Cartas x de x Natal escrita por Jude Melody, Ariane Munhoz


Capítulo 3
Carta x do x Kurapika




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Existem dores que simplesmente não podem ser descritas em palavras. Quando ficava de olhos fechados, cercado pela escuridão que há muito dominara seu coração e todo o seu âmago, Kurapika sentia isso com mais afinco do que em todos os outros momentos.

Às vezes, o sussurro de suas vozes alcançava sua mente; na maioria delas, os lamentos de seus companheiros Kuruta gritando de dor, por misericórdia, para que não fizessem aquilo.

O brilho escarlate envolvia sua mente como as poças de sangue de cada membro do Ryodan que havia assassinado com o uso das correntes.

O som delas tilintava em sua mente, como o som fantasma da morte que certamente chegaria para Kurapika se continuasse seguindo por aquele caminho. Por nenhum motivo em especial, lembrou-se de Senritsu, de seu olhar preocupado e de como ela tapara os ouvidos em certa ocasião, dizendo-lhe o quanto era triste a melodia de seu coração. Desesperadora.

A única melodia que Kurapika gostaria de escutar era a da voz de sua mãe cantando para que pudesse dormir.

Kurapika não sabia mais o que era ter uma noite completa de sono. Quantos meses? Quantos anos? Simplesmente não sabia.

Quando a carta de Gon chegou, com o pedido simples e alegre que o Kuruta podia claramente escutar em sua voz mesmo que tivesse sido feita por escrito, decidiu que ignoraria o causo. Qual era, afinal, o intuito de trocar cartas natalinas se não sentia aquele espírito envolvê-lo? A última vez que havia tido um Natal, seus pais ainda estavam vivos. E ganhara deles o melhor presente que poderia receber: suas presenças em uma ceia farta e uma bela caneta tinteiro da qual Kurapika jamais abrira mão.

“Vai se tornar um grande escritor um dia, meu pequenino!”, a voz de sua mãe, tão doce e pontuada de emoções, ecoou em sua mente. Um dos pares de olhos ali era dela. Mas qual? Kurapika tentara identificá-los, sentir sua presença através do nen; fora impossível. Existiria alguém capaz de tal feito? Não tinha certeza, mas pagaria qualquer valor para isso.

A caneta ainda fazia volume em seu bolso, paga com todas as economias da mãe em prol daquilo que acreditava que o filho se tornaria um dia.

— Não um assassino. — Sua voz ecoou como um tiro no escuro e reverberou em seu próprio corpo; Kurapika se sentia sujo. Indigno de estar na presença dos olhos dos companheiros.

Por fim, e de dedos trêmulos, sentou-se nas escadarias. As vozes lamuriantes o cercavam quando pegou um pequeno bloquinho de notas. Um pedido de Gon. Se fosse qualquer outro, não teria cedido. Mas aquele brilho que o garoto possuía, o calor que emanava em sua presença, o fazia querer acreditar que uma parte de si ainda tinha salvação.

A sua carta, seguindo o ciclo dito por Gon, deveria ser destinada a Killua.

Killua, um garoto que havia crescido em uma família de assassinos. Alguém que, por vontade própria, decidira sair desse meio para estar entre amigos. Mas um assassino seria sempre um assassino. Agora, com as mãos manchadas de sangue, o Kuruta sabia disso.

Seus dedos escorregaram facilmente na caligrafia fina e Kurapika começou a escrever a carta.

 

Killua,

Seguindo a sugestão de Gon, estou participando desta brincadeira e dando notícias através desta carta.

 

Não parecia um começo digno. Se escrevesse para Gon, seria mais fácil. O garoto era tão simples! Qualquer coisa o cativava e o animava. Mas Killua? Eles não eram tão próximos assim. Se fosse Leorio, talvez pudesse perguntar a respeito de sua faculdade (qual era mesmo o curso? Sua mente estava um pouco enleada...) ou sobre sua família. Não parecia bom perguntar à Killua sobre a família depois de tudo o que ele havia passado sendo torturado pelo próprio irmão.

 

Não sei se tenho muito o que dizer. Como você está? As coisas por aqui correram conforme o planejado. Consegui todos os olhos de meus companheiros que estavam espalhados pelo mundo e finalmente posso dar paz a eles, enterrando-os dignamente na terra que um dia pertenceu ao meu vilarejo.

Aqui tudo é muito quieto, parece que naquele dia toda a vida presente foi roubada, tragada para uma outra realidade que não é a nossa. Mas acho que não quero falar sobre isso. Na verdade, não quero, mas se alguém pode compreender o que eu tive que fazer — e o que estou sentindo —, esse alguém é você.

Achei que sentiria como se tivesse cumprido uma missão de vida, mas não sinto. Só uma dor que não sei descrever, um vazio que sufoca e afoga. Não sou do tipo que compartilha sentimentos, mas não é sobre isso que é esta carta? Como é pra você, Killua? Como é esta sensação? Difere por não ser algo tão pessoal?

Não me leve a mal, sei que você não é mais um assassino, que decidiu seguir uma vida fora disso. Mas isso permanece em mim. Eu ainda sinto o peso. Eu deveria? Me sinto sujo, tenho nojo do que me tornei e ainda assim não me arrependo. Alguém tinha que fazer isso! Alguém tinha que vingar meus companheiros! Tinha! Sei que sim!

 

A força empregada na caneta borrava de tinta a folha. Somente naquele momento, Kurapika percebeu que o borrão não era apenas por isso, mas também pelo ódio que transbordava por seus olhos através das lágrimas. Seu coração pesava tanto! Não era apenas isso. Por que a culpa não ia embora? Por que os olhares de cada Kuruta permaneciam em si? Por que eles não podiam descansar em paz?!

Gritou. Era lamurio que escapava de dentro de si. Seu peito doía como se o próprio coração fosse envolvido por aquelas correntes e estivesse prestes a explodir — talvez fosse.

Pensou se terminava a carta, se a entregaria daquele jeito. Fechou os olhos, tentando recobrar as memórias, os bons momentos; o sorriso de sua mãe. Como era? Não conseguia! Lembrou-se da risada de Gon, de como Killua gargalhava quando estava em sua presença, de como Leorio se divertia ao estar com os dois — até mesmo ele ria quando estava com os três!

Ria.

Agora não mais.

Kurapika pegou aquela folha e amassou-a com força, empurrando o ódio e todos aqueles sentimentos de tristeza bem para o fundo de seu coração enegrecido.

 

Olá, Killua, como vai você?

Espero que bem.

Não sei se sabe, provavelmente não, mas finalmente consegui recuperar todos os olhos de meus companheiros Kuruta. Agora os estou enterrando, levando-os para o local onde finalmente pertencem. Darei a eles toda a paz que merecem.

Se tudo der certo, poderei ver vocês em breve. Talvez possamos marcar um café ou algo assim.

Sinto falta de todos vocês. Continue seguindo sua vida, continue fazendo as coisas que você desejava fazer e não o que lhe disseram que nasceu para fazer. Sei que é melhor do que isso, Killua. Sei que tem seus próprios sonhos e que vai alcançar todos eles. Siga o exemplo de Gon e brilhe ao lado dele.

De quem muito te estima,

Kurapika.

 

A dor ainda permanecia ali, as vozes ainda permaneciam ali. Kurapika decidiu que quando terminasse de enterrar todos os olhos, enviaria aquela carta. No fundo de sua mente, a voz de sua mãe ainda ecoava: um grande escritor!

Um grande assassino. Uma grande decepção. Mas pelo menos naquele momento, ao escrever aquela segunda carta, se sentia. Pois como um certo escritor português havia dito certa vez:

 

“O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.”

 

Havia fingido mais uma vez que estava tudo bem. Poderia fingir um pouco mais. Só mais um pouco.


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