Eras - Portais entre Mundos escrita por Lady Chiris


Capítulo 1
Sara


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoas. Essa é a primeira vez que posto um história, mas na verdade já escrevo há muitos anos. A finalidade disto é, além de compartilhar minha imaginação para os presentes interessados, assumir um compromisso de começar e terminar uma história (já que eu sempre começo e não termino, ou fico modificando a história eternamente).
Bem, espero que gostem e espero postar toda semana.

Boa leitura



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  Um vento gélido tocou seu rosto. O toque frio era carinhoso, suplicante e triste. Sentiu até vontade de chorar. No ar um cheiro de água e terra podre. Foi só depois de um breve momento sendo acariciada pelas mãos álgidas do ar que se deu conta que estava de olhos fechados. Era noite, uma gigante lua cheia iluminava entre as grandes frestas dos galhos secos e retorcidos das arvores. Nunca estivera num lugar como aquele. Parecia uma floresta morta, quase um pântano, com alguns chumaços de mato alto, altas arvores negras que em dias passados foram majestosas e imponentes. Algo naquele lugar parecia errado, parecia amaldiçoado... Um arrepio percorreu sua espinha e o vento, que a pouco era uma carícia, agora parecia se fechar em volta de seu pescoço, escorregar por suas costas e segurar seus pés.

 

     Ela deu um passo para frente e depois outro. Sentia a terra molhada, quase como lama, entrando entre seus dedos. Olhou-os e estava descalça, usando um vestido branco que não era seu, de tecido fino, leve e esvoaçante. 

 

     "- Que merda estou fazendo aqui? E vestida assim!" - e mesmo com as perguntas pipocando em sua mente, seus pés continuaram se movendo. A principio rápido, depois diminuindo o ritmo. "- Onde diabos estou?" - Não adianta correr quando não se sabe para onde ir.

 

     Enfim chegou a uma clareira, onde a lua iluminava mais intensamente. Placas de madeira podre e encharcadas estavam espalhadas por todo o lugar. Algumas fincadas, outras jogadas de qualquer jeito. Ao seu aproximar de uma, quase lhe passou despercebido os sulcos gravadas nelas, julgando se tratar apenas da decomposição da madeira, contudo ao prestar mais atenção deu um passo para trás e sufocou um grito.

 

     "- Lápides! Um cemitério!".

 

     Varreu o local com os olhos, avaliando a situação. Não era especialista em cemitérios, visitava sempre o mesmo uma vez por ano, porém um cemitério perdido num lugar como aquele não inspirava um bom pressentimento. Um peso invisível caiu sobre seus ombros, uma pressão em seu peito espremia seus pulmões dificultando sua respiração. Mas Sara não correu e nem se desesperou. Sentia medo, porém esse sentimento nunca foi inimigo e sim amante da sua coragem.

 

      "- Esse lugar é uma desova." - declarou mentalmente. "- Esconderijo das atrocidades de um maníaco.". 

 

     Decidiu que o melhor não era continuar ali. Deu meia volta para percorrer o mesmo caminho que havia feito quando ouviu um arrastar de pés atrás de si. Tinha certeza que nada havia ali segundos atrás e quando decidiu que não passou de algo da sua mente, ouviu uma voz.

 

     - Com certeza eles me jogaram aqui. Imundos! - uma voz masculina pronunciou com certa tristeza.

 

     Sara virou-se vagarosamente e o viu, no meio da clareira entre os túmulos, vestido com um manto negro de tecido pesado e poido. Capuz e mangas longas não permitiam que se visse nenhuma parte de seu corpo.

 

     "- A morte, sem a sua foice." - pensou.

 

     A morte prosseguiu.

 

     - Jogaram-me aqui, para apodrecer com a terra, aprisionado neste plano, servir de alimento a larvas até que um espírito benevolente venha e purifique minha alma. - ele gargalhou de uma forma monstruosa. - O tempo não passa... - ele fez uma pausa e olhou para Sara. Ela não conseguia ver seus olhos, mas sabia que sua atenção estava sobre ela. - O tempo... não passa. - continuou, desta vez com uma voz cansada. - O tempo não passa... O TEMPO NÃO PASSA! - sua voz saiu estridente, ensurdecedor. Sara levou as mãos aos ouvidos e num piscar de olhos a morte voou em sua direção, com as mãos erguidas em direção a seu pescoço.

 

***

 

        Acordou sem ar e instintivamente levou as mãos ao pescoço afim de tirar as mãos imaginárias que o envolvia. Percebeu que nada impedia sua respiração além de si mesma, que pelo desespero havia esquecido de respirar.

 

     “- Um sonho.” – seu corpo tenso relaxou e seus olhos vasculharam o quarto meio iluminado, o suficiente para os seus olhos sentirem o incômodo antes de se adaptarem. Puxou os quadris e pernas para trás, sentando-se quase em cima do travesseiro.

 

     Porém o alívio não veio com a constatação. Algo naquele sonho ou pesadelo era diferente. Relembrando os sonhos de sua infância, Sara poderia enumerar uns quatro ou cinco muito mais assustadores do que aquele. Esfregou os dedos dos pés um nos outros e podia sentir a lama do chão entre eles e em sua pele o toque que só a seda sabe proporcionar. Puxou o lençol para se proteger de um frio que não existia e seu pescoço... Colocou a mão na garganta e engoliu a seco o que parecia ter sido terra de tão difícil que foi.

 

     Foi olhando para a luz que emanava entre o tecido cor de creme da cortina que se indagou se os ponteiros do relógio estariam mais adiantados que o habitual do seu despertar matinal. Aos constatar seu atraso,  deu um salto da cama, largando o lençol e arrancando as roupas que vestia pelo meio do caminho. Caiu para debaixo do chuveiro protegendo as madeixas castanhas cacheadas sem se demorar muito ali. Saiu se enxugando, criando uma trilha de passos molhados e caminhou para o armário onde estava seu uniforme escolar, uma calça de helanca azul anil que contorna as formas dos quadris e as coxas. Uma linha branca feita de algodão na costura externa da perna que vai do cós a bainha é o único detalhe nela. Já a camisa era de algodão branco com mangas e gola em V na cor da calça e com o brasão do colégio costurado em também azul anil a direita um pouco acima do peito.

 

     Desceu a escada aos galopes e foi para a cozinha, abrindo a geladeira. Sua pressa não a permitiu perceber que não estava sozinha ali, por isso a voz lhe pegou de surpresa.

 

     - Atrasada?

 

     Na verdade não fora só a pressa que a impediu de percebe-la ali, encostada no balção tomando um copo de café preto. Ela conseguia fazer aquilo, anular sua presença. Sara tinha um sexto sentido para aquelas coisas, quase nada  a pegava a surpresa, seja uma pessoa ou uma bola vindo em sua direção. Como se houvesse um campo invisível ao seu redor que a alertava de qualquer coisa que não deveria estar ali. Como uma ironia, se a Sara tinha aquele poder instintivo, sua mãe tinha o poder de anulá-lo, um poder tão natural quanto o dela. Sabia que o da mãe era um dom, provavelmente fazia parte do kit de todas as habilidades que ela tinha. Será que o seu também era? Talvez a herança de sua família tinha lhe respigado um ou dois dons? Sinceramente esperava que não.

 

     Seu corpo desacelerou, mas sua mente gritava "Vá mais rápido! Fuja! Fuja!".

 

     - Sim, um pouco.

 

     - Por quê? - sua tom interrogativo e gélido lhe causava arrepios.

 

     Sara pegou a caixa de leite e olhou para a mãe. Seu cabelo pintado de vermelho rosado cortado em channel perfeitamente alinhado demonstravam o quanto aquela mulher dava atenção a perfeição. As madeixas em contraste com a pele alva davam um brilho e beleza única para a mulher já na casa dos  quarenta anos. De um tempo para cá, havia percebido que se aproximava da altura da mãe. Talvez em um ano ou dois já estaria bem maior que ela. Vestia blusa de alça e anágua branco que diziam que ela havia acabado de chegar do trabalho ou que logo sairia para ele. Seu semblante não transmitia nenhuma emoção, nenhum traço de alegria, raiva ou preocupação. Seus olhos castanhos pareciam de vidro que o seguiam, mas nada diziam.

 

     - Sono pesado acho. - não foi uma boa resposta, sabia. Era melhor emendar com outra pergunta. - E a senhora? Não é comum estar a essa hora aqui. - sua mãe é tão metódica e previsível que tinha horário até para estar em certos cômodos da casa.

 

     - Estamos com uns novos visitantes na pousada, daqueles tipos grandes e sem noção. Parece que alguns deles ficaram perambulando a madrugada toda pelos corredores, sujando tudo. Um deles tentou comer um dos empregados. Preciso ir lá para ter uma conversinha com eles. - ela fez uma pausa depois de tomar o último gole do seu café. - O trabalho não seria tão pesado para mim se eu não tivesse que fazer tudo sozinha.

 

     "- Fuja! O que está esperando?"

 

     Aquela altura, Sara já havia desisto do leite e foi até o armário pegar um pacote de biscoitos.

 

     - Eu não esqueci da nossa promessa, Sara. Ano que vem você vai me acompanhar todos os dias a pousada depois do colégio. Precisa aprender as coisas. Você vai me substituir.

 

     O tom era autoritário.

 

     - Claro. - respondeu num tom de submissão, mas aquela pontinha de frustração também saiu. - Desculpa, mas tenho que sair.

 

     - Quer que eu te leve?

 

     - Não! - saiu mais rápido do que deveria. - Tudo bem, sei que também tem seus compromissos. Até mais tarde. - e saiu, esquecendo-se do pacote de biscoitos.

 

     Ganhou as ruas ainda desertas com uma pequena cerração das montanhas. Seu bairro era de classe média alta na parte mais alta do país, ao arredores da Montanha Itty, bem longe do agitado litoral. Vivo em verde e apesar das "lendas" da montanha, os moradores presam pela paz. Em passos apressados ia em direção ao ponto do ônibus e ao olhar as horas percebeu que chegar na hora seria impossível.

 

     "- Pode ser que eu perca o primeiro tempo de aula."

 

     O cheiro de água e lama a deixou de sobressalto. Já estava próxima no ponto quando parou e olhou em volta em alerta.

 

     "- Pare com isso, Sara. Vai parecer uma maluca!" - saber a impossibilidade de haver um pântano ou qualquer coisa parecida não a ajudou. O único cheio real que existia era da cerração e das árvores. O cheiro que sentiu era o resquício do sonho e quanto mais tentava entender porquê está acontecendo, menos sabia uma resposta. 

 

     Por sorte não demorou muito para o ônibus chegar, um grande veículo com metade de baixo da parede de metal pintado de vermelho e a outra metade entra em vidro. Quando a condução estava nas montanhas era comum todos os vidros estarem fechados, parecendo apenas uma parede, mas no litoral aqueles vidros eram abertos, recebendo todo o vento salgado que vinha do mar.

 

     Sara embarcou e uma maquina com um leitor pendurada em uma haste logo a entrada lhe deu bom dia. Ela passou o cartão estudantil pelo leitor e a cancela a sua frente se abriu, liberando o caminho. Dentro a maioria dos bancos acolchoados de couro cor de ferrugem sempre em pares, um virado para o outro, estavam vazio. Aquele horário não era o de pico, diferente do que seria uma meia hora atrás. Sara sentou-se em um mais próximo da porta de saída, sozinha, encostada a janela.

 

     A ida até o colégio sempre foi agradável. Sara sempre preferia abrir a janela e sentir o vento gelado da manhã, mas já aprendera que era melhor evitar os olhares de reprovação dos passageiros dos bancos de trás. Qualquer caminho que se pegue para ir a parte média, seja rua ou avenida, era ornamentada por arvores tão majestosas  antigas e altas quanto a própria Montanha Itty, que de tão frondosas criavam sombras por todo o caminho. Sara olhava o teto de vidro, contemplando os breves flash de sol que as arvores permitiam vazar por suas folhas. Ela sempre gostou da ideia de floresta, talvez por ter sempre vivido ali na parte alta. Antigamente em qualquer ilha que fosse, essa preferencia seria um insulto já que todo ilhéus tinha a obrigação de ser apaixonado pelo mar e areia. Foi olhando para o cima que tudo escureceu. As arvores perderam suas folhas e ficaram secas e retorcidas. Ainda via luz entre os galhos, mas não eram do sol e sim de uma lua cheia. Tão rápido quanto veio, se foi e novamente a garota estava de dia vendo as folhas das arvores. Sara soltou um pequeno gemido de susto e olhou a sua volta. Todos os passageiros estavam com a expressão de sempre, nada aparentemente havia acontecido para eles. Novamente estava acontecendo flashs do sonho, mas como era possível? Não havia como um sonho interferir tanto na realidade, não é mesmo?

 

     A parte média não era nem de longe tão interessante quanto a parte alta ou baixa. Ali fazia muito mais calor, um calor abafado, os carros levantavam poeira dos asfaltos e as ruas estavam sempre cheias de pessoas atrasadas. Apesar disso a parte média era o coração de toda a ilha. Foi-se os dias que as Sonatas se mantinham com pesca, viagens marítimas e pirataria, o que deveria fazer os Primeiros Sonaístas revirar-se em seus túmulos, onde os Sonaístas puros eram aqueles queimados de sol com gosto de sal. Os tempos eram outros, a tecnologia andava a passos largos desde que a magia foi aniquilada dali e todos os velhos costumes tornaram-se lendas e histórias. Mas de qualquer maneira, Sara não gostava dali. Mesmo com os altíssimos prédios arquitetônicos, os carros de luxo e utensílios tecnológicos de ponta, sentia-se mal por tanto metal e concreto. Por sorte o colégio conservava um pouco de nostalgia: Era um prédio antigo, centenário, onde várias e várias gerações, pai e filho, passaram por aquele portão, corredores e salas. Apesar do ensino particular ser considerado o melhor, aquele colégio mantinha a tradição da boa educação e das melhores notas nas qualificações anuais. O prédio retangular de dois andares, feito de paredes grossas de tijolos antigos, que garantia um ambiente fria dentro delas, não importando o calor que assolasse no lado de fora, pintadas de um cinza para garantir o aspecto antigo. As janelas de ferro um pouco enferrujada pintadas de um azul anil meio descascado tinham vidros tão visivelmente fracos que a impressão era que qualquer vento mais forte que batesse a destraçaria. Pelos menos eram limpas, manchadas apenas por algumas digitais. Porém o ponto mais alto do lugar, na visão de Sara, era a parte exterior do colégio. Não havia nada demais no entanto, além de uma quadra ao ar livre ao leste, mesas e bancos na parte de trás do colégio rodeada e coberta por árvores. Ao oeste era apenas um extenso gramado meio que isolado, já que ninguém costuma passar por ali, sendo um ótimo lugar para conversas mais reservadas, trocar alguns beijos ou até mesmo fugir do agitado escolar. A parte da frente possuía bancos de concreto protegidos por arvores que davam vista para a rua.

 

     Quando desceu em seu ponto, sabia que talvez desse de cara com os portões fechados, por isso correu o máximo que podia e, pode acreditar, era bem rápido. Sara segurou o fundo da mochila, para controlar um pouco de seu peso e correu. As pessoas inevitavelmente olhavam assustadas ou curiosas para a colegial que parecia não se importar em estar chamando tanto atenção naquele momento. Ao se aproximar dos portões de ferro enferrujado e descascando viu que eles já estavam deslizando sobre os trilhos sendo fechados. O Sr (nome  a inventar) segurava o controle do portão automático e olhava as grades se fechando, talvez maravilhado como a tecnologia facilitava tanto a vida, chegando ao ponto que ninguém mais precisava andar até o portão e colocar aos mãos nele caso não quisesse. Ela sabia que se aqueles portões se fechassem estava frita, ao mesmo tempo que não adiantava gritar para que o gentil senhor parasse o que estava fazendo. Devido a idade talvez nem escutasse e também poderia se embananar pelo desespero e não saber que botão apertar para impedir o fechamento. Sara correu ainda mais e faltando poucos centímetros para que ele se fechasse, virou o corpo de lado e passou sem encostar no portão ou na parede. O velho pareceu surpreendido e antes que pudesse dizer qualquer coisa, Sara olhou para ele e abriu um sorriso gentil e lhe desejou bom dia, sem um suor na testa.


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