Depois daquele Inverno escrita por May Cristina


Capítulo 4
Capítulo IV


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♥



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“Veja como essas folhas estão ficando mais verdes, como as árvores estão se avolumando. Não se deixe enganar por uma estação.”

 

Semanas a fio eu estive acompanhando Gabriel dos Anjos. Parecia que a aeronave que estávamos passava por intensas turbulências. O céu que sobrevoavamos era composto por muitas nuvens e nelas haviam redemoinhos, o que desestabilizava nosso avião. No mais, assim que pousamos e nosso estômago parou com a ameaça de vômito, pudemos perceber que aquilo só tinha sentido devido ao embarque nesse avião. Uma aeronave de desentendimentos.

 

Mesmo com minha maneira de poucos amigos, eu queria tornar possível que o Lar fosse um local acolhedor.

Já me questionei inúmeras vezes a razão de continuar presa a um passado doloroso, inconformado e angustiado. Segundo dados recolhidos por mim mesma, a cada dia eu economizo 30 lágrimas amargas, então, nesses aproximados 730 dias, cerca de 21900 lágrimas continuam acumuladas. Claro, há uma margem de erro, e  também há momentos que o reservatório transborda um pouco por não aguentar demasiado volume.

 

Ano passado eu estava em um ano escolar não muito agradável. Como o último ano do ensino médio geralmente é voltado para vestibular, eu fazia parte dessa onda catastrófica. Estudava no meu tempo livre, por volta das 19 ou 20 horas. Minha preocupação só não era maior que a dos meus colegas. Era notório o estresse e a ansiedade tatuados em cada decímetro de suas faces. Tentava não me cobrar tanto,

pois eu conhecia cada medo e cada conhecimento que meu ser possuía. Como dizia meus colegas, minha preocupação era voltar viva depois de um dia longo no Lar das crianças.

Nesse ano eu não havia passado, a cor e a dor do luto transpareciam uniformemente por mim, então, ter foco tornou-se meu pior pesadelo.

 

Depois duas semanas, com o início das aulas dos meninos do Lar e, com a entrada do mês de Setembro, o vestibular se aproximava e fui obrigada pela minha insegurança a aumentar a dosagem de estudos. Não podia perder mais um ano. No Lar eu estudava enquanto Gabriel fazia uma atividade ou saia do meu campo de visão. Era comum que eu esquecesse algum material no quarto que ele ficava. E mais comum ainda era não achar aqueles pertences. Eu dava de ombros, afinal, havia outras centenas de exercícios a serem feitos.

Naquela rotina, reparei que desprendi totalmente meu foco de Gabriel.

— Quer saber? - suspirei fundo e larguei os cadernos em cima da escrivaninha.

 

Andei pelo pátio do prédio e encontrei ele no mesmo lugar de sempre, deitado na grama perto de um parquinho abandonado.

Gabriel percebeu minha presença e revirou os olhos.

— Ah, fala sério! Um detento não pode tomar um banho de sol que a agente penitenciária já vem fazer vista grossa - disse ele se posicionando para sentar.

— Me desculpe, meliante, mas você conhece as normas de conduta.

Ele sorriu.

— Por que abandonou seus estudos?

Sentei ao lado dele e cruzei os braços como se estivesse me acomodando pelo frio.

— Quero procrastinar um pouco.

— Ótimo, agora virei motivo para suas procrastinações.

O que Gabriel não sabia, é que desde que pisou os pés nesse prédio, ele virou o motivo das minhas xícaras de café.

Ficamos em silêncio por alguns minutos, não tinha o que falar, ou melhor, não tinha o que se dizer.

Subitamente, me veio a cabeça um pensamento um tanto arriscado.

— Psss – fiz um barulho com a boca para chamar atenção dele. – Você quer passear?

 

Gabriel me olhou como se estivesse caindo em alguma armadilha.

— Não, obrigada, haha - ele falava alto. - Gosto MUITO daqui - ele frisou a última parte.

Tampei imediatamente a boca dele com as mãos.

— Eu estou falando sério! Se souberem disso, podem até me denunciar…

 

Suspirei lento e profundamente. O que eu estava querendo? Acabar com minha vida de uma vez por todas? Antes que eu pudesse me indagar novamente sobre, a resposta veio como a velocidade da luz.

— Escute bem! Amanhã à noite a ala de adolescentes estará sem vigia , pois é o dia de folga deles, mas enfim, por volta das 18 horas vá tomar um banho e deixe a porta do seu quarto trancada, eu direi a minha supervisora que você está querendo um momento sozinho, e então você desce pelas escadas de incêndio e me espera aqui mesmo. Abrirei o portão principal e você ande discretamente até ele.

 

Gabriel continuou me olhando.

— Eu já disse que gosto daqui, moça!!

Juntei minhas mãos e coloquei sobre meu rosto. Em seguida eu comecei a rir.

— Olha, Dos Anjos, se você aceitar o que estou lhe propondo, me deixe uma mensagem em algum lugar hoje antes que eu saia.

Me levantei e fui para a recepção pegar minha bolsa para voltar para casa.

Nesse pequeno trajeto, sorri de orelha a orelha pensando na insanidade que apresentei para o pobre garoto. E respondendo o meu questionamento anterior,se acabar com minha vida significa dar oportunidade para uma outra vida, farei isso sem rever os termos de condição e uso.

 

Outubro -  Cerca de 3 anos antes

No auge dos meus 15 anos, eu não havia realizado nenhum feito no qual eu me orgulharia ou contaria uma história mais tarde. Com exceção do Rafael, minha vida era completamente rotineira e monótona. A parte mais interessante começava quando eu ia para cama dormir e acabava quando o despertador tocava Good Day Sunshine para me animar o resto do dia. Bem, de fato não era o suficiente para limpar minha cara de bode senior.

— Meu amor, você não dormiu bem à noite? - dizia Rafael enquanto lanchávamos no parquinho abandonado que havia no Lar.

— Acho que dormi, só estou frustrada com os deveres da escola, nada demais.

— Se o problema for a lista gigante que a Marivalda passou para sua turma, fique tranquila, pois você sobreviverá.

Era meu segundo ano no ensino médio, ou melhor, mais da metade do primeiro ano, e eu estava ainda lidando com a rotina de ter várias matérias e organizar meu tempo de forma inteligente. Às vezes eu perdia uma boa parte da madrugada resolvendo exercícios, porém, na manhã eu não compreendia nenhuma palavra dita pelos professores. Com o tempo eu passei a entender que a melhor forma de absorver conteúdo, é tendo uma ótima noite de sono. Ou pelo menos forjar uma.

— O final de semana está chegando e eu não tenho planos de vir para cá… - dizia Rafael.

Franzi o cenho, no entanto, dei espaço para ele concluir a ideia.

— Quero ir para algum lugar, o mais longe desse se possível.

Eu não conseguia entender a razão pela qual Rafael gostaria de dar um tempo para sua vida aqui na nossa cidade. Vejamos, ele tinha notas fantásticas, não tinha que se preocupar quanto a isso. Nunca escutei reclamações sérias em relação à sua mãe e nem a irmã, que mesmo estando longe, mantinham certo contato. Amigos, ok. Jogava vôlei duas vezes por semana. Se alimentava digno de parabéns. Só uma categoria restava, e meu coração apertara apenas de imaginar.

— Desculpe… - falei baixinho e suspirando.

— O quê?

— Eu reconheço que estou sendo um peso morto ultimamente. Não tenho muito a oferecer, sabe?

Rafael me analisou. Sua expressão era de confusão.

— Amor - ele ria. - Eu não quero em hipótese alguma fugir de você. Na verdade, isso te envolve sim, porém, ainda acho complicado te incluir.

— O que você quer dizer com isso?

Em tom baixo ele me explicou detalhadamente o esquema que havia arquitetado. Tentei digerir cada palavra que foi dita a mim. Eu tinha um prazo de poucos dias para dar um feedback.

Passaram-se mais de 24 horas e a dúvida surgia. Sentei no sofá bege de canto que há na minha casa, cruzei as pernas e peguei meu celular. Entrei na galeria, e percebi três fatores. O primeiro que a maioria das imagens eram memes ou screencaptures. Em segundo lugar, fotos minhas eram uma raridade. E por fim, a última foto que eu havia tirado, era de meses atrás, ainda no ano novo.

Analisando as condições , dei-me conta que minha vida estava semelhante a de uma formiga, apenas trabalhos e refeições nas horas apropriadas. Coloquei em conta também a questão de que em poucos anos, eu não teria nem metade do meu tempo livre. Contudo, decidi abrir minha mente para todas essas  novas possibilidades encontradas.

Me tranquei no quarto e busquei por uma bolsa. Adicionei nela tudo o que pude imaginar, produtos de higiene, roupas com cheiro de amaciante recente, dinheiro, remédios e o mais importante, emoção. Sentia meu coração palpitar rápido apenas de imaginar.

 

Dois dias seguintes, acordei olhando para o criado mudo do quarto da pousada. Rafael ainda estava dormindo. Cheguei meu corpo para mais próximo do dele e respirei o aroma de frutas que vinha de seu cabelo. Enrolei meus dedos em uma mecha e retoquei um cachinho amassado. Ele tinha um cabelo impecável, cheio de cachos abertos, bem cuidado. Combinávamos até nisso. Eu já tenho cachos um pouco mais fechados e nem lembrava a última vez que nutri meu cabelo.

Cochilei por alguns minutos e despertei com minha mãe me ligando.

— Sim mãe, em breve estarei fazendo a campanha com outros voluntários. Mais tarde eu te ligo… Também amo você. Tchau. - terminei a ligação.

— Bom dia - Rafael disse se esticando. - Sua mãe está menos preocupada?

— Ah, é normal ela se sentir assim. Mas acho que não desconfia ainda.

Ele sorriu, me deu um beijinho e em seguida se levantou para ir ao toilet.

Aproveitei para organizar minha bolsa. Conectei meu celular na rede Wi-Fi e me entreti nas redes sociais enquanto esperava o banheiro ser desocupado.

— Está às ordens, meu bem! Já deixarei uma sacola separada enquanto você se arruma. Acho que hoje o sol vai aparecer com tudo.

Sorri de canto levando um biquíni e um vestido para me trocar.

Eu estava em Espírito Santo, mais especificamente em Guarapari. Falei com meus pais que o Lar iria recolher donativos nesta cidade, então eles chamaram os voluntários mais assíduos para participar, e aproveitar o litoral no último dia de campanha, como se fosse uma recompensa por todo esforço. Entretanto, metade do que falei para eles era verdadeiro. Na realidade, Rafael e eu viajamos sozinhos para a praia, decidimos ficar apenas um final de semana, uma viagem um tanto rápida. Queríamos comemorar também, pois eu completaria dezesseis anos no domingo.

Meus pais ficaram bastante intransigentes, afinal, era a primeira vez que eu passaria meu aniversário longe deles, e sabiam que Rafael iria, um combo completo para tal atitude. Contudo, eu expliquei que passei quinze anos da minha vida ao lado deles, e com certeza passaria vários outros, apenas queria experimentar algo novo. E bom, lá estava eu na praia praticamente por conta própria.

 

Neste dia, tomei um incrível banho de mar. A praia não estava muito cheia. Compramos muitos picolés, sujamos com a areia, mergulhamos nas ondas que vinham com bastante força. Voltamos para a pousada e almoçamos como reis. Eu estava maravilhada com aquilo tudo, nem parecia que era minha vida.

Voltamos para o quarto descansar um pouquinho.

Como eu tinha me alimentado bastante, sem citar que nadei a manhã toda, simplesmente cai no sono. A sensação de ainda estar água fez com que eu tivesse belos sonhos.

 

O celular tocou e não pude evitar despertar. Passei os olhos pela tela, já eram seis da noite.Me assustei e levantei depressa. Tomei um susto maior ainda.

A cama que eu dormia estava cheia de flores de ipê amarelo. Estava tão surpresa, como eles haviam surgido? Normalmente, os ipês terminam de florescer em setembro, mas já estávamos em um período avançado de outubro.

— Isso só pode ser obra do Rafael… - eu disse acariciando uma pétala macia da flor amarela.

Olhei ao redor e em cima do criado tinha um papelzinho arrancado de uma agenda, e nele estava escrito:

 

Provavelmente você acordou sem entender nada, e não te culpo. Deixei um presentinho para você dentro do armário. Já antecipo que você merece a galáxia, mas infelizmente ainda não posso te dar ela :( Corre lá menina, abre seu presente!

 

Fiz o que ele pediu no bilhete. Assim que abri o armário, no seu fundo tinha um enorme espelho e nele tinha outra folhinha pregada. Primeiro, encontrei o embrulho e o abri. Era um lindo vestido com estampa de galáxia. Não sabia dizer precisamente o que eu estava sentindo, mas comecei a rir muito de felicidade. Coloquei o vestido na minha frente, colado com meu corpo e sorria para o espelho. Peguei o bilhetinho e li:

 

Certo, pelo menos eu posso te dar uma vestimenta de galáxia haha! Sei que você é discreta, então a parte de cima é toda preta e somente a saia que tem a estampa. Agora, feche os olhinhos e finja que está no universo de Star Wars. Se você piscar os olhos duas vezes seguidas, você muda de universo. Acho que agora você deve estar no de Guardiões da Galáxia.

Bom, Margot, você deve pensando “Que diabos esse menino está fazendo??”. Apenas relaxa e calce seu chinelinho. Já misturamos galáxias com primavera, por que não acrescentar esse clima tropical? Às 19h eu estarei esperando por você no hall da pousada. Use o vestido, por favor ♥ te vejo lá.

 

Cada frase eu lia, sentia que ia gritar de tanta alegria. Rafael conseguiu juntar tão bem pequenas coisas que gosto tanto. Fui tomar uma ducha cantando todas as músicas melosas e alegres que vieram na minha mente, ou seja, cantei muito Anavitória.

Me maquiei levemente, passei meu perfume mais doce, coloquei aquele lindo vestido no corpo e meu chinelo roxo com estampa de corações. Certifiquei-me que havia pegado minha carteira com documentos e minha bolsinha de bijuterias. Tranquei o quarto e fui me encontrar com meu amado.



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Notas finais do capítulo

Até o próximo :3



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