou as mãos de Roberta “Mas estou bem melhor agora com você aqui, meu amor.”

A garota beijou-lhe as mãos, com um largo sorriso no rosto “Continua sentindo as dores?”

Nesse momento a senhora fechou a cara, mas só de brincadeira “Não me venha falar de desgraças, sua sínica! Se atravessou a cidade toda pra vir aqui traga boas notícias!”

“Tudo bem então.” Roberta gargalhou “Baco e Sergio estão com notas bem boas na escola.”

“Aqueles imundos continuam colando?”

“O que você acha? Eles já devem ter criado um cartel na escola!”

Ambas riram. Quando dona Sales xingava alguém, ela não queria realmente ofender, era apenas o jeito dela. Com exceção de quando ela xingava a enfermeira, que inclusive acabara de adentrar na sala.

“Precisa sair, o tempo de visita acabou.”

“Eu achei que o tempo de visita era até as seis horas” Roberta protestou.

A enfermeira - racista imunda - sempre destratava todos da família de Roberta, menos os gêmeos, que eram ruivos. A menina e a mãe reviraram os olhos em sincronia e, com pesar, se despediram apressadamente, dando uma ultimada encarada na enfermeira ao sair. Roberta andou pelos corredores devagar, não querendo realmente ir embora. Visitar sua mãe, o que fazia uma vez por semana, era sempre uma experiência dolorosa, pois ambas sabiam que a velinha apenas deitava naquela cama esperando a morte.

Tamanha era a distração de Roberta que ela demorou alguns instantes para reparar que não andava mais pelos corredores, mas no topo de um prédio. Não se lembrava de como havia chegado ali, mas não se pôs a pensar nisso, o homem a encarando chamou mais a sua atenção. Ele estava na casa dos quarenta, os olhos puxados exibiam um olhar que Roberta conhecia bem. O olhar de quem sabia que estava prestes a morrer. Ela se aproximou, mas ficou imóvel quando Stefan abriu a boca. Ele simplesmente disse “Ajudem-se” e Roberta estava de volta no hospital.


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