A cor da Rosa escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 1
Caleidoscópio


Notas iniciais do capítulo

Olá!

Se você for meu AS: espero que goste do presente, foi feito com muito carinho(, lágrimas) e amor. ♥ (Ele vai ser concluído logo, logo. Me perdoa e não desiste de mim.)

Se você não for meu AS: espero que se divirta com a leitura. ^^

Boa leitura!



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23 anos

 

 Quando o pai pigarreou ao seu lado, Edgar já sabia o que viria a seguir. Ele sempre ficava mais propenso a se gabar depois de um bom jantar e algumas taças de vinho. Mecanicamente, Edgar esboçou um sorriso discreto e procurou parecer orgulhoso de si mesmo. Estava acostumado a ser exibido como um troféu pela família, ainda mais depois de ter terminado a faculdade de advocacia em Paris – o mais novo assunto favorito do pai.

— Foi um dos melhores alunos da turma, formou-se com todas as honras. — O senhor Barbosa deu um apertão carinhoso em seu ombro.

 Edgar limitou-se a apenas assentir a cada frase de efeito que era derramada nos ouvidos dos outros convidados. Sua vida soava extraordinária nas palavras pomposas do pai, cheia de aventuras, cores e floreios. Porém, ele sentia como se todas aquelas coisas tivessem acontecido com outra pessoa há muito tempo. Era quase sufocante relembrá-las, e a comida sempre descia mais difícil depois que elas eram suscitadas.

— Não há dúvidas de que vai ser um advogado brilhante — disse uma das madames à mesa, bebericando sua taça de licor como um passarinho.

— Você já pode envelhecer tranquilo, Jaime. Edgar está muito bem preparado para assumir o escritório. — O doutor Villardo abriu um sorriso, erguendo sua taça a guisa de cumprimento.

 Oh, sim, assumir o escritório. Era o próximo passo a ser dado na vereda minunciosamente calculada da vida de Edgar. Depois viria o casamento, os filhos e a as missas aos domingos com a família. Ele trabalharia pesado para sustentar a faculdade dos herdeiros na Europa, e faria o escritório crescer. Então, num dia qualquer, sem a menor comoção do resto do mundo, morreria velho, amargurado e pálido, com a certeza de ter feito tudo aquilo que os pais planejaram que fizesse.

 Não havia mais nada a esperar da vida se não a morte.

— E me diga, já arrumou alguma pretendente? — Dona Carmela debruçou-se sobre a mesa com um olhar sugestivo.

 Pelo canto do olho, Edgar percebeu a filha dela se ajeitando numa das cadeiras. Era uma moça alta e esbelta, que crescera correndo com ele por entre as macieiras no sítio dos Barbosa. Mas depois de um desencontro de cinco anos, Alice não passava de uma estranha.

— Ainda não. Edgar ainda está se acostumando à vida brasileira e ao escritório, tem de levar uma coisa de cada vez — a mãe tentou intervir, mas era tarde demais.

 Ele blindou-se contra o novo assunto que envolvia sobrinhas de fulana, filhas de ciclana e o que seus pais esperavam numa nora. Particularmente, Edgar não tinha nenhuma preferência. Fosse a moça como fosse, deveria lhe fazer filhos, levá-la para os jantares e bailes da nata de São Paulo e para as missas aos domingos. Provavelmente não a amaria, mas deveria agir como se amasse – e talvez, em algum ponto, pudesse tomar seu próprio fingimento por verdade.

— Edgar? — Tomás tocou seu ombro discretamente, murmurando atrás de sua cadeira. — Vamos jogar cartas na varanda dos fundos, Elias conseguiu surrupiar alguns cigarros holandeses do pai.

 Edgar deu uma última olhada para seus companheiros de mesa e para os pais. A conversa lentamente convergia para os cafezais do coronel Matias e as exportações, e ninguém mais – exceto por Alice – parecia muito interessado nele. Sem pensar muito, levantou-se cautelosamente e sussurrou um “Com licença”.

— Já não passamos da idade de surrupiar charutos dos nossos pais? — Edgar suspirou, ajeitando o colete de risca de giz.

— Oh, velhos hábitos custam a morrer. — Tomas deu-lhe um sorriso matreiro que se refletia até mesmo em seus olhos verdes.

 Os dois atravessaram o salão de baile do palacete, esgueirando-se por entre as mesas e os convidados muito bem vestidos. O bolo de aniversário do doutor Almeida ainda estava sendo servido na mesa principal, e garçons cruzavam o piso de mármore com bandejas repletas de taças de vidro. O pianista, o irmão mais novo de Tomás, tocava agora melodias animadas que convidavam os casais a dançarem.

— Faz quanto tempo que não traga? — Tomás perguntou, enquanto passavam por uma das portas laterais do salão e saíam para o alpendre. — Não fumamos juntos desde que te buscamos em Santos no mês passado.

— Cerca de três horas. Trago todo dia na esperança de que eu morra mais rápido.

 Tomás o fitou de soslaio, parecendo ponderar se aquilo era ou não uma anedota.

— Você vai viver muito ainda. — O amigo riu, mas Edgar notou seu tom de nervosismo.

— Pensei que tivesse encontrado um rabo de saia e se esquecido de voltar, primo. — Elias os recebeu com um sorriso largo assim que fizeram a curva do alpendre. Sua camisa estava para fora da calça e o blazer sumira havia muito tempo. — Mas afinal conseguiu trazer nosso querido Edgar.

 A varanda estava tomada pelo habitual grupo de amigos e mais dois rapazes que Edgar não conhecia, todos encarapitados ao redor da mesa de jogatina. O ar pesado cheirava a tabaco e menta, com a fumaça formando nuvens sob as lamparinas. Havia umas tantas garrafas de vinho vazias e outra já pela metade, e a aparente falta de taças indicava que a bebida vinha sendo tomada no gargalo.

— Como estava Paris, meu caro? — perguntou Elias, logo após soltar uma baforada fina de charuto.

— Cheia dos malditos franceses. Já lhe disse quando me buscou no porto com Tomás. — Edgar aproximou-se para cumprimentar a ele e aos outros rapazes, percebendo que a maioria já estava com a cabeça cheia do vinho.

 Por um instante, Edgar ficou aliviado ao perceber que os companheiros estavam mais interessados nas cartas e no fumo do que em sua presença. Porém, a sensação foi rapidamente esquecida quando seus olhos esbarraram nos de Leopoldo. Encostado no parapeito de uma das janelas venezianas, afastado da mesa de jogatina, ele o encarava de volta um tanto encabulado, ajeitando a camisa de linho. Parecia estar a espera de alguma reação, um sinal de que podia se aproximar, mas Edgar ficou petrificado.

 Sentiu que o chão ruía sob seus pés e o estômago ameaçava se revirar. Num segundo, a mente borbulhou com lampejos dolorosamente coloridos das memórias que tanto lutara para esquecer. Ele se obrigou a engoli-las de volta – a roseira vermelha no pátio dos fundos, o laço de fita azul índigo, a mala de couro marrom com a etiqueta de Paris— e não transparecer afetação. Cautelosamente, fez menção de dar meia volta e caminhar para o alpendre, mas isso soaria como mais uma fuga – e de fato o seria –, e a sensatez de fingir segurança falou mais alto.

— Eu me esqueci de que ele ainda estava aqui, perdão. — Tomás ocupou seu campo de visão ligeiro, segurando-o pelo ombro enquanto enfiava um charuto em sua mão. — Todos estão alegres demais para perceber alguma coisa, mas você precisa reagir para evitar a tensão.

 Naquele meio tempo, Leopoldo se envolvera numa prosa com um dos rapazes desconhecidos, mas ainda o encarava de soslaio. E custava a Edgar desviar o rosto.

— Vamos, ponha o charuto na boca e vá cumprimentá-lo normalmente — Tomás murmurou.

 Mas Edgar não sabia o que normalmente significava entre ele e Leopoldo.

 Enquanto seus ouvidos eram preenchidos com o burburinho da música vinda do salão e as risadas trôpegas de seus companheiros, um bolo espinhoso de memórias entupia seu peito. Lembrava-se dos flertes trocados numa noite quente, regada a vinho e a fumo como aquela. Nem ele nem Leopoldo pareciam saber o que faziam, e quando os limites entre brincadeira e sinceridade se confundiram, pareceu muito certo se inclinar para um beijo. Assim como, nos meses que se seguiram, pareceu certo escapulir dos amigos para conseguir algum tempo a sós.

 No entanto, em certo ponto, Edgar pensou que aquilo era mais errado do que imaginava – ora, rapazes não namoravam, e só se namorava para casar –, então aceitar ir para Paris surgiu como uma válvula de escape. Sem beijo de despedida, ou cartas de papel colorido para Leopoldo. Apenas silêncio por cinco longos anos, e ele não se achava capaz de dizer uma palavra sequer mesmo naquele momento.

— Leopoldo não vai causar uma cena numa festa, Edgar. Basta ir até lá e oferecer um aperto de mãos. — Tomás passou para o seu lado, pondo um cigarro na boca e acendendo a ponta com o zippo.

 Edgar perguntou-se se as mãos de Leopoldo ainda seriam tão quentes quanto antes, e se o toque delas desencadearia a familiar quentura por suas veias. Entretanto, ele não suportaria o contato, não despreparado como estava.

— Não posso fazer isso.

 À mesa, Elias conseguiu uma trinca, e os rapazes protestaram às gargalhadas. Uma das garrafas ficou a ponto de rolar para fora da mesa, mas Sebastião a segurou. Alguém arrotou e a animação ganhou ainda mais força, com os amigos convocando Edgar e Tomás para a jogatina.

— Claro que pode. — Tomás estalou a língua, pondo o cigarro na boca novamente. — Vocês não se encontram desde o seu regresso. Sabe o que isso significa? Que não ficaram cara a cara por cinco anos; logo vocês, que costumavam ser tão próximos.

 Costumavam, mas isso acontecera com outro Edgar, um que conhecia mais cores do que preto, branco e cinza.

 Os livros de capas coloridas caindo da estante enquanto se amassavam contra ela.

 Leopoldo franziu o cenho para ele. O rapaz com quem falava seguiu seu olhar até Edgar e sussurrou alguma coisa.

 Os olhos verde-oliva o procurando pelos bancos da Catedral da Sé.

 Leopoldo parecia estar prestes a encerrar a conversa e aproximar para cumprimentá-lo.

 Os círculos vermelhos que ficavam depois do amor – e que eventualmente desapareciam, deixando a tez na palidez.

 Edgar engoliu em seco.

— Acho que já fumei o suficiente por hoje — disse com a garganta arranhada pela angústia, devolvendo o charuto ao amigo.

— Elias está roubando! — Lázaro acusou às suas costas, plantando a discórdia na jogatina.

 Sem demorar-se mais, Edgar aproveitou a distração e transpôs a varanda em direção ao alpendre. Quase correu para a porta do salão de baile, mas Tomás alcançou seu braço antes disso.

— Por Deus, Edgar. — Tomás exasperou-se, com os olhos arregalados num misto de confusão e perplexidade. — Sua mão não vai cair só por cumprimentar Leopoldo.

 Uma suave brisa noturna soprou na nuca de Edgar, e só então ele notou que suava. A língua enrolou-se dentro da boca, esquecida de como formar palavras.

— Senhor Edgar — chamou um dos empregados do palacete, parado à porta do salão com uma bandeja de prata. — O senhor seu pai mandou lhe avisar que estão de saída. O motorista já foi buscar o carro.

— Edgar... —Tomás murmurou, mas ele desvencilhou-se de sua mão.

— Ah, pois não. Agradeço o recado. — Edgar ajeitou o colete e as mangas na camisa, respirando fundo. —Vê, Tomás? Meus pais me esperam. Temo que tenhamos que deixar o baralho para outra oportunidade.

 Tomás cerrou o sobrecenho para ele.

— Está soando como um covarde.

 A palavra golpeou Edgar de raspão. Já estava calejado de ser tachado como covarde por si mesmo, não lhe importava que o amigo pensasse o mesmo.

— Até mais ver, Tomás. — Ele acenou por cima do ombro, caminhando até o empregado.

— Vamos ao café amanhã — Tomás disse depressa, ainda tentando segui-lo. — Ah, amanhã não. E nem depois também... Meu tio vai nos levar para a casa de campo por alguns dias para uma segunda comemoração.

— Bom proveito. — Edgar apressou o passo, temendo, por um segundo, que Leopoldo tivesse os seguido para fora da varanda.

— Na próxima terça-feira, no café! — Tomás elevou a voz para se fazer ouvir sobre a música do salão. — Vou telefonar para ter certeza de que você não vai se esquecer.

 Edgar o ignorou, juntando-se ao empregado. No salão, a maioria dos convidados já havia se retirado ou estava no processo das mil e uma despedidas. Ele cogitou a ideia de encontrar os anfitriões para os agradecimentos, como pedia a etiqueta, e talvez brincar com o doutor Almeida sobre seus charutos estarem sumidos. Porém, isso significaria ficar mais tempo à mercê do risco de ver Leopoldo novamente.

 Com passos apressados, Edgar costurou seu caminho através do palacete até o saguão de entrada. Encontrou os pais na escadaria de pedra, no exato momento em que o chofer encostava o Ford à calçada.

— Divertiu-se, querido? — A mãe lhe sorriu com o batom vermelho retocado nos lábios. — Foi um jantar adorável, não?

 Ele concordou com um aceno de cabeça, enquanto desciam os degraus sob a noite fresca e entravam no carro. Antes de fechar a porta, lançou um último olhar ao palacete, na esperança de ver Leopoldo e saber que fora seguido – e que talvez, aquela situação estranha e inominável também lhe doesse.


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