Sede de Poder escrita por Mermaid Queen


Capítulo 29
Capítulo 29


Notas iniciais do capítulo

aviso de gatilho novamente: suicídio. se você é sensível a esse tipo de conteúdo, eu recomendo pular esse capítulo.



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O dedo ainda estava na estante, desde a madrugada. Katherine ainda não decidira o que fazer com ele.

Tudo acontecera rápido demais.

Ela saíra na madrugada, como sempre, mas havia alguns dias que as coisas andavam estranhas. As pessoas já pareciam esperar por ela. Dificultavam as coisas. Tinham defesas, estavam armadas. Já pareciam saber que seriam possíveis vítimas.

Ela entendia que as vítimas seguiam um certo padrão. Eram vampiros com alguma ligação com o governo, interrompida ou não. Imaginou que estivesse se passando por funcionária do governo para tornar mais fácil o acesso a eles. Se houvesse uma comunidade que os conectava, provavelmente estavam comentando, notando as ausências, preparando-se para serem os próximos, mas mesmo assim…

Katherine disse isso a Serpente quando voltou naquela madrugada. Exigiu falar com ele, relatou esse comportamento estranho e disse que não aguentava mais.

— Não consigo mais lidar com a culpa – ela falou, chorando. – Pai, eu não aguento mais a minha própria cabeça. Não aguento mais essa tortura.

Roberto se limitou a olhá-la.

— E o que isso quer dizer?

Katherine piscou para afastar as lágrimas.

— Eu faço o que mais você quiser, mas chega – falou, determinada. – Eu me recuso a continuar. Pode me matar, se isso for te ajudar em alguma coisa, mas deixe a nossa família em paz. São sua família também.

Ela achou que pudesse convencê-lo com aquilo. Apelar para David e Ellen.

Roberto sorriu para ela e assentiu. Levantou-se sem dizer nada e saiu do quarto.

Katherine foi ao banheiro para lavar o rosto, sentindo alívio depois de tanto tempo que nem saberia dizer. Achou que ele a ouvira. Achou que ele deixaria a filha livre. Minutos depois, ouviu a porta do quarto se abrir novamente.

Era Roberto quem havia retornado, mas foi Serpente quem deixou o quarto.

Ela saiu do banheiro, curiosa. Ele entrou e saiu sem dizer nada.

Até que notou o embrulho sobre a cama. Ao se aproximar, viu que era só papel toalha enrolado, mas havia uma mancha…

E, quando desenrolou, encontrou o dedo. Duas falanges, para ser mais específica. Não saberia dizer qual dedo poderia ser, e também não aguentou olhar muito tempo para ele antes de vomitar.

Havia um resto de esmalte rosa na unha. Katherine não conseguia parar de pensar naquilo. Fechava os olhos e a imagem estava lá, impressa na retina. Ficou pensando em todas as pessoas possíveis de serem donas daquele dedo.

Mary, Ellen ou Rachel. Eram as mais prováveis. Só de pensar nisso, Katherine sentia vontade de vomitar novamente. Mas não conseguia parar de pensar.

Era tudo culpa dela mais uma vez. Talvez tivesse achado que Serpente estava blefando, porque havia muito tempo que ele a ameaçava e não fazia nada. Katherine podia ter se sentido encorajada a enfrentá-lo por conta disso.

Não parava de imaginar a cena. Criara com detalhes e ficava revezando as três no papel da vítima, tendo o dedo cortado por causa de um erro dela. Ficava imaginando a reação de Mary quando contaram a ela que o irmão estava morto, e que Katherine o matara. E agora isso.

O quanto David a odiaria agora? Quanto de desprezo sentiria pela irmã? Seria capaz de matá-la se tivesse oportunidade? Katherine não se oporia se ele quisesse tentar. Só queria acabar com tudo.

Tirara o dedo de cima da cama e o colocara na estante, achando que assim o tiraria da vista. Mas estava enganada. Não conseguia parar de olhar para ele.

Horas se passaram e Katherine ainda estava petrificada. A mente dela se tornara um lugar assustador demais. Quando Olivia abriu a porta, ela recuou diante do olhar de Katherine.

— Está na hora do seu treino – ela falou, depois de hesitar.

Katherine se levantou lentamente e caminhou na direção de Olivia. Cogitou atacá-la, sair pelo prédio causando um pandemônio com os guardas até encontrar os seus entes queridos para libertá-los. E então estaria livre ela também.

Passou alguns segundos parada, olhando fixamente para Olivia enquanto saboreava essa ideia. Mas não se atrevia. Talvez algumas horas antes sim, mas não depois do dedo. Não depois de pensar um pouco, e concluir que nem tinha como saber se os reféns estavam no mesmo prédio que ela.

Soube que havia assustado Olivia quando a viu chamar um guarda de rosto coberto para acompanhá-la. Era a primeira vez que acontecia. Logo quando ela menos precisava temer.

Quando Katherine estava mais impotente.

Durante o treino, Travis a olhava com curiosidade. Parecia perceber que algo acontecera, mas não tinha coragem de perguntar. Estava sendo mais gentil do que o usual, no entanto.

— Você não dormiu? – ele perguntou, finalmente. Passara muito tempo com cara de que queria dizer algo, mas desistia.

Katherine olhou para ele por um tempo sem dizer nada.

— Faz muito tempo que eu não durmo.

— Tem tido dificuldade para dormir? – ele insistiu. Queria ajudar.

Ela vinha dormindo no máximo umas três horas por dia havia um tempo. E era só.

— Não durmo – ela respondeu simplesmente, sem vontade de explicar.

Travis se aproximou e segurou o queixo dela com delicadeza, forçando-a a olhar para ele. Katherine afastou a mão dele.

— Eu quero te ajudar – insistiu ele, baixando a voz.

Katherine suspirou. Precisava se lembrar constantemente de que Travis trabalhava para eles. Já ganhara a confiança dela muito além do que seria seguro.

— E ser mais uma vida que eu vou carregar nas costas.

Travis pareceu que ia dizer algo, mas se conteve.

— Você não precisa me proteger – disse ele. – Sei me defender sozinho.

Katherine queria dizer que, se falasse mais um pouco, provavelmente teria que se defender dele.

— Sei – respondeu, desviando os olhos. Jamais deveria ter se aproximado de Travis.

Sentiu-se grata quando Olivia apareceu para levá-la de volta ao quarto.

Naquela noite, Serpente resolveu visitá-la. A parte de Katherine que era filha dele quis acreditar que ele se sentira mal pelo dedo. Pela violência. Esperou ansiosamente pelo que ele teria a dizer, sentindo uma mistura improvável de medo e esperança.

— Kate, querida – disse ele com gentileza. Os músculos explodiam por baixo da camisa de botão. Katherine via como ele estava fisicamente mudado, assustador. – Hoje, você vai voltar às ruas uma última vez. E então, avançaremos para a próxima parte do plano. Queria agradecê-la. Sem você, jamais teria conseguido.

Katherine ficou olhando para ele, sem entender. Era isso? Agradecemos os serviços prestados, agora pode continuar prestando.

— Não – ela sussurrou. – Eu…

Não tinha coragem de dizer que não aguentava mais. Não depois do dedo. Aquilo era uma ameaça de verdade, bem ali na cara dela.

— Não entendo por que precisa de mim – ela disse, por fim. – Qualquer um poderia estar sequestrando essas pessoas. Por que você me escolheu?

Serpente a encarou em silêncio. As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto de Katherine e ela não se esforçou mais para contê-las.

— Já me explicou por que você sumiu. Eu entendo que quis proteger a nossa família, e eu te perdoo. Eu já perdoei. Mas ainda não sei o que quer de mim! – ela exclamou, em desespero. – Por que está ameaçando a nossa família? Por que coloca as vidas deles nas minhas mãos se queria protegê-los?

Apesar da aparência serena, uma veia saltou na testa de Serpente. E Katherine não previu quando a mão dele voou e envolveu o pescoço dela.

— Porque, Katherine – disse ele, começando a apertar – tudo o que sinto por você é desprezo.

Ele a jogou no chão com violência. Katherine caiu e tentou se recompor, atordoada.

— Porque eu precisava de uma cobaia para testar a Substância – continuou ele, agachando até ficar com o rosto bem diante dela. – Precisava que alguém do meu sangue sobrevivesse a ela, para saber se seria seguro aplicá-la em mim.

Serpente agarrou o rosto dela com a mão e o segurou com os olhos cheios de ódio.

— E como eu não poderia arriscar perder David, fiz de você o meu projeto de laboratório.

Ele empurrou a cabeça dela novamente contra o chão. Dessa vez, Katherine não tentou se levantar. Não conseguia se mover. Não conseguia reagir às palavras do próprio pai.

— Acha que eu preciso de um cão que lata por mim? – ele rosnou. – Você está destinada a servir. É uma ratinha. Não merece o poder que tem. Eu a aproximei dos deuses, e você se contenta com as migalhas. Passa os dias se lamentando.

Ele ergueu o punho e o desceu com força no nariz dela. A visão de Katherine ficou escura, e ela nem conseguiu ouvir o próprio grito. Não distinguiu o que era a realidade por alguns segundos, até voltar a focalizar o pai, andando em círculos com a mão suja de sangue.

— Você me frustra – ela o ouviu dizer. – Se fosse capaz de aceitar a sua natureza, poderia me ajudar. Nada pode nos controlar. Somos os seres mais poderosos do planeta, eu e você. Poderíamos ter qualquer coisa. Graças a você, pude usar a Substância. Experimentei finalmente o poder que você vem carregando, e é inebriante. Jamais seria capaz de me subordinar novamente.

Katherine sentia o sangue quente escorrer pelo próprio rosto. O nariz latejava.

— Você teve a sua chance de mostrar do que é feita. Tudo o que fez foi mostrar que será para sempre um cordeiro. Obediente. Isso me enoja. Não posso fazer os seus protegidos patéticos de refém para sempre, para controlá-la. Mas já reservei o seu destino. E quanto à sua família e aos seus amigos, eu os deixarei ir. Não sou o monstro que você pensa que eu sou. Só estou lutando pelos meus ideais. E por um mundo mais justo para o meu povo. Vampiros não serão mais subjugados.

Ele se debruçou sobre ela de novo, e ela se encolheu. Ouviu o som antes da dor explodir novamente dentro da cabeça dela.

— Coloquei o seu nariz no lugar. Você sabe, querida, para não ficar torto – a voz dele foi diminuindo, e logo ela ouviu a porta se abrir. – É melhor se aprontar. Você vai ter que sair daqui a pouco.

Katherine ficou no chão, imóvel. A dor lancinante diminuíra, e agora vinha em pulsos. Mas ela nem prestava atenção. Ficava repetindo a voz dele na própria cabeça. Aquilo não era coisa que alguém podia ouvir do próprio pai e sobreviver.

Ela fora só um experimento. Desde criança, quando recebera aquela primeira injeção que deixara a cicatriz na nuca. Desde sempre. Nunca fora filha.

Doía demais. Katherine sentia um vazio que se espalhava por ela, consumindo tudo. Sentia que não era feita de nada. Que fora trazia ao mundo só para causar dor, e sentir dor.

Quando Olivia foi chamá-la e a encontrou deitada na mesma posição, dirigiu a Katherine um olhar que podia até ser de pena.

— Vá lavar esse sangue da cara – disse ela, fazendo um gesto na direção do banheiro. – Se você quiser. Se não, eu também não dou a mínima.

Katherine engoliu em seco e se levantou. Não tinha escolha, era o que mais dizia a si mesma. Serpente tinha razão sobre ela ser uma derrotada.

Lavou o rosto e obedeceu, como sempre.


Depois de ter colocado as primeiras vítimas no carro, foi dirigindo para a segunda parada. Sabia que Serpente a mataria depois daquilo. De alguma forma, ela sentia, bem no âmago. Tinha as mãos trêmulas quando desceu do carro e se deparou com o prédio enorme.

Sem dar mais a mínima para nada, Katherine saltou o portão com agilidade e passou pelo porteiro adormecido. Ao entrar no elevador e apertar o botão do vigésimo quinto andar, percebeu que estava indo para um apartamento de cobertura.

Sentia uma estranha paz de espírito. Provavelmente era só vazio. Ela tendia a confundir, se os dois representassem ausência de sentimento.

Arrombou a porta com um chute, sem sentir dor ou dificuldade como das outras vezes. Ouviu os gritos antes de ver o jovem casal, que surgiu assustado no corredor. Estavam de pijama. A mulher vestia um robe de seda. Pela primeira vez em vários dias, as vítimas estavam completamente desprevenidas.

A mulher, desesperada, tentou correr para o canto, próxima da sacada. Katherine a acompanhou com o olhar. Resolveu encurralá-la e foi andando para aquele canto, sabendo que poderia pegá-la, para onde quer que corresse.

E quando agarrou o pulso da mulher, seus olhares se encontraram. Ela olhou, cheia de terror, gritando e chorando, enquanto Katherine a encarava de volta com a calmaria de antes de uma tempestade. Soltou o pulso.

Não havia mais motivo.

Percebeu com surpreendente clareza que a hora dela havia chegado.

— Fujam e não falem com ninguém – ela falou, olhando para o casal por cima do ombro. – Teletransportem-se para o mais longe possível daqui.

Voltou a olhar para frente, e foi caminhando para a varanda. Abriu a janela e sentiu o vento gelado no rosto. As cortinas se esvoaçaram atrás dela.

Quando subiu na amurada, finalmente sentiu o coração martelar o peito. Era uma emoção bem-vinda. Respirou fundo. Podia ouvir o casal gritando, mas pareciam distantes, tão distantes quanto as sirenes e as buzinas da noite de Nova York.

Ela chegara ao limite. Não podia aguentar mais. Não precisava aguentar mais. Era hora de dar adeus à culpa, à responsabilidade e a todo o sofrimento. Ela finalmente iria se libertar.

Katherine saltou.


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