Além do rio escrita por Wendy


Capítulo 20
Demônio da floresta




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/748963/chapter/20

[Wesley]

Aquela talvez tenha sido a imagem mais assustadora que já vi. Do alto de um galho com aproximadamente a mesma altura que nós, uma figura nos observava do escuro. Estava agachada com um sorriso tão sinistro que ficou gravado em minha memória por muitos dias. Seus olhos eram avermelhados, assim como a grande quantidade de pelos que cobriam o corpo todo. As orelhas muito pontudas davam a impressão de que aquilo era um demônio em forma de índio. Sua voz era arrastada, assustadora e trazia uma sensação ruim. Além do mais, era como se o mesmo sentisse prazer em nos ver teme-lo.

—Que bela história, não? –Caminhava como um animal de quatro patas no galho. -Até me emocionei.

Cristina, agora com os olhos secos, endireitou-se enquanto olhava fixamente para o índio vermelho. Continuei a abraça-la com minhas mãos firmes, em um ato de proteção, caso aquela criatura resolvesse atacar.

—Eu me perguntava o que teria acontecido contigo. –Agora estava do lado oposto do tronco, de cabeça para baixo, mas ainda caminhava. - É uma pena ter matado sua irmãzinha, eu gostava muito dela. Entretanto, apesar de tudo, achei muito interessante o que fez. Parece que não é tão bonzinho como todos pensam, afinal.

—Fique quieto! Não tente encontrar semelhanças entre mim e ela. Ou entre você e eu.

—Norato, Norato... –Pulou da árvore e caiu em pé, fazendo Honorato quase sair correndo. –Eu posso sentir seu medo daqui. Mas não se preocupe, não vou mata-los. Caapora não pode perder a chance de receber visitas!

De repente, ouvimos um barulho estranho e notamos que havia uma onça muito próxima de onde caipora estava. Porém, não era uma onça normal. Ela parecia estar em estado de decomposição, até seu cheiro era insuportável, mas não se importava muito com isso. O animal nos encarava de maneira furiosa e Caipora logo notou que estávamos mais preocupados com o bicho macabro do que com ele.

—Ah, não se preocupem com isso.

Com ar de tédio, apontou para o animal com os dedos em forma de arma e um barulho muito alto ecoou pela floresta, assustando pássaros e a nós mesmos. O felino caiu inconsciente no chão e precisei dar um passo à frente para tentar ver melhor o que estava acontecendo.

—Você a matou?

—Vocês são muito indecisos, não? Achei que a presença do bicho os incomodava, mas agora parecem pior ainda. Mas tudo bem. Posso trazê-la de volta, já que estão sentindo tanto a falta do meu gatinho.

Como em um passe de mágica, ele estalou os dedos e o animal acordou do que era para ser um sono eterno. Voltou a grunhir com a boca e ficou andando ao redor de Caipora enquanto nos observava cuidadosamente.

—Eu posso trazê-la de volta a vida sempre que quiser. Na verdade, esse está sendo meu único passatempo ultimamente...

Quando ele se aproximou, Biscoito desatou a latir. Caipora inclinou-se para frente rapidamente dizendo “Bu!” e o cãozinho logo se encolheu, choramingando. Honorato estava anormalmente pálido.

—Fique longe do meu cachorro!

—Ora, que garota interessante. Gostei de ti.

—Eu não vim aqui para ter sua aprovação. O que eu quero é muito mais do que isso.

—Ah, é? –Ele parecia impressionado de uma maneira boa. Mas ao mesmo tempo, era muito julgador. –E o que é que tu queres?

—Cuca. Onde ela está?

—Hum... Essa é uma informação valiosa. Não sei se eu deveria dá-la a uma garotinha rude feito você...

Antes que Caipora pudesse falar mais alguma coisa, percebi que Cristina estava abrindo minha mochila e retirando algo de lá. Lançou o objeto sem demora e Caipora o pegou, analisando. Reparei que um gorro vermelho havia caído próximo aos meus pés.

—Lhe daremos isso em troca.

—E o que é que eu vou fazer com essa coisa?

—Não é uma simples garrafa. O Saci está aí dentro.

Quando o Saci finalmente apareceu no vidro, os olhos de Caipora pareceram brilhar. Aparentemente ter o Saci engarrafado era um premio inigualável para qualquer um, afinal, não era fácil prender alguém como ele.

—Ei, o que está acontecendo?! Vocês enganaram o Saci!

—Um dia é da caça e o outro do caçador, Sacizinho. –Cris parecia ter gostado muito do seu plano. Não achei que ela fosse tão vingativa.

—Quer saber? Esse é um presentão e tanto. –Caipora riu com gosto. Parecia que não sabia o que era dar uma boa gargalhada há muito tempo. Não desgrudava os olhos da garrafa nem um minuto sequer. Depois continuou a falar de maneira distraída, pois toda sua atenção estava voltada no pequeno homem de uma perna só. –Ah, é só vocês continuarem seguindo nessa mata fechada. A Cuca está usando uma caverna como esconderijo, não muito longe daqui. Se continuarem nessa trilha vai ser fácil achar, tem muitos ossos pelo caminho.

Com essa informação, Cristina e eu nos entreolhamos. Estávamos preparados para sair de fininho.

—Mas tu estás muito pequenininho. –Disse ele ao Saci. –Deixa eu te ver melhor.

Quando Caipora abriu a garrafa, um vento tão forte como eu nunca sentira antes surgiu de dentro do objeto. Mais forte até do que aquela tempestade maluca. Um redemoinho muito potente e apressado passou perto de mim, de modo que somente por muito pouco não fui lançado para o ar. Caipora provavelmente não notara que o gorro vermelho que estava perto de mim havia sumido.

—Oxê! Pra onde ele foi?

—Vamos dar o fora daqui! –Honorato nos empurrou com muita pressa.

Com Biscoito abrindo espaço por entre as folhas, corremos no caminho que nos levaria até a Cuca. A adrenalina tomava conta de mim e eu sabia que o momento mais difícil de todas as nossas vidas estava mais próximo do que nunca.

Era provável que Caipora houvesse percebido que perdera o Saci de vez, pois o grito horroroso que ecoava pela floresta fazia com que até mesmo as árvores tremessem com tamanha fúria.

☀☀☀

Honorato permaneceu quieto e cabisbaixo. Era melhor assim.

Notamos que já estava quase na hora do almoço pelos roncos incessáveis de nossas barrigas. Ali mesmo, Cristina e eu comemos o lanche que havíamos levado, mas Honorato não quis se alimentar. Biscoito encontrou o que pareciam ser ossos de animais do chão e os devorou. Pisei em alguns sem querer, mas o cachorro não pareceu se importar.

—Desculpe, amigão.

Quanto mais caminhávamos por aquela estranha parte da floresta, mais a mata se fechava. Em certo ponto precisávamos empurrar as enormes folhas para abrir espaço. O silêncio reinava entre nós, até que Biscoito, farejador e inquieto, começou a latir.

—O que foi, Biscoito? –Perguntou Cristina.

O cãozinho cheirava uma grande pedra fincada no solo. De vez em quando ele olhava para nós, como se quisesse nos alertar sobre algo.

—O que tu encontrou aí? –Cris foi até o local e o carregou, procurando algo incomum. –Eu não vejo nada de errado e...

Enquanto ela caminhava, não conseguiu concluir sua frase graças ao grito estridente que me fez dar um pulo. Em um piscar de olhos, Cris já não estava a minha frente e parecia ter caído. Será que havia um buraco ali? O mato estava alto demais para enxergar o solo naquele momento.

—Cristina! –Gritei e corri na esperança de encontra-la caída no chão.

No entanto, quando me aproximei notei que era algo muito maior do que um simples buraco. Sem saber como eu não fui capaz de ter enxergado aquele precipício gigantesco, caí em meio aos gritos de uma altura de não sei quantos metros. Não tive cabeça para tentar calcular no momento de pânico, quando tudo o que conseguia pensar é que aquele seria o meu fim. Mas, por sorte, dezenas de plantas amorteceram minha queda.

Gemendo com a dor nas costas, levantei-me e, após limpar as folhas que cobriam minhas roupas, procurei por Cristina.

—Cristina! –Chamei. –Onde você está?

—Psiu! Cale a boca e observe.

Corri para o lado de Cristina, que não estava muito longe e só então parei para prestar atenção no local em que estávamos. Era fechado, úmido e iluminado apenas por uma lamparina. Lá, havia uma pilha de coisas estranhas como amuletos, máscaras, bonecos e o que pareciam ser ingredientes para uma receita bem exótica e peculiar. Perto de nós, um caldeirão muito fedorento borbulhava.

—Encontramos. –Disse ela, carregando Biscoito. –Estamos na toca da Cuca.

—Onde ela está?

Levamos um susto quando Honorato apareceu atrás de nós. Se eu pudesse, já teria socado aquela cara irritante há muito tempo e esse parecia ser o momento perfeito. Contudo, me contive.

—Eu não sei. –Falei, voltando minha atenção de Honorato para Cristina.

No entanto, foi só dizer essas palavras que algo muito estranho desencadeou. Ouvimos ao longe uma voz que ficava cada vez mais alta. Parecia que alguém estava cantando lá fora e se aproximava da caverna. Todavia, a voz não era bonita como a de um cantor. Na verdade, tratava-se de algo desconfortável que gerava uma sensação ruim, tanto física quanto psicológica. Senti minha pele arrepiada e vi que Cristina estava tremendo.

Agarrei a garota pelos ombros e a puxei para trás de uma grande rocha da caverna, pedindo para que a mesma fizesse silêncio. Empurrei Honorato para o canto mais apertado que sobrara ao nosso lado, perto de algumas penas bizarras que estavam presas na tiara de uma caveira muito realista. Procurei não encará-la.

“Nâna, neném; que a Cuca vem pegar

Papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar...”

Alguns segundos depois, quando a música já havia parado, observamos uma sombra crescer nas paredes da caverna. Logo, a sombra ganhou forma de um bicho enorme e assustador.

—Wes...

—Shhhh! Fique calado aí. –Mandar Honorato se calar me trazia uma sensação muito boa. Nem sequer olhei para ele, estava focado demais na Cuca.

Notei que a sombra colocava ingredientes no caldeirão muito próximo de nós. O mesmo borbulhava mais e soltava faíscas brilhantes que se dispersavam pelo ar conforme os ingredientes eram adicionados. Cristina não tirava os olhos arregalados das sombras na parede, a boca levemente aberta.

—Mas, Wes...

—Será que dá pra calar essa boca? –Sussurrei. –Mas que inferno!

—Wesley, eu vou...

Antes que Honorato pudesse completar sua frase, um espirro muito alto ecoou pela caverna. Encarei o rapaz e percebi que as penas estavam muito próximas de seu rosto, causando uma irritação no nariz. Mesmo que eu quisesse brigar com ele ou comigo mesmo por não ter dado a devida atenção para Honorato, uma voz horrorosa, áspera e muito alta ecoou pelo local.

—Quem está aí?

—Não podemos nos esconder mais. –Disse Cris. –Ela já sabe de tudo.

—Cristina, não!

Não pude impedi-la de se levantar. Sem melhores alternativas, fiz o mesmo e fiquei frente a frente com a Cuca.

Ela era de fato uma criatura horrível. Parecia uma espécie de mistura entre um jacaré e uma velha muito feia e muito gorda. Seus cabelos louros que pareciam mais um monte de palha estavam bagunçados e cheios de penas, folhas e pequenos galhos. O corpo, coberto com alguns tecidos que lembravam um vestido muito velho e encardido, era repleto de escamas verdes e o focinho era idêntico ao de um jacaré – inclusive, possuía dentes muito pontudos. Ademais, seus olhos eram amarelos e verticais como os de um réptil, o que a deixava ainda mais assustadora. Sem contar a cauda muito comprida que parecia ter vida própria e não parava de se mexer.

—Invasores! O que estão fazendo no meu lar?

—Viemos aqui fazer um trato. –Iniciou Cris. –Deixe as pessoas em paz e nós também a deixaremos. Prometo que vamos sair daqui imediatamente.

—Ora, mas você não deve bater muito bem da cabeça, mocinha. –Gargalhou. –Eu estou a muito pouco de completar meu feitiço e recuperar as energias perdidas. Finalmente poderei destruir todos os outros tolos que se acham superiores a mim e reinar este lugar.

—Isso não passa de um sonho imbecil. Mas ainda dá tempo de desistir.

—Escute aqui, criança: eu não aceitarei desaforos como esse! Ainda mais no meu território.

—Então parece que vai ter que ser do jeito ruim. –Cristina soltou Biscoito, que rosnava em seu colo e retirou uma pequena faca de seu bolso.

Como eu não podia apenas ficar parado assistindo, retirei uma faca que também havia levado só por precaução, acreditando que seria necessária em algum momento.

—Sabe, nunca ouvi falar sobre as maneiras de matar a Cuca. –Falei. –Mas eu sei como matar um jacaré.

—Como... Como ousa... –Nesse momento, ela estava prestes a explodir. Então, sua voz gritante era tão ensurdecedora que pensei que iria perder meus tímpanos. –Como ousa me chamar de jacaré?! Eu sou um dragão, sua criatura imunda!

—Um dragão?! –Cristina e eu exclamamos ao mesmo tempo. Até Honorato parecia surpreso.

—Mas é claro que sim. Vim diretamente da Europa, a Terra dos Dragões! Do território conhecido por vocês como Portugal, mais precisamente. Jacaré... Francamente... Jacaré...

—Bem, até que ele foi gentil com a senhora. –Falou Cris. –Porque a primeira coisa que pensei foi que era uma lagartixa.

Possessa, Cuca partiu em nossas direções e fui para frente de Cristina, impedindo que o lagarto gigante chegasse até ela. Agarrei seu focinho de modo que a Cuca não conseguisse abrir a boca, embora fosse muito difícil mantê-la fechada, afinal, ela era um predador incrivelmente forte. Enquanto eu fazia força para também tampar as narinas da bruxa, Honorato se aproximou rapidamente e deu início a uma série de socos e chutes na barriga da mesma, gerando um impacto sobrenatural. Nesse momento fiquei aliviado por não ter comprado uma briga com o rapaz, pois provavelmente teria morrido nos primeiros segundos.

Logo atrás, Cristina partiu para cima da Cuca e a esfaqueou com tamanha força que até me surpreendi. Se fosse humana, ela decididamente não sobreviveria a um ataque como aquele, mesmo que o objeto cortante fosse demasiado pequeno. No entanto, a faca era insuficiente para penetrar a pele da bruxa. Vi que Biscoito também tentava ajudar: mordia com muita força e fúria a cauda do jacaré gigante, irritando a Cuca de uma maneira espantosa.

Distraído por tentar ver o que todos os outros estavam fazendo, demorei a perceber que estávamos em desvantagem. A enorme boca da bruxa finalmente venceu meus braços, de modo que fui empurrado para trás. Senti suas garras fincarem em meu rosto e gritei com a dor. Cambaleando, senti o líquido vermelho e ardente escorrendo em meu rosto até pingar suavemente no solo da caverna.

Para minha infelicidade, ela fizera o mesmo com Cristina, que foi derrubada no chão e bateu sua cabeça em algum lugar duro, produzindo um som nada bonito. Antes que ela pudesse atacar novamente, Honorato pulou em suas costas e lutou para puxar o pescoço do animal gigante. No entanto, a Cuca era forte demais para ser combatida por ele e, alguns segundos depois, o homem estava no chão, grunhindo de dor com as pisadas que ela dava em seu estômago. Tentei me equilibrar e ajuda-lo, mas antes que pudesse fazer algo, senti outra pancada cheia de garras em minha cabeça, com tanta violência e fúria que fui arremessado para o outro lado da caverna.

Depois disso, tudo ficou escuro e sonolento.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Além do rio" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.