Além do rio escrita por Wendy


Capítulo 19
O passado de Otto




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[Wesley]

Após enchermos nossas mochilas com as coisas que julgamos necessárias para a viagem, Cristina e eu não hesitamos em ir para a floresta. Deixei a garrafa e o gorro do Saci escondidos entre algumas trocas de roupa e a sacola de sanduíches.

Cris tentava formular hipóteses sobre o que deveríamos fazer quando avistássemos a Cuca, mas não creio que ela estava obtendo algum sucesso. A não ser que “empurrar ela penhasco abaixo” seja uma boa ideia. Pessoalmente, sei que mesmo que isso fosse uma opção aceitável, não iríamos conseguir chegar tão perto da bruxa a ponto de conseguir empurrá-la; Não sem levar uma boa mordida, pelo menos.

Quando chegamos à floresta, notei que uma figura nos observava, logo em frente de onde estávamos. Achei que mais ninguém frequentava aquela parte da floresta além de nós dois, porém, percebi que havia cometido um engano. Parei de andar e notei que Cristina, agora calada, estava com o rosto levemente avermelhado. Ao notar isso, também senti que meu rosto se aquecia, no entanto, era de raiva. Um gosto ruim surgiu em minha boca.

—Olá, Cris! –Disse cordialmente e animado. Mudou o tom para algo mais tedioso quando resolveu cumprimentar a mim. –Oi, Wesley.

—Oi. –Talvez tenha saído muito mais rabugento do que eu pretendia.

Biscoito, que nos acompanhava animado, ficou furioso ao reencontrar seu inimigo. Assim como eu, ele guardava um profundo rancor pelo rapaz. Porém, depois que Cristina o repreendeu, ele tratou de guardar a fúria para si.

—O que está fazendo aqui, Otto?

Honorato mudou sua expressão. Agora estava sério e firme.

—É impossível ver tudo o que está acontecendo na Vila e ficar tranquilo. Lucia contou que vocês estão muito determinados a acabarem com essa tragédia de uma vez por todas. Sei que precisarão de ajuda.

—Mas o que está acontecendo vai muito além de qualquer imaginário. –Explicou Cris, preocupada. –Não é tão simples...

—Eu estou por dentro do que acontece por aqui. –Interrompeu.

—Então... Quer dizer que tu acredita em... Você sabe...

—É claro que acredito. –Sorriu e virou-se para frente, seguindo o caminho para dentro da mata.

Cris sorriu e correu para acompanha-lo. Quem esse cara pensava que era para chegar do nada e se intrometer nos assuntos meus e de Cristina? E ainda por cima se pagando de sabidão. Como se não bastasse, agora também queria bancar o líder. Esse moleque ficava a cada segundo mais irritante e tive que caminhar a certa distância atrás dos dois, em silêncio, para amenizar a situação. Cristina nem sequer percebeu que eu estava diferente, coisa que me deixou um pouco chateado, por algum motivo.

—E então, qual é o plano?

—Estamos tentando encontrar o Caipora, talvez ele consiga nos dizer onde a Cuca está.

—Caipora? –Seu corpo se estremeceu. –Mas ele está em um território ultra protegido e enfeitiçado. Nem eu sei como chegar lá sem me perder por pelo menos três dias seguidos.

—E por que tu deveria saber?

—Eu... Ahn... Ando muito pela floresta.

—Bem, acontece que temos uma arma secreta. Wesley!

Como estava ouvindo a conversa, logo soube o que Cristina queria quando me chamou. Retirei a garrafa do Saci de dentro da mochila e joguei para ela, que agarrou com firmeza.

—Nós temos um guia particular.

—Um guia?

—Sim. Prendemos o Saci dentro dessa garrafa e ele prometeu que irá nos levar até o Caipora.

—O quê? Vocês prenderam o Saci? Não brinca!

—Estou falando sério! Saci! –Gritou enquanto chacoalhava a garrafa de maneira muito violenta. –Estou te chamando!

Atordoado, o homenzinho surgiu na garrafa. Tentava se equilibrar, mas caiu algumas vezes e logo se levantou rapidamente.

—O que é que foi agora?

—Não acredito! –Honorato parecia muito animado. –Vocês pegaram mesmo o Saci!

—Ah, não... Mais um pra enchê o saco do Saci. E tinha que ser logo esse aí?

—Vocês já se conhecem? –Perguntei muito desconfiado. Qualquer coisa que diminuísse a moral de Honorato iria melhorar o meu humor.

—Lógico que já. Ele...

—É, o Saci e eu já nos encontramos várias vezes. –Agarrou a garrafa e lançou ao Pererê um olhar cheio de significados. –Mas chega de papo furado e vamos direto a ação. Como fazemos para ir até o... –Engoliu em seco - Caipora?

Com o Saci nos direcionando, caminhamos por muitos locais da floresta que pareciam novos para mim. Eu não fazia ideia de como havíamos entrado lá ou qual era o caminho de volta. Em certo momento, Honorato percebeu que o Saci estava apenas se divertindo enquanto mostrava a direção oposta e Cristina ameaçou fazer churrasquinho com o gorro do malandro. Depois da ameaça, ele não tentou novas brincadeiras e a trilha foi tranquila. Ouvi Honorato conversando muito baixo sobre o Caipora.

—Já vou avisando que não acompanharei vocês por muito tempo. Se quiser minha ajuda com a Cuca, eu não hesitarei. Mas Caipora me deixa um tanto apreensivo.

—Sério que tu tem medo do Caipora, mas não da Cuca que é quem está tocando o terror atualmente?-Perguntou ela.

—É uma longa história.

Pareceu que caminhamos durante horas. Era ainda pior ter que aguentar a voz de Honorato - que não tocou mais no assunto do Caipora - conversando alegremente com Cristina, que estava aos risos, enquanto eu mal pronunciei cinco palavras durante todo o percurso. Biscoito era sensato e também não gostava nada de Otto, então, caminhou ao meu lado e apreciei sua companhia. Somente gostei de ter ouvido algo que saiu da boca do rapaz mais tarde, quando a palavra foi “chegamos”.

—Chegamos onde? –Falei descrente. –Isso é só uma rocha pra mim.

—Tu que pensa. –Otto caminhou ao redor da rocha e logo percebi que havia uma entrada na mesma. Porém, eu nunca perceberia aquela falha se Honorato não houvesse a mostrado diretamente para nós. Era como se olhos normais passassem diretamente pelo buraco, sem dar atenção para ele. Provavelmente estava enfeitiçado com alguma espécie de magia ilusória.

Esgueiramo-nos pelo espaço muito úmido e claustrofóbico, tentando não encostar o rosto nos insetos que moravam por lá. Saímos do outro lado de uma carreira de árvores quase grudadas umas nas outras. A mata daquela região era ainda mais fechada que de costume. Contudo, nada muito impressionante aconteceu. Honorato deu um longo e misterioso assobio. Com o Saci guardado na mochila, ficamos em silêncio por algum tempo.

—Bem, eu realmente não me sinto preparado para isso. –Disse ele. –Foi bom ter passado um tempo com você, Cris, mas agora já vou indo e...

—Olha, é o seguinte: –Toda a frustração guardada em mim finalmente explodiu. E não aguentava mais aquele cara e todos os seus mistérios. Principalmente pelo fato de estar se aproximando de Cris e, pior ainda, afastando-se quando ela mais precisava. Como eu poderia deixa-la ficar perto de um homem cheio de segredos e quem parecia esconder até o que comeu no café da manhã? Eu sabia que não deveria me intrometer nos assuntos dos outros, mas não poderia simplesmente aturar a possibilidade de Cristina se envolver com alguém assim. –Já cansei de todos os seus segredinhos idiotas. Por que tu é diferente de todas as outras pessoas? –Aproximei-me em tom ameaçador e agarrei o colarinho de Honorato, que parecia muito surpreso. -O que há de errado contigo? Eu sei que tu tem algum tipo de ligação com essa floresta e eu não posso deixar tu se aproximar de nós desse jeito. Quem é você?!

Pensei que Honorato ia revidar a fúria e finalmente sua máscara de bonzinho iria cair. Todavia, isso não ocorreu. Ele simplesmente encarou o chão, envergonhado e sem jeito, sabendo que não tinha muitas alternativas.

—Tudo bem. Eu sei que estou lhes devendo uma explicação.

Soltei-o aos poucos e percebi que Cristina nos assistia muito preocupada. Honorato passou as mãos pelos fios de cabelo e finalmente tomou coragem para iniciar.

—Cristina, talvez tu já tenha notado que nunca falei sobre a minha família. Bem... Esse é um assunto sobre o qual não gosto de conversar. E o motivo disso é que eu... –Tomou fôlego e continuou. –Eu matei minha irmã.

—Você o quê? –Cristina parecia chocada e a beira das lágrimas.

—Ela era uma pessoa terrível. Extremamente cruel e sádica, eu simplesmente não conseguia viver sabendo de todas as atrocidades cometidas por ela. Eu era o único capaz de fazer algo para impedi-la. Tentei controlar a situação de várias maneiras, no entanto, não consegui encontrar uma solução melhor...

—Espere! As coisas estão começando fazer sentido na minha cabeça agora. A lenda de Honorato... Não me diga que... Você...?

—Sim. Eu sou o Honorato da lenda, em carne e osso.

Os olhos de Cris se arregalaram, ela estava sem palavras. Para mim o choque provavelmente não fora o mesmo do que o dela, mas ainda assim era surreal assimilar o que estava acontecendo. O nome dele era familiar, porém, eu não conhecia a fundo de qual lenda se tratava.

—Meu avô era um caçador. Certa vez, ele veio até a floresta durante a noite, que era vigiada por Caipora. Curupira, o mais bondoso, apenas guardava a mata quando era dia nessa época. Vovô estava com fome e já não tinha mais nada na aldeia para alimentar sua família, então qualquer animal que encontrasse por ali serviria. Porém, ele cometeu o maior crime que poderia ter cometido: matou uma fêmea prenha. Meu avô ficou feliz, teria carne extra que duraria por um tempo. Caipora, no entanto, ficou possesso quando viu sua perda. Enfurecido, Caipora lançou um feitiço na coisa que meu avô mais gostava em todo o mundo: seu filho.

—O que aconteceu? –Instiguei-o a prosseguir.

—Ele transformou o filho em uma cobra. Tal moço estava planejando fugir com uma mulher com quem, embora amasse incondicionalmente, não poderia se casar por não ter permissão. Quando foi transformado em cobra, todos os seus sonhos se acabaram em um passe de mágica. Acredito que nem sequer tenha entendido o que aconteceu. A moça, no entanto, era perdidamente apaixonada por ele e, querendo escapar de um casamento arranjado a todo custo, decidiu que iria fugir com meu pai mesmo depois do que aconteceu, trazendo enorme desgosto para meus avôs e avós.

—E ela ficou grávida de gêmeos. –Cristina parecia conhecer história muito bem.

—Exato. Eu e minha irmã nascemos grandes e saudáveis, porém, amaldiçoados. Éramos cobras. Mamãe não iria criar monstros e tomou uma decisão: abandonou-nos jogando-nos dentro do rio. Como o rio é encantado pelos poderes místicos da Lua, não fomos mortos. Pelo contrário, fomos abençoados. Conseguimos sobreviver sozinhos e, durante o dia, poderíamos sair da água com o formato humano.

Eu queria falar algo, porém, não sabia o quê. Cristina, sem expressões em seu rosto, já parecia conhecer o final da história.

—Mas vocês não se davam muito bem.

—Crescemos aos arredores da floresta. No entanto, enquanto eu gostava de ajudar as pessoas, Maria Caninana, minha irmã, era uma mulher atroz. Eu seria incapaz de relatar as coisas que ela fazia. Até que, certo dia coloquei um fim nas perversidades dela.

Depois de algum tempo de silêncio, finalizou.

—Isso aconteceu há muitos anos. Desde então venho mudando a minha aparência e adaptando meu modo de falar, conforme passam as gerações. Embora eu não seja tão bom ator quanto gostaria... Além disso, sempre procurei por pessoas que pudessem quebrar o encanto, mas nunca encontrei ninguém corajoso o bastante. Então pensei que... Depois de um tempo...

Olhando para Cristina, ele não precisava dizer mais nada. Ela, por outro lado, parecia ter tanta coisa para dizer que era como se não aguentasse ficar em seu próprio corpo.

—Quer dizer que esse tempo todo eu estive cara a cara com uma lenda do folclore e não sabia de nada? –Empurrou-o, furiosa. –E não só isso, mas como também estava sendo usada? Como pôde fazer isso? Eu confiei em você!

—Eu sinto muito, Cris. -Caminhava para trás, porém, ainda de frente para a garota. -Admito que não deveria ter feito isso contigo, foi errado, eu sei. Mas acontece que em certo momento eu percebi que já não me importava mais com o feitiço. Eu estava ao seu lado, pois realmente gostei de ti. Prova disso é que meus poderes ficaram até enfraquecidos com a sua presença, como se eu me sentisse mais humano. E isso a gente não sente por qualquer um.

—Eu não acredito que confiei em alguém como você.

Em prantos, Cris se envolveu em meus braços e pude sentir as lágrimas molhando minha camisa. Eu não sabia se estava mais intrigado pela revelação de Honorato ou enraivecido por ele ter feito Cristina chorar. Já estava pronto para expulsá-lo, quando notei que algo observava nossa conversa e senti meus pelos se eriçarem.


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Notas finais do capítulo

Cristina achava que Wesley era índio, mas ele não é. Cristina nunca achou que Otto era um índio, mas ele é.
Quem diria, hein?

Ah, só pra esclarecer: na lenda original, Cobra Honorato e Cobra Maria Caninana viram humanos durante a noite, mas eu mudei isso para se adequar a história.
E o começo da história deles (a parte do avô e da fuga do pai com a mulher amada) fui eu que imaginei. A parte da mãe realmente faz parte da lenda



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