Eras - Portais entre Mundos escrita por Lady Chiris


Capítulo 2
Lavi


Notas iniciais do capítulo

Depois de muito tempo... Quem é vivo sempre aparece.
Boa leitura.



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Estava em frente do seu grande espelho em molduras de ouro e esmeradas. Lembrou-se como o havia conseguido. Um dia lhe foi solicitada uma audiência por um novo comerciante local que se mudara para a capital com sua vidraçaria. Um pedido inédito, já que até então os comerciantes ou qualquer outra coisa do mesmo nível nenhuma vez havia solicitado isso. Aceitou o inusitado. No salão de audiência, sentou-se na poltrona do rei. Kanda ficou em pé ao seu lado esquerdo, como todo bom Valgus deve ficar. Sentado ali, parecia mesmo que havia assumido a coroa e a ideia o encheu de satisfação. Quando o vidraceiro chegou não passava de um camponês de meia idade, calvo no topo da cabeça, barba e bigode espessos e negros. Tinha as roupas manchadas de suor e mais escorria do seu pescoço e careca. O vidraceiro pôs-se a falar de sua incrível jornada criando vidros e espelhos, dormindo, comendo e bebendo até que teve uma epifania de grandes ganhos viriam se saísse de sua cidade e fosse para a capital, onde os lordes, cavalheiros e o futuro rei habitavam. No começo, Lavi se arrependeu de ter recebido o pobre coitado, não esperava tanta ladainha e pouca bajulação. Mas por fim aconteceu:

— Gostaria de presentear nossa futura majestade com um de meus espelhos. O Grande Príncipe Guerreiro aceitaria? Alguma preferência? - o homem quase gaguejava com seu sorriso nervoso.

— Claro, adoraria. - seu braço apoiava-se no braço da poltrona, que por sua vez apoiava a cabeça pendida de lado. Segurou um bocejo. - Que tal um grande espelho, um maior do que eu, tanto em altura quanto em largura. Gostaria que sua moldura fosse bem entalhada, bem trabalhada. De ouro. E decoradas com esmeraldas.

Lavi não virou o rosto para ver, mas sabia que Kanda estava com o olhar fixo nele, provavelmente borbulhando de raiva.

— Ouro e esmeralda? - a voz do vidraceiro quase não saiu.

— Bastante esmeraldas. São minhas favoritas.

O homem saiu desnorteado. Kanda não poupou quando teve tempo de fazer seus discursos sobre bom senso. Acreditou na incompetência e que nunca mais o veria o pobre vidraceiro. Porém dois meses depois o espelho estava em seu castelo. Era realmente bonito. Em menos de um mês o vidraceiro era o mais requisitado da capital. Nenhuma das vezes que o viu novamente suas roupas estavam amareladas.

Vestia uma blusa verde água de mangas compridos levemente bufante, uma grande abotoadura de ouro e gola alta. O tecido era decorado com costuras de folhas feitas a fio dourado. Já sua calça era de um tecido pesado da melhor qualidade de cor verde musgo impecavelmente passado. Seus sapatos de couro pareciam nunca ter sido usados. Ele não passava de um garoto nos olhos de alguns, sabia disso, mas hoje lembraria aos Anciões que ele é o futuro rei de Apakan, o Rei Guerreiro de Eras. Sentar-se no trono, audiências, reuniões e bajulações seriam eventos frequentes e não esporádicos como a história do vidraceiro que ocorreu dois anos atrás. Porém, mesmo com todos os louros, não deixava de ser um trabalho chato. Ainda era cedo e, ao invés de ir para o treino, tinha que se vestir para aquela reunião. Aquelas roupas, por mais bonitas que fossem, eram quentes e desconfortáveis. Seu rosto comprido no formato de V escorria suor, grudando seus cabelos louros e rebeldes no rosto e no pescoço.  Enquanto tentava tirar o suor com as mãos, Kanda entrou em seu quarto. O velho vestia uma túnica azul marinho com as barras puídas de tanto arrastarem no chão. O tecido também era puído e sujo nas mangas. Seu cabelo grisalho estava preso em um rabo de cavalo e sua barba já batia no peito. Kanda era um dos poucos Strijders que tinham uma pele morena clara, enquanto a grande maioria tinha uma pele ocre avermelhada ou alaranjada, como o próprio Lavi. Apesar do visual aparentemente desleixado, o Valgus caminhava solenemente com uma postura digna de seu cargo.

— Vestindo-se sozinho?

Talvez fosse pelo calor, ou de se fazer algo terrivelmente chato, ou a sugestão indecente do Valgus ou só pelo seu péssimo gênio fez que o príncipe gritasse raivoso.

— Talvez eu tenha que lhe lembrar que tenho 17 anos e futuro rei. Posso me vestir e me alimentar sozinho.

— Alimentar-se sozinho eu duvido muito. Não sabe fritar um ovo, nem cozinhar um arroz.

— Os cozinheiros se encarregam de fritar ovos e cozinhar o arroz e eu perfeitamente capaz de levar a colher até a boca.

— Quer dizer que nem servir o próprio prato é capaz?

O rapaz avermelhou-se ainda mais em fúria, porém Kanda continuou antes de uma nova explosão.

— Digo pelas roupas, quando foi a última vez que a usou?

— Na audiência com o vidraceiro.

— Isso mesmo! O vidraceiro.

Kanda se pôs a olhar o aposento. Fazia muito tempo desde a última vez que entrara ali. Desde que não precisava mais que alguém lhe contasse histórias para dormir, quando não precisou de companhia para passear pela cidade ou de companhia para os treinos. Kanda nunca viu aquele quarto sem brinquedos, decorado com cores coloridas. Hoje o quarto espaçoso perdeu toda a sua infantilidade e tornara-se luxuoso. A cama com dossel provavelmente caberia três Tribais que dormiriam confortavelmente. O tecido no dossel era vermelho com detalhes em dourado meio amarrado, meio solto, mostrando que a tentativa de arrumar tinha sido feita pelo príncipe. Um imenso armário de madeira entalhada e maciça tinha algumas portas abertas. Havia também uma estante com livros que há muito tempo foram mexidas, quiça nunca e uma escrivaninha limpa e aparentemente intocada. Um lustre de cristais pendia e brilhava aos toques dos raios que vazavam pelas janelas imensas de vidro que estavam abertas junto com suas cortinas, recebendo o ar da manhã. No chão um tapete cinza e preto era preso por um dos pés da cama.

— De todas as coisas idiotas e irritantes que você quer que eu faça, - dizia ele penteando o cabelo com a mão em frente ao espelho. - com certeza essa é a mais inútil. De todas as reuniões dos Anciões você quer que eu vá logo nessa? - ele direcionou o olhar para seu tutor que se aproximava estendendo um pente para ele.

— Penteie direito. É importante manter a aparência nessas reuniões.

— É uma maldita reunião de organização da festa de outono! Os Anciões fazem reuniões sobre novos comércios, relações exteriores, inteligência... e você me envia logo na festa de outono? Sendo que nem são eles que organizam de verdade, só autorizam as coisas...

— Cada pequena coisa é importante, faz parte para que tudo funcione perfeitamente. Como pretende ajudar nas reuniões mais serias se você nem sabe como funciona uma simples festa de outono?

Porém na sua cabeça, aquilo era inútil, perda de tempo. Festinhas de outono, ele como rei poderia pedir a qualquer serviçal que tomasse conta disso, deixa por conta até mesmo para os Anciões, aqueles velhos preguiçosos que adoram jogar conversa fora enquanto tomam chá.

Para ir até a Câmara, Kanda fez questão da carruagem, mesmo não sendo lá uma distância tão comprida e disso pelo menos gostou. Bem, nem tanto. Por mais que a carruagem fosse confortável com petiscos ao alcance da mão e bem ventilado, os cavalos andavam muito lento na sua opinião, convertendo-se em um passeio tedioso. Mas a carruagem imperial era sempre sinal de alguém da família real, no caso, do Príncipe. As pessoas adoravam olhar para a carruagem na esperança de ver alguma coisa, um pedaço do príncipe. As crianças corriam atrás da carruagem como uma brincadeira. As garotas se amontoavam, cochichavam e dava risadinhas. Os comerciantes fofocavam, os velhos resmungavam e pouquíssimos ignoravam. Na maioria das vezes apenas por serem distraídos demais.

Quando chegou na Câmara, localizada na parte histórica da cidade, uma construção pequena e circular, era bem objetiva em sua proposta. Todos os anciões já estavam presentes, todos os sete em suas respectivas cadeiras. Alguns lhe olharam com certa surpresa, outros com um sorriso gentil, mas Julius, o Ancião Mestre, apenas olhou sem aprovação ou reprovação. O salão principal era um círculo com uma mesa de madeira também em círculo com dez cadeiras. Uma das cadeiras era maior, quase um trono, almofadada e decorada. No seu lado direito estava uma menor, igualmente vazia, não tão bem decorada quando a cadeira maior, porém superior as outras oito cadeiras. As outras era iguais, feitas de madeira e almofada simples feitas para suportar as bundas secas dos anciãos e do Valgus. Lavi não fez cerimônia alguma sentando-se na cadeira do rei e Kanda em uma das cadeiras menores a sua esquerda.

— Então enfim veio, Princípe Guerreiro Lavi. Confesso que quando Kanda avisou sobre a sua presença eu tive minhas dúvidas. Nunca mostrou interesse nos assuntos do reino. – disse Julius, o Ancião chefe.

Julius tinha a fama de ser um líder metódico e tradicionalista e sempre foi considerado um homem para ser temido e respeitado. Antes de se tornar Ancião, Julius era o líder de uma das cidades do oeste que na época foi era referência e por isso ele foi indicado e hoje alcançou o Ancião Mestre. Um dia ele foi alto de pele ocre, hoje com o peso dos anos havia encurvado um pouco a coluna e a pele clareado um pouco devido a falta de sol. Julius mantinha-se sempre careca, com grossas sobrancelhas grisalhas.

— O Príncipe Guerreiro tem participado de muitos treinamentos, no entanto. Tornou-se um habilidoso Guerreiro com espada. - justificou Kanda.

— E em artes marciais. Também não sou de todo o mal com arco. - falou de si, orgulhoso.

— Seu pai, o rei Matagu, não era um dos melhores guerreiros. - Julius juntou as mãos ao peito, escondendo cada mão a uma manga. - Quero dizer, ele sabia empunhar uma espada e fazia as danças do guerreiro, contudo apenas o básico, nada de extraordinário. Porém, ele não precisava saber. Como rei, lutar é sempre o último recurso. Ele era um ótimo estrategista, comandante, financeiro, político, sociável e até demais caridoso. Em contraste, seu filho, sucessor direto, é regente do fogo, um excelente guerreiro com espada, artes marciais e até vai bem com o arco, mas não sabe nada sobre o reino que vai governar, antisocial, desinteressado e arrogante.

Qualquer sorriso que estivesse estampado no rosto do Príncipe Guerreiro, derreteu no mesmo instante.

— Agora me diga, Valgus Kanda, como espera que ele seja o futuro rei de Apakan? - perguntou Julius, desta vez demonstrando um pouco de ira.

— Ele é o sucessor direto filho do...

— Eu sei quem ele é, mas não estamos engessados as leis de sucessões. O futuro rei pode abdicar do trono...

— Algo que não farei... - cortou Lavi ficando igualmente irado.

— Ou os anciões podem decidir por unanimidade que o futuro sucessor não segue as regras de exigência. - Julius foi tão incisivo que o salão ficou em silêncio por breves segundos, porém suficientes para mostrar ser peso.

— Entendo sua preocupação, ancião mestre Julius, mas o príncipe ainda tem tempo para se preparar. - tentou Kanda contornar.

— Porém muito mais tempo foi desperdiçado.

— Senhores, odeio interromper discussões tão acaloradas, mas eu gostaria muito que começássemos o verdadeiro assunto da reunião. Meus alunos me esperam.

A voz da senhora ecoou límpida e calma, calma o suficiente para acalmar os ânimos. A senhora já estava sentada na sua cadeira do conselho. Conhecia aquela mais que os outros. Gil foi sua professora de história, geografia e letras quando era criança. Muita coisa, claro, já havia esquecido, mas aquela é um poço de sabedoria sobre o reino e ainda hoje ela continua ensinando os pequenos, mesmo depois de se tornar anciã. Seus cabelos brancos estavam amarrados para trás e suas rugas diziam que ela se aproximava dos 80 anos, porém sua postura impunha respeito e sabedoria. Usava túnica vinho com o símbolo dos Strijders no peito

Julius,  que ainda não demonstrara seu humor pelo semblante, começou a falar sobre o propósito da reunião. Como Lavi já esperava, era só um lenga-lenga sobre  a programação do festival. O comercio, as barraquinhas de petiscos, jogos com premiações e lembrancinhas abrirão suas portas uma hora e meia antes do início dos festejos.  Pelo que percebeu, os anciões tiveram um problema pela quantidade de comerciantes que não eram da capital, requisitando um espaço para abrir sua venda. Aparentemente o problema foi rapidamente resolvido limitando uma quantidade de comerciante de cada região. Na abertura, por tradição, o rei guerreiro sempre dava um discurso de boas vindas. Depois da morte de seu pai, isso era responsabilidade de Lavi. Quando ainda era muito criança, Kanda o acompanhava até o palco e fazia o discurso de boas vindas, deixando apenas algumas palavras, previamente combinadas e treinadas, para o pequeno príncipe guerreiro. Depois de alguns anos, quando já dominava a arte das palavras e a desenvoltura para falar em público, a abertura ficou por sua inteira responsabilidade, porém era de responsabilidade de Kanda escrever o discurso e isso era um costume que se seguia até os dias de hoje. Aquilo, no entanto, não o incomodava, aliás até gostava, afinal a ideia de ficar parado, pensando em palavras bonitas e esquecíveis era, sem dúvida, trabalho para subalternos. Sem contar que ele sempre poderia improvisar, o que deixava Kanda furioso.

Depois da abertura, viria um circo de acrobatas muito famoso que há algum tempo não passava pela capital. Miranda, uma das anciãs, suspirava ao falar da nova apresentação dos circenses na qual sua irmã, que morava ao sul, contara que estava magnifica. Seguindo as festividades os Guerreiros, desde os novinhos aprendendo os primeiros golpes, até os grandes mestres, cada um em sua vez, faria a dança de guerra e em seguida uma arena de luta onde os campeões ganhavam o título de Guerreiros do Festival. Alguns há anos eram invictos e nesse ano lutariam com unhas e dentes para manter o título.

Para acalmar os ânimos e diminuir a adrenalina, as moças dançarinas trariam suas danças, esse ano fazendo uma homenagem ao Príncipe Guerreiro.

               “ - Finalmente, - pensou Lavi - alguns se lembram quem e o verdadeiro rei.” - Ou que pelo menos algum dia seria.

Para finalizar as festividades, o circo de acrobatas voltaria.

Havia sido solicitado pelos Strijders mais jovens que grupos musicais de outras raças fizessem parte das festividades, mas a sugestão nem ao menos foi discutida pelos anciões. Julius foi muito veemente ao dizer que o festival devia ser apenas do povo Strijder, ou pelo menos por quem tivesse um pouco desse sangue nas veias.

Depois de ajeitado dos mais entediantes detalhes, a reunião se encerrou. Julius não fez cerimônias em se levantar e sair do salão. Os outros cinco anciões vieram na direção de Lavi com aquele papo de velho do tipo “como você cresceu!”, “Você está se alimentando bem?”. Hipócritas, na visão de Lavi. Na verdade, nenhum deles se importavam. De fato, nem se lembravam que ele era o verdadeiro rei daquele lugar. Os velhos se aproveitavam que ele ainda não podia assumir para brincarem de serem os chefes do reino e só lembravam dele quando ele aparecia. Lavi se virou para a cadeira onde estava Kanda, mas ele já não estava mais ali e ficou surpreso do velho ter saído dali e nem ao menos ter percebido. Procurou-o as brechas que os velhos deixavam em sua frente e o encontrou, conversando baixinho a anciã Gil. Eles trocaram umas poucas palavras nas quais ele não conseguiu ouvir e ela se retirou. Kanda virou seu olhar para o pequeno grupo que se amontoava no príncipe.

Lavi foi totalmente monossílabo com os anciões que pareceram não perceber ou se importar. Eles iam conversando entre si sobre ele até que se entediaram de ficarem parados ali e foram andando para a saída sem se despedirem. Lavi se levantou e se uniu ao Kanda, que saíram dali em direção a carruagem que os esperava.

Os primeiros metros foram de silêncio incomodo entre os dois até que Lavi quebrou o silêncio:

— Julius não vai deixar que eu seja rei.

Kanda continuava a olhar pela janela, como se não tivesse ouvido.         

— Ele vai fazer de tudo para que eu não assuma e continuar no poder. Provavelmente vai escolher um rei de fantoche, que vai seguir suas ordens.

Kanda enfim olhou para o príncipe.

— E por que agora se importa?

— Como assim que só agora me importo?

— Sinceramente o seu comportamento não é de alguém que quer ser rei.

— Você está brincando, não está?

Ele não parecia estar.

— Se você realmente quer ser rei, certas coisas terão de mudar. A sua rotina de vida terá que mudar.

Lavi sabia exatamente do que ele estava falando e pensar naquilo o aborrecia. Estivera fugindo de todos aqueles compromissos chatos e banais, acreditando que qualquer cargo de confiança poderia fazer aquelas decisões, mas para aqueles velhos desocupados ser presente nas baboseiras era sinônimo de um bom rei. Se quisesse manter o que lhe era de direito teria que seguir essas regras e, depois como rei, poderia mudar como as coisas funcionam e os velhotes não poderiam fazer nada.

— Faça o que for preciso, Valgus. – ordenou olhando pela janela.

— Claro. É o meu dever fazer tudo que a família real pedir. – disse de forma um pouco ríspida. 


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Notas finais do capítulo

Se você curtiu a minha escrita, acompanhe também Ordem e Liberdade - As Primeiras Memórias.
Até a próxima.



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