Contos Sombrios escrita por Karlos


Capítulo 3
Visitante Obscuro


Notas iniciais do capítulo

E depois de muito tempo, estou voltando a postar um conto meu por aqui...
Espero que gostem!



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Frio.

Há muito tempo eu não sentia um frio daqueles. Aliás, creio que nunca havia sentido tanto frio assim. Meus dentes se chocavam uns contra os outros enquanto eu abraçava meu corpo com os braços. O que havia acontecido? Era como se a cidade estivesse sendo congelada propositalmente.

Por morar em um país quente como este, eu jamais havia pensado em comprar algo parecido com um aquecedor, mas estava começando a pensar diferente. Andei pela casa e retirei um último cobertor que havia no guarda-roupas. Foi quando um barulho na janela que ficava em minha sala fez a noite começar a mudar. Mudar de uma forma inimaginável.

Em um primeiro momento, não me animei em ir até lá, descobrir do que se tratava tal barulho. Afinal, estava um frio desestimulante, e alguns gatos malditos costumavam andar sobre o telhado eventualmente. Eles poderiam ter quebrado uma telha, provocando o barulho. Se bem que eu não achava muito provável que houvesse algum deles andando por ali naquele momento, mesmo porque meu cão latiria caso isto acontecesse.

Foi quando o barulho repetiu-se. Por morar sozinho há mais ou menos dois anos, eu havia me acostumado a lidar com situações estranhas, mas um frio daqueles e duas batidas em minha janela iam além do que poderia ser considerado simplesmente "estranho". Não tratava-se de um barulho seco ou alto. Era algo cadenciado e pausado. Era como se alguém estivesse tentando chamar minha atenção

Meu quintal era cercado por um muro e meu cão ficava solto do lado de fora da casa. Era muito improvável que alguém houvesse entrado ali sem provocar um alarde que acordaria toda a vizinhança. Então, o que estava provocando aquele barulho em minha janela? E porque eu estava com tanta vontade de abri-la?

Decidi olhar pela porta, que possuía uma proteção de vidro. Assim eu não precisaria sair para descobrir o que havia de errado. Porém, ao olhar para a direção onde supostamente deveria haver algo ou alguém, não avistei nada. Aliás, o silêncio era profundo. Era como se o frio houvesse congelado tudo. Nenhum movimento podia ser ouvido.

Foi quando, naquele mesmo silêncio mórbido, pude sentir um braço segurando meu corpo e uma mão tapando minha boca. No primeiro segundo, fiquei paralisado pela surpresa da situação. Logo após, tomado pela adrenalina, tentei me desvencilhar daquelas mãos que me seguravam. Apesar de me debater usando todas as forças que possuía, não senti nenhuma alteração na forma como eu estava sendo imobilizado. Era como se um adulto segurasse uma criança mimada. Um adulto realmente forte.

Quando parei com a tentativa vã de escapar, notei que quem quer que estivesse me segurando, não queria me machucar. Caso contrário, eu provavelmente não teria chances de estar acordado por tanto tempo. Os braços continuavam me mantendo firme, mas sem exagero. Neste momento, eu pude ouvir uma voz rouca.

- Eu vou te soltar, mas, por favor, não tente reagir. Seria completamente inútil.

Era uma voz estranha, mas parecia estar dizendo a verdade. Pouco a pouco a pressão que os braços exerciam sobre mim foi sendo diminuída, até que fiquei totalmente livre. Antes que eu pudesse me virar, a voz acrescentou:

- Espero que você não me julgue pela minha aparência.

Quando me virei para encarar o dono daquela voz, pude entender o que ele quis dizer com "julgar pela aparência". Seu rosto era amedrontador, do tipo que você jamais gostaria de ver. Era um misto de cicatrizes profundas e vermelhas que se difundiam, causando arrepio em quem o encarasse. Sua roupa era toda negra, com um ar de vestimenta desgastada devido à vários anos de uso. Ele trazia ainda uma espada embainhada, que emanava uma espécie de luz azulada não muito forte, mas transmitia a sensação de que se tratava de uma das espadas mais fortes e importantes já produzidas.

Não pude evitar o choque ao ver aquela cena e, sem que percebesse o que estava fazendo, dei alguns passos para trás por puro instinto. No terceiro passo, derrubei um vaso, que enfeitava o ambiente e ficava em cima de uma mesa de centro. Com a queda, foram espalhados cacos por todos os lados. O visitante pareceu achar graça de tudo aquilo, como se já esperasse uma reação daquele tipo.

- Eu tentei te chamar pela janela, de um modo mais educado, mas vocês nunca me recebem de uma boa forma... - Ele tentou simular decepção na voz, mas soou muito mais como um deboche. Eu tentava organizar os pensamentos que saltavam em minha mente, todos de uma só vez.

-  O quê...quem...porque... - Minha frase não conseguiu ser concluída antes que ele me interrompesse novamente. Desta vez, porém, ele falou com bastante seriedade, apesar do que disse.

- Sou apenas alguém que tem uma pergunta a fazer para você: desejas morrer? - A esta altura, minha cabeça girava como se eu estivesse sob o efeito de substâncias alucinógenas. Eu havia entendido direito? Fiquei encarando-o por alguns segundos, que se estenderam exageradamente. Quando consegui me recuperar, perguntei-lhe:

- Que tipo de pergunta é esta? Você é o quê? Uma espécie de demônio?

- Que tipo de pergunta é esta? Porque você pensa que eu sou um demônio? O que lhe faz acreditar que, apenas porque lhe perguntei se desejas morrer, sou um ser maligno?

Tudo o que eu conseguia fazer era ouvi-lo. Nada do que ele dizia fazia o menor sentido para mim, mas mesmo assim eu não conseguia formular nada para retrucar suas perguntas. Além do que, mesmo não sendo perguntas muito convencionais, elas estavam começando a me fazer enxergar as coisas por um ângulo totalmente novo. Novo e estranhamente maligno.

- Então você invade minha casa no meio da noite, me imobiliza, me pergunta se desejo morrer, e devo supor que você é meu anjo da guarda? - Apesar da pergunta ter sido feita de um modo agressivo, tratava-se realmente de uma dúvida, e não um insulto. O ser misterioso à minha frente parecia não ter se abalado pela pergunta, e continuava encarando-me calmamente, com uma luz estranha sendo emitida de seus olhos.

- Em primeiro lugar, eu não invadi sua casa com a intenção de surpreender você e imobilizá-lo. Foi você quem escolheu não me atender quando eu bati. Além disso, eu não consigo ver qual a relação que vocês, humanos, fazem da morte com algo ruim. - O vento soprava lá fora, quebrando o silêncio pesado que havia se instalado na noite. Com o misto de adrenalina, medo e frio, eu tremia como se estivesse tendo uma convulsão. Por isso, decidi sentar-me em uma poltrona que estava logo atrás de mim. Logo após, perguntei-lhe:

- E porque eu deveria considerar sua proposta como um gesto de bondade? - Ele deu a volta em um sofá que havia em sua frente e também se sentou, fazendo sua roupa desgastada e escura acompanhar seu corpo com movimentos leves. Para fazer tal gesto, ele desembainhou sua espada azulada e, após sentar-se, depositou-a sobre suas pernas. Após alguns instantes, que eu utilizei para observar sua arma e certificar-me de que não seria atacado naquele momento, ele continuou:

- Todos vocês, seres mortais, nascem com uma única certeza: a morte. E isto nunca foi, e jamais será evitado de forma alguma por nenhum de vocês. Minha tarefa, quando chega a hora, é de levar-los embora. É obvio que, a menos que aceite minha proposta, não poderei lhe contar o que acontece depois. Sou o quê alguns de vocês chamam de Anjo da Morte.

- Então quer dizer que chegou minha hora? Sendo assim, porque perguntou se eu queria morrer?

- Não, ainda não chegou sua hora. Durante todos esses anos observando os humanos, eu pude observar que muito da essência que os compõe foi corrompida. Até certo período, vocês realmente se preocupavam com questões importantes. Questões relacionadas diretamente a sobrevivência e continuação da espécie. Nesta época, tudo o quê vocês faziam possuía um sentido claro e simples: proteger aqueles que dependiam de vocês e, até certo ponto, proteger a si próprio. - Ao dizer isso, ele parecia estar relembrando tempos distantes e irreais para minha mente.

- No entanto - prosseguiu ele -, tudo isso foi abandonado com o passar do tempo. Todos foram se tornando cada vez mais nocivos uns contra os outros e mais ambiciosos. Mas não se trata do tipo de ambição necessária para a sobrevivência. Trata-se de uma ambição infundada por coisas totalmente inúteis, do meu ponto de vista. É bem verdade que sempre houveram casos em que eu precisei agir porque vocês se desentenderam, mas eram casos particulares e, até certo ponto, compreensíveis.

Ele juntou as mãos, cruzando os dedos, e se inclinou um pouco mais antes de continuar.

- Mas atualmente o quadro é outro. Eu não consigo ficar tranquilo por mais que alguns anos antes que outra de suas desprezíveis guerras seja iniciada por motivos banais, obrigando-me a levar milhares de almas antes do tempo. Foi a partir daí que me veio em mente a ideia de fazer este convite para alguns de vocês. Já que muitos de vocês declaram abertamente não ter medo de mim, arriscando-se por coisas inúteis, eu venho apresentar-me a você e oferecer-lhe uma espécie de atalho. - Eu ouvi atentamente toda a história que ele me contou, e não pude tirar sua razão. Porém, a resposta em minha cabeça era a mesma desde o princípio.

- Não. - disse isso, encarando-o firmemente. - Eu não desejo partir agora. Como você mesmo disse, não é minha hora e é meu direito continuar com minha vida. Além disso, se você insinuou que a morte não é uma coisa ruim, então porque você está revoltado com a forma com que levamos a vida?

- Temo que tenha me entendido errado, meu caro. A morte é apenas algo natural, a que todos os seres mortais estão submetidos. Realmente não se trata de algo ruim. O que realmente me deixa indignado e perplexo é o fato de que vocês desperdiçam suas vidas por tão pouca coisa. Vocês não têm ideia de como a vida é um presente extraordinário, que deve ser aproveitado até os últimos instantes. Ao invés disso, vocês parecem procurar atalhos, caronas, para que ela termine logo. - Ele parecia realmente tentar entender a mente humana quando disse aquelas palavras. E, de certa forma, eu também tentei decifrar minha mente antes de responder.

- Eu compreendo que você deve ter visto muita coisa durante os últimos anos que te fez pensar desta forma. Mas também posso supor que você teve tempo suficiente para observar que os seres humanos não são iguais. Eu nunca fiz nada realmente nocivo contra a minha vida, nem contra a vida de ninguém. E posso dizer, com segurança, que gosto da vida que tenho e não desejo abrir mão dela antes que chegue a hora.

Após estas palavras, ficamos nos observando por algum tempo, como se cada um de nós tentasse entender o argumento oposto. Após alguns segundos - que pareceram horas para mim - o Anjo da Morte levantou-se do sofá em que estivera sentado, expressando suas conclusões:

- Aceitarei sua colocação. É bem verdade que vocês humanos são diferentes uns dos outros, e você não me parece ser o tipo de pessoa que desperdiça sua vida com banalidades. De qualquer forma, eu volto a repetir: aproveite cada instante de sua vida, pois é o presente mais valioso que você jamais ganhará.

Após dizer isso, ele se virou e começou a caminhar lentamente em direção a janela que ele havia batido, com a espada em punho, ainda emitindo aquela luz azulada. Neste momento, eu não pude conter minha curiosidade.

- E quanto à espada? É com ela que você ceifa as vidas? - Ele parou de caminhar e virou-se, encarando-me.

- Na verdade, não. Seria estranho matar quem já está morto, você não acha? - Ao dizer isto, ele deixou escapar um sorriso, que ressaltou ainda mais suas cicatrizes profundas. Eu também sorri com este comentário, entendendo o que ele queria dizer com: "não me julgue pela minha aparência". O que eu havia pensado que seria um encontro terrível com alguma força das trevas, foi na verdade uma conversa reflexiva.

Logo após, voltando a ficar sério, ele completou.

- Esta espada veio comigo exclusivamente para este encontro. É uma espada bastante rara, sabia? Bem, eu realmente preciso ir. Nos veremos novamente, e ai poderemos conversar por mais tempo. E, a propósito, me desculpe por todo este frio. - Dizendo isto, ele girou a espada com grande velocidade no ar e, antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa, ela veio em minha direção, transformando tudo em uma escuridão total.

******

Frio.

Eu encontrava-me sentado em minha cama, tremendo como nunca havia tremido antes. Observando o local em que estivera deitado, notei que não havia nenhum lençol ou cobertor. Foi neste momento que me lembrei que na noite anterior, ao me deitar, o calor era bastante grande. Por isso eu estava descoberto e minha janela, aberta. Aparentemente, havia chovido durante a madrugada, e naquele momento uma brisa fria e forte invadia meu quarto.

Levantei-me e caminhei até lá, com o objetivo de fechar a janela. No momento em que comecei a fechá-la, todo aquele acontecimento surgiu em minha cabeça de uma só vez. Eu me lembrava de cada detalhe daquela conversa estranha. Porém, era claro para mim que tudo não passara de um sonho. Um sonho incrível e deslumbrante, mas ainda assim apenas um sonho.

De qualquer forma, algo como aquele sonho não era comum. Ele era, com certeza, uma grande obra que minha mente se esforçara para construir enquanto eu dormia. E eu não podia deixar tudo por isto mesmo. Este foi o motivo pelo qual eu escrevi tudo isto. Mesmo porque a mensagem presente neste sonho pode servir para alguém que eventualmente leia estas palavras. O fato é que tudo não sai da minha mente nenhum segundo sequer.

Em tudo o quê aconteceu de estranho, apenas um fato continua sem explicação para minha cabeça: se foi realmente apenas um sonho, porque meu vaso de enfeite, que ficava em cima da mesa de centro de minha sala, encontra-se espalhado, em cacos, pelo chão?


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Notas finais do capítulo

Este conto foi um pouco diferente dos outros, mas conclui que ainda era um Conto Sombrio.
Obrigado por ler e comentários serão muito bem-vindos!



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