Noite Vermelha escrita por MicheleBran


Capítulo 10
Capítulo 10




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10

Um Confronto e Um Recomeço

 

 Curiosamente, o tom de Gottfried não era de censura ou raiva.

Ele parecia apenas interessado em saber por que ela parecia empenhada naquela estranha tarefa. Talvez não entendesse para que aquilo servia ou sequer pensasse que ela teria motivos para se levantar contra ele.

Resolveu não dar motivos para que ele desconfiasse.

— Vendo quais delas posso usar, já que são tão bonitas — ela respondeu, ainda insegura, voltando à atividade. — Se alguma delas for de prata de verdade, teremos uma mancha escura. — Forçou um risinho, explicando: — Não queremos que se machuque.

Ele enterrou o rosto em seu pescoço, como se para sentir seu perfume, e inspirou longamente. Então apoiou o queixo em seu ombro.

— Alguma delas é?

— Não — ela respondeu, neutra, e completou, em tom fingido: — Ainda bem.

Depositou a garrafa de água sanitária sobre a pia e a fechou.

— Ótimo. Vou fechar as porrtas e janelas, e aí podemos dormir.

O beijo que ele depositou no lóbulo de sua orelha deixava claro a duplicidade de sentido do “dormir” e ela segurou a respiração por instinto até que ele se afastasse.

Então pegou uma das joias e a colocou no bolso do jeans — embora não soubesse ainda como tinha adormecido com as vestes do hospital e acordado já com as suas na caverna.

Depois voltou ao quarto e guardou as outras onde as tinha encontrado. Sentou na cama e soltou os cabelos, desembaraçando-os com os dedos. Em seguida, tateou em busca da faca apenas para verificar se estava mesmo por perto, percebendo com alívio que estava ao seu alcance.

Foi quando sentiu o peso sobre a cama e as mãos voltando a encontrar sua pele. Mordeu o lábio inferior, para não esboçar reação, e o permitiu se aproximar, ainda se perguntando como o teria perto e distraído o suficiente para levar o plano adiante.

A resposta pulou logo em sua mente, por mais que a odiasse.

Afastou-o apenas para se acomodar melhor na cama. Sentada de frente para ele, apoiou as costas no estrado e, sem palavras, permitiu que ele mordesse seu pescoço. Ao menos a dor durava pouco, já que ele tentava não machucá-la além do necessário.

Antes que a inércia tomasse seus músculos e a impedisse de agir, Sara enfiou a mão esquerda no bolso do jeans e enrolou-a silenciosamente na corrente com manchas negras em vários pontos. Com a direita, fechou os dedos ao redor do cabo da faca e respirou fundo, buscando ao mesmo tempo criar coragem e encontrar o espaço necessário para sua ação.

Não havia tempo a perder, logo percebeu. Se esperasse demais, o momento de agir passaria e ela estaria à mercê da ira de Gottfried ao vê-la com aqueles instrumentos prontos para uso.

Sem pensar duas vezes, colocou a faca sobre o travesseiro ao seu lado para manusear a corrente com as duas mãos. Respirou fundo de novo e se movimentou rápido. Colou a corrente na parte de trás do pescoço do vampiro e deu a volta quando ele se afastou dela, ao mesmo tempo, assustado e furioso.

Os olhos vermelhos a fuzilaram quando ele finalmente entendeu o que estava acontecendo e tentou se livrar do ardor da prata contra sua pele. Sara segurou as duas pontas da corrente com uma das mãos e usou a que estava livre para tentar cravar a faca no peito de Gottfried.

O punho se fechou ao redor de sua mão, mantendo-a distante, mas a prata o enfraquecia, possibilitando certo equilíbrio de forças. Precisava manter a corrente ao redor da garganta do vampiro, pelo menos, até que conseguisse abertura para eliminá-lo.

Sentiu as unhas arranhando sua carne quando, com a mão livre, ele tentou feri-la e, depois, uma puxada brusca em seu cabelo. A dor incomodou, mas ela não se permitiu recuar. Sua vida, mais do que nunca, estava em jogo.

— Eu trouxe você para cá, cuidei de você, queria construir uma vida ao seu lado e é assim que me retribui?

— Prefiro morrer a ficar com você — cuspiu, apertando mais a pegada e forçando a corrente a entrar na carne com mais força.

Em resposta, ele soltou um rosnado e apertou a mão que segurava a lâmina com mais força. Sara gemeu; no entanto, conseguiu permanecer firme mesmo com os olhos dele faiscando e os dentes ameaçadores à mostra.

O material da joia esfolava a pele, fazendo Gottfried sangrar. Além disso, queimava com tal intensidade que, em alguns pontos, ela podia ver minúsculos fios de fumaça devido à proximidade.

Forçou mais a mão que segurava a faca e juntou todo o restante de coragem que tinha para levar adiante um gesto rápido e desesperado. Puxou a corrente e acertou uma cabeçada em Gottfried, que o deixou atordoado e afrouxou a pegada que a mantinha quase imóvel.

Teria apenas um segundo para agir e aproveitou a chance que talvez não fosse se repetir. Em um só golpe, cravou a faca no peito do vampiro e se levantou, tentando ficar o mais distante dele que fosse possível naquele quarto minúsculo.

As mãos se esticaram para pegá-la, conseguindo segurar seu tornozelo e derrubá-la. A dor do choque com o chão se espalhou pelo seu corpo, especialmente na coxa e no cotovelo direito, e ela precisou chutá-lo no rosto para afastá-lo.

Sara temeu ter atingido algum ponto qualquer do peito, próximo ao coração, mas não o bastante para destruí-lo. Já se preparava para ser assassinada naquela casa escondida de tudo e se tornar mais uma estatística, sem que a família jamais soubesse o que acontecera de fato, quando percebeu as forças de Gottfried minguando.

O alívio se espalhou pelo seu corpo à medida que a letargia começava a tomar o dele, até que ele cedeu. Pouco depois, as veias começaram a se destacar sob a pele pálida; que, por sua vez, tornava-se cada vez mais fina e quebradiça.

Seus joelhos vacilaram de novo quando ela tentou se levantar e Sara caiu mais uma vez, dessa vez sentada junto à parede e ofegante. Viu, em silêncio e com lágrimas se acumulando no fundo dos olhos, Gottfried se transformar no que realmente era: um cadáver em decomposição, finalmente incapaz de fazer mal a quem quer que fosse.

Estava livre.

Ainda fraca e com a mordida em seu pescoço sangrando, mas livre. Devagar e se arrastando, sem confiar nas próprias pernas, Sara se aproximou das gotas de sangue no chão, usando-o para fechar a mordida em seu pescoço e torcendo para que ainda fizesse efeito.

A pele sarou, embora em um ritmo mais lento que o normal, porém as forças pareciam ter mesmo lhe falhado após a súbita explosão de adrenalina. Sequer fazia ideia de onde estava ou de quão longe estariam os vizinhos daquela senhorinha simpática morta horas atrás.

Sorriu ao ver os primeiros raios de sol entrando pela janela.

O dia chegava e ela continuava sem saber quanto tempo havia se passado desde que adormecera naquele quarto de hospital.

Confiando que estava segura, saiu da casa enquanto lutava contra a fraqueza do corpo e usava os sentidos para se orientar. Após alguns minutos de caminhada, encontrou uma trilha que se embrenhava na mata fechada e, com cuidado redobrado, começou a descer um suave declive que, para seu azar, tornava-se mais íngreme conforme avançava. Tropeçou e caiu algumas vezes, ralando a pele dos braços e sentindo que hematomas se formariam em breve.

Estava quase desistindo de sair dali e aceitando a ideia de que morreria perdida e fraca no meio da mata quando percebeu que as árvores ficavam mais e mais espaçadas até se encerrarem em um campo aberto onde havia algumas casas. Uma das pequenas localidades aos pés das montanhas.

Sorriu. Tentou avançar, porém seus joelhos vacilaram e ela caiu com as mãos espalmadas na terra remexida, sujando os cortes da pele já esfolada incontáveis vezes.

— Olha, Luiz! Ela tá ferida. — Sara ouviu a voz de uma mulher chamar a atenção de alguém alguns metros à frente e ergueu a cabeça para ver quem estava se aproximando.

Contudo o fez rápido demais, e sentiu o mundo rodando diante de seus olhos.

— Meu Deus! É aquela menina desaparecida! Corre, e-

Nunca chegou a ouvir o que o tal Luiz quis dizer. O mundo dançou com mais força e, então, tudo se apagou.

.

.

Sara despertou com um sobressalto. Tivera um sonho terrível com olhos vermelhos na escuridão, garras afiadas e um estranho mordendo seu pescoço.

O coração pulava na garganta e ela ergueu a mão para o peito, como se isso pudesse acalmá-lo, contudo a dor de uma agulha presa a um esparadrapo que repuxou a pele a impediu.

Abriu bem os olhos. Estava sozinha em um quarto branco e estéril.

O hospital.

A realidade a atingiu como um caminhão. Não estivera sonhando com todas aquelas imagens. Estivera se lembrando, e a pele arranhada que começou a latejar quando ela fechou as mãos tornou tudo ainda mais vívido.

Queria saber o que tinha acontecido, como a haviam encontrado e tudo o que perdera após o rapto, porém teria que guardar as dúvidas para depois. Recostou-se aos travesseiros e fechou os olhos, aliviada.

Estava bem. Estava salva.

Dera muita sorte, era bem verdade, de seguir o caminho certo naquela trilha, mas escapara com vida e impedira que algo pior lhe acontecesse.

Antes mesmo que pudesse se perguntar mais sobre os eventos das últimas horas, ouviu o barulho de falatório do lado de fora e, em seguida, a porta se abriu.

Pedro foi o primeiro a vê-la desperta e correu para abraçá-la.

— Oh, meu Deus, Sara! Você tá bem? — Afastou-se o bastante apenas para analisá-la.

— Sim, eu-

Thiago, do outro lado, abraçou-a com força e afagou seus cabelos sem dar tempo para que ela fizesse as perguntas que queria.

Então ele a pôs a par de seu estado. Cortes e machucados espalhados pelo corpo, a anemia que ainda levaria algum tempo para ser curada e, ela podia calcular, algumas boas noites sem dormir até que o pior do trauma tivesse passado.

— Mas eles disseram que tudo já está pronto pra você — Pedro começou. — Seu amuleto novo é ainda mais forte que o primeiro. — Então ele piscou e sorriu de canto: — Os vampiros vão precisar ser mais espertos da próxima vez.

Thiago o encarou de cara fechada, porém Sara riu junto para mostrar que não estava brava.

— O que houve enquanto estive fora?

Pelos próximos minutos, os dois se revezaram em contar tudo. Assim, Sara descobriu que fora levada do hospital na mesma noite em que dera entrada e Gottfried matara duas enfermeiras e ferira gravemente uma terceira para chegar até ela. Então, ao que parecia, conseguira mesmerizá-la para que vestisse suas roupas normais e o seguisse.

Quando Pedro viera vê-la, dera o alerta ao não encontrá-la em nenhum lugar do quarto. Os seguranças começaram a procurá-la e viram os corpos e a outra mulher machucada em um corredor quase vazio.

A polícia começara as buscas e, graças a um dos agentes que já trabalhara em conjunto com a S.E.S. e sabia do tipo de trabalho que desempenhavam de fato, conseguiram redirecionar a polícia para os locais mais ermos da cidade, calculando que o vampiro a havia levado para a caverna em que estivera abrigado.

— Mas não havia nada de novo lá — contou Thiago, que participara das buscas. — Ficamos desesperados e os policiais acharam melhor ampliar o campo de investigação.

— A gente tava até bem perto de onde te encontraram — prosseguiu Pedro. — Ainda bem que conseguimos chegar logo. — Ele deu aquele sorriso vacilante, de quem sabia que estava para perguntar algo delicado e não conseguia evitar: — E o que aconteceu lá?

Thiago tentou protestar e dizer que Sara já tivera o bastante, porém ela não recuou e relatou com tantos detalhes quanto conseguia se lembrar todo o ocorrido desde que acordara naquela caverna desconhecida.

— Nossa! — Thiago, ao final, parecia orgulhoso. — Ainda bem que você se lembrou disso sobre a prata, não sei se eu conseguiria.

— Meu bem — brincou Pedro —, essa daí é melhor que nós dois. Juntos!

.

.

Mais tarde, após os dois finalmente se decidirem como se revezariam para acompanhá-la até que tivesse alta, Thiago dormia de mal jeito na cadeira ao lado de sua cama.

Sara quis acordá-lo ao menos para indicar a cama reservada para as companhias dos pacientes ao lado da sua, mas a expressão tão serena no rosto dele a fez recuar a mão que estava a meio caminho de tocar seu ombro.

Em vez disso, afagou os cabelos do irmão com delicadeza e voltou a tentar descansar um pouco.

Depois de tudo o que tinha visto e provado, seria de se esperar que não conseguisse fechar os olhos, porém era curioso o efeito que o conforto e a certeza de que nada mais de ruim aconteceria causaram em seu corpo.

Cumprira sua missão. Tudo estava bem e ela, a salvo.

Sara sentiu as pálpebras pesando e a mente começando a ser tragada pelo sono. Seu último pensamento foi o do quanto, apesar de tudo, a experiência fora positiva para seu aprendizado. Testara-se de forma extrema e ganhara. Agora estava mais atenta, mais preparada. Renascera ainda melhor do que antes, mais forte.

Esperava não estar sendo muito convencida, então sorriu ao perceber que não havia ninguém ali acordado para julgá-la. Em breve, nem ela mesma estaria desperta...

Então o sorriso foi morrendo em seu rosto e, sonhando com suas vitórias em embates futuros, Sara dormiu um sono profundo e tranquilo até a manhã seguinte.


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Notas finais do capítulo

Tudo está bem quando acaba bem ♥
Para quem chegou até aqui, abram seus coraçõezinhos e me falem o que achou, por favor. Adoraria saber suas opiniões sobre meu texto. Espero vê-los aqui outras vezes e só tenho a agradecer a quem venha ler e comentar ^^
AS, espero que tenha curtido. Foi uma experiência diferente e enriquecedora ao mesmo tempo escrever essa história em tão pouco tempo. Espero de verdade que tenha se divertido lendo tanto quanto eu escrevendo ♥



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