Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 46
Cartas Natalinas de 1987 [Especial de Natal 2019]




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I

Cartas de Magrí para Peggy traduzida.

São Paulo, 04 de novembro de 1987

Querida Peggy

Amei a sua última carta! Eu sei que você sempre ri da minha cara quando eu digo isso, mas não posso deixar de imaginar que às vezes você deve se divertir muito sendo a filha do presidente do EUA. Eu sei, eu sei, tem milhões de coisas que você não pode fazer e que para mim é a coisa mais normal do mundo…. Mas passar uma tarde pintando quadros com as crianças do orfanato de Washington me parece sim algo muito mais legal de se fazer!

Tenho saudades de estar perto de você. Foi muito bom as semanas que conseguimos passar juntas, seja em Nova York ou na Casa Branca. Sabe, amiga, acho que parte da minha vida ficou aí junto com você.

Você me perguntou sobre o Matthew na última carta… Ele até que recebeu bem a notícia que eu não voltaria para o EUA tão cedo, não para uma longa temporada. Eu disse a ele desde o começo que minha permanência na escola seria temporária e acho que ele até recebeu bem a notícia. Porém, no dia da despedida no aeroporto ele estava muito abatido e eu me senti péssima. Gostei da visita dele, mas também me senti muito mal depois.

Você sabe que eu sempre achei ele um fofo, um gentleman como vocês falam e eu gostei do nosso curto namoro… Segui o seu conselho em continuar a minha vida normalmente. Mas as lembranças dele (você sabe quem) estão voltando com mais força agora que estou de volta…. mas não vamos falar disso agora, deixa para depois. Prometi a Matthew que o escreveria, mas agora estou um pouco arrependida. Não é justo com ele.

Mudando de assunto, o Elite voltou aos eixos; acho que encerraremos bem o nosso ano aqui. Miguel está fazendo o seu trabalho de melhorar a imagem da escola. Vários alunos que tinham cancelado as matrículas retornaram, e a reputação da escola aos poucos está melhorando. Também pudera! Nada mais de estranho aconteceu nos últimos meses. Chumbinho sempre me mantinha informada sobre o que estava acontecendo, e graças a Deus não tivemos mais sequestros, roubos ou assassinatos desde então.

Esse período de paz coincidiu com a separação dos Karas que você já sabe os detalhes. Sempre é doloroso voltar nesse assunto. Vejo Miguel com frequência, já que ele ainda gosta de dar uma passada nos treinos da ginástica e sempre no final ele vem falar comigo. Mesmo ele sempre sendo amigável, há algo no olhar dele que me parece ser ressentimento. Nossa relação nunca mais foi a mesma.

Falei com Dani, a irmã dele várias vezes. É doloroso a semelhança entre os dois, mas ela é muito mais maluquinha, com certeza. Ela e Chumbinho tem ajudado Miguel com todas as pendências do Grêmio e tenho certeza que sem ela ele não teria conseguido dar conta de tanta coisa!

Sério, Peggy, esse último ano da escola é enlouquecedor!! Eu quase arranquei os cabelos na Trinity [School] com tantas provas, seminários e projetos. Agora o Elite está adotando parte dos métodos das escolas americanas, mas eu acho que eu vou infartar até o final do ano!!

Meu professor de Biologia passou um trabalho gigante para o final do trimestre envolvendo DNA, árvore genealógica e doenças hereditárias. Os melhores trabalhos serão apresentados na 15ª Feira de Ciências da escola e eu já estou quase entrando em desespero para fazer o melhor trabalho! Eu amo quando a matéria de Biologia entra nesses assuntos mais medicinais (e acho que isso confirma qual curso eu vou prestar o vestibular).

Escolhi apresentar um trabalho sobre a deformidade dos músculos em crianças recém nascidas e a sua relação hereditária. O tema é enorme e eu já tenho uma lista de dez livros para pesquisa que garimpei na biblioteca, e eu já estou fazendo em um caderno o esqueleto do projeto. A Jaque, minha colega de sala, já está me chamando de maluca por querer fazer algo tão grande assim por causa dos treinos da ginástica…. Mas quem precisa dormir?

Brincadeira! Eu vou dormir, claro, por que se não a prof. Iolanda me esfola viva se eu aparecer virada nos treinos.

Falando nisso, preciso de um favor enorme, Peggy! Você conseguiria me mandar aquele creme para olheiras milagroso que nós compramos em NY? O meu já está acabando, mas ainda vejo que o roxo ainda não sumiu por completo. E ahhh aquela linha nova de hidratação para o cabelo também, lembra? Juro que eu te pago assim que você vir visitar o Calú no Natal (porque eu sei que você vai vir, não se faça de engraçadinha!)

Falando na peste do seu namorado, Calú está sendo um verdadeiro amigo! Eu morro de rir das palhaçadas que ele me conta dos ensaios e do quanto ele perturba o coitado do Chumbinho. Esses dois sempre trazem um sorriso para o meu rosto. Calú está tão atarefado quanto eu com os ensaios e a a escola, coitado. No dia que combinamos de estudar juntos para a prova de Matemática ele dormiu na cadeira da biblioteca, tadinho!! Sorte que a morcega velha não viu, por que se não…

Enfim, sou tão tagarela! Me despeço aqui, querida Peggy.

Com carinho,

Magrí

II

São Paulo, 30 de novembro de 1987

Querida Peggy,

Eu tenho tantas coisas para te contar, mas infelizmente escrevo muito mais devagar do que os meus pensamentos. Estou com suspeitas terríveis, mas não quero alarmá-la. Não tenho certeza se Crânio sabe do que está acontecendo ou se Miguel tem mais informações; eu vou te contar o que eu sei e talvez Calú acrescente mais detalhes na próxima carta dele.

Eu estava saindo do colégio na sexta-feira quando encontrei o querido Andrade na esquina conversando na cabine telefônica de forma muito raivosa. Parei e observei; ele gesticulava bastante, limpava a testa e bufava. Ele não me viu de imediato, mas assim que ele bateu o telefone ele se deu conta da minha presença.

Eu conheço o Andrade muito bem e sei quando ele está com algo na cabeça que o tira-lhe o sono. Sorri da forma mais inocente enquanto ele me cumprimentava.

“Tudo bem, querida? Não deveria estar em casa?”

Eu apenas sorri e disse que eu estava ficando até tarde na biblioteca da escola para o meu projeto de Biologia (o que era verdade).

“E os outros, como eles vão? Mal tenho notícias deles…”

Andávamos vagamente enquanto falávamos e eu fingi dar de ombros.

“Calú está bem, ocupado como sempre e digo o mesmo de Miguel. Chumbinho está bem também”, sorri “e até está com uma namoradinha”.

“Hum?!” Andrade me olhou surpreso, “Chumbinho é muito novo para essas coisas! Ele precisa se concentrar na escola”.

Eu ri da cara de Andrade e apenas balancei a cabeça.

“Deixa ele, Andrade. Chumbinho não é mais tão garotinho assim..”

Andrade bufou e me olhou de esguelha. Eu já sabia o que ele ia perguntar.

“E Crânio? Tem notícias dele?”

Apertei a alça da minha mochila e dei um leve suspiro. Tentei soar o mais neutra possível, mas sei que falhei.

“Dani diz que ele está bem, ocupado também com o programa do ITA”.

Andrade pigarreou e limpou a testa com um lenço. Eu senti os olhos dele sobre mim e eu sabia o que ele queria perguntar -- dava para ver de longe. Andrade não esconde as coisas.

“Err, hum… eu sei que não é da minha conta e eu estou velho demais para isso, mas… o-oque exatamente aconteceu entre você e Crânio, Magrí?”

Eu o olhei com carinho e suspirei. Não poderia mentir para Andrade, porque não seria justo, não acha Peggy? Claro, eu não podia dar detalhes do que aconteceu, mas ao menos o principal ele deveria saber.

“É complicado, Andrade. Acho que foi tudo uma bomba relógio que estourou. Eu e ele os desentendemos… brigamos feio e estamos separados. Não falo com ele desde o início do ano, pelo menos não uma conversa mesmo”.

Eu vi Andrade me olhando pelo rabo do olho.

“Olha, querida eu não entendo mais nada dessas coisas. Já passei dessa fase”, ele forçou um sorriso e eu sorri de volta “mas me entristece ver vocês de cara amarrada um para o outro assim. Vejo que não só vocês dois, mas os outros também estão um pouco distantes…”

Eu de fato subestimei a capacidade de observação do nosso amigo. Ele era muito mais perspicaz do que eu lhe creditava. Mas tenho que confessar, Peggy, que eu meio que omiti (para não dizer menti).

“Ah não é nada de mais, Andrade”, sorri de forma forçada “É só a correria de fim de ano. Você vai na nossa formatura, não vai?”

Ele sorriu e pareceu satisfeito com o que eu disse. No entanto, havia algo que o estava deixando ansioso que ele tentava ao máximo esconder de mim.

“Está tudo bem mesmo, Andrade? Algum problema na delegacia?”

Andrade tirou o lenço do bolso e o passou na testa. Ele me olhou pelo canto do olho e tentou soar o mais casual possível.

“Não é nada para você se preocupar, minha querida. Sabe como é, nós da polícia também passamos por stress nessa época do ano. Que dia é mesmo a formatura de vocês?”

Eu avisei da data da formatura que é no próximo dia 20/12 (sim, muito perto do natal!) e já marca na sua agenda, Peggy. Espero que possa vir. Não estou tão animada assim, sinceramente, pois acho que será um pouco melancólico. Esse último ano do Elite, por mais que em casos bizarros tenha sido tranquilo, foi um ano triste para nós. Eu não queria deixar a escola com os Karas brigados, mas pelo jeito… Enfim.

Eu não ia deixar Andrade se safar tão facilmente. Andei o mais devagar que eu pude e encontrei uma outra estratégia de arrancar a verdade dele…

“Você me parece muito cansado, Andrade. Deveria tirar umas férias, não acha?”

Ele suspirou. “Ah minha querida, não sei quando terei minhas férias. Eu tinha marcado para janeiro, sabia? Ia viajar para visitar uns parentes que eu não vejo há anos e descansar…”

Andrade balançou a cabeça e limpou de novo a testa. Era a minha oportunidade.

“Mas por que você não vai tirar férias? O que aconteceu?”

“Tribunal, o bendito tribunal vai acontecer!” ele resmungou amassando o lenço “Como se não tivéssemos outros casos para investigar!”

Um medo gelou a minha espinha. Eu não sei se você acompanha as notícias aqui do Brasil, Peggy, mas há algumas semanas saiu uma nota no jornal de São Paulo sobre um caso que (finalmente) irá para julgamento no próximo ano. Quando li a primeira vez não dei muita atenção, mas quando vi quem era o réu…

Eu quase tropecei no meu próprio pé, mas mantive a compostura. Meu coração estava acelerando e respirei fundo para não perder o controle de mim mesma.

Eu continuei fingindo saber de nada e falei da forma mais casual possível.

“Você foi chamado a participar de um tribunal? Que dureza, Andrade!”

Meu velho amigo balançou a cabeça em desaprovação. “Sei que faz parte da minha profissão e é lógico que eu seria chamado, já que eu participei ativamente das investigações do caso, mas bendita hora! Adiarei minhas férias para ver a cara daquele horroroso Dr. Q.I!”

Senti o meu estômago embrulhar e parei de andar. Andrade percebeu a gafe que cometeu ao deixar escapar o que ele queria tanto esconder de mim. Aflito, gaguejou:

“Minha querida, minha querida não se preocupe com nada! Vocês não serão envolvidos nisso e nem precisarão passar perto das portas do tribunal, isso eu garanto! Não precisa temer nada”.

Eu fiquei muito comovida pela preocupação dele, mas não era medo de depor que eu sentia; meu medo era muito maior do que isso -- você sabe, e se o absolvessem? E se ele por alguma manobra maligna conseguisse obstruir a Justiça e ser solto?

Eu não ia preocupá-lo mais ainda com os meus medos. Então deixei que ele pensasse que eu estivesse temendo por mim e pelos Karas.

"É claro, Andrade. Sei que estamos seguros e tenho confiança que vai dar tudo certo no julgamento. Eu achei que por ele já estar preso na penitenciária de segurança máxima por tanto tempo, ele já estava condenado..."

"Ele tem advogados e muito gente nos bastidores tentando provar a sua inocência", Andrade bufou irritado "A alegação deles é que o prof. Cardoso (como é o seu verdadeiro nome) tem problemas mentais que não pode ser completamente culpado por todas as barbaridades do que fez. Se eles conseguirem provar isso, não tenho tanta certeza de como pode acabar esse julgamento. Será júri popular e não gosto nenhum um pouco".

Engoli em seco e eu ia continuar o meu teatro se eu não tivesse chegado no portão de casa. Andrade parou e afagou carinhosamente a minha cabeça tal como um pai faria com sua filha.

"De uma coisa é certa: não vou permitir que ele saia de lá para fazer mal a você e aos outros meninos. Seja na penitenciária ou num hospital psiquiátrico, ele vai continuar preso até definhar".

Sorri tentando passar confiança e fiquei ainda no portão até o seu corpo lento desaparecer na esquina. O que acha de tudo isso, Peggy? Acha que os meus temores têm um fundo de razão? Você conhece a história do Dr. Q.I, pois sei que Calú te contou... De uma coisa é certa: é muito mais fácil fugir de um hospital psiquiátrico, por mais seguro que ele seja, do que de uma penitenciária de segurança máxima, ainda mais aqui no Brasil.

Não pude ficar quieta até mandar o recorte da notícia do julgamento, junto com um bilhete contando o que eu fiquei sabendo por Andrade, para os outros. Miguel tenho certeza que já viu, Calú e Chumbinho também e agora você por meio desta carta. Não obtive resposta de Crânio; tenho receio de ter mandado para o endereço errado, já que eu copiei às pressas enquanto Dani me ditava, mas acho que não. Vou perguntar a ela depois se ele mandou alguma coisa.

Vou te manter informada, querida Peggy.

Beijos,

Magrí

III

São Paulo, 10 de dezembro de 1987

Querida Peggy,

Aconteceram tantas coisas nesses últimos dias que eu não sei por onde começar! Desculpe a demora para responder sua última carta, ela já estava quase pronta mas demorei para postar no correio. Minha cabeça estava nas nuvens...

Sobre o caso do Dr. Q.I fico contente em saber que não sou única que vê os perigos desse julgamento. Tudo é muito pior com os Karas separados! Vi Miguel e ele me parecia bem taciturno e preocupado. Ele me pediu para não fazer nada e nem deixar Andrade saber que ele e os outros sabem. Não sei o que ele pretende, mas dei minha palavra que eu não ia fazer nada estúpido.

Estávamos os dois conversando discretamente no corredor quando vimos Dani, mas ela parecia distraída e não nos viu. Havia algo de estranho no jeito que ela andava, o que me deixou intrigada. Dei tchau para Miguel e fui atrás dela.

Já estávamos quase na calçada no colégio quando ela parou e se virou para mim. Eu nunca tinha visto ela com tanta aflição! As mãos tremiam e os olhos faiscavam por trás das lágrimas.

"Magrí, você ainda ama o seu ex-namorado?"

Esqueci de te dizer o quão direta Dani é! A pergunta me pegou completamente desprevenida e eu não soube o que responder na hora. Mas ela nem deixou eu falar.

"Não importa. Se ele sair daquele hospital vivo, eu juro que eu mato!"

"O-quê?! Hospital? Como assim? Crânio está no hospital?"

"Aquele inútil, arrogante e cabeça oca!! Eu juro que eu vou..."

Eu segurei os ombros dela para que ela me ouvisse. Dani estava muito nervosa e agitada soando muito incoerente. Minhas pernas estavam trêmulas, mas alguém precisava manter o controle de si.

“Meu irmão está morrendo”.

Eu achei que eu ia cair no chão de tão assustada que fiquei. Mas eu não poderia detê-la mais e deixei-a ir. Eu a fiz me prometer ligar assim que tivesse uma novidade sobre Crânio. Você não sabe o estado de aflição que eu estou; graças a Deus já entreguei e apresentei o trabalho de Biologia na feira antes de saber dessa notícia triste.

Assim que eu tiver novidades eu te escrevo, querida Peggy. Agora mal consigo segurar a caneta sem tremer e borrar todo o papel -- reescrevi essa carta já umas três vezes.

Beijos,

Magrí

IV

São José dos Campos, 15 de dezembro de 1987

Querida Peggy,

Eu estou muito mais calma agora, não preocupe! Eu vi que você mandou um cartão de melhoras para Crânio e ele adorou por você ter lembrado dele. A ligação que fizemos foi tão cortada que não deu para eu te contar em detalhes o que aconteceu nos dias anteriores, então resolvi deixar isso para a carta.

Depois que vi Dani pela última vez toda vez que o telefone de casa tocava meu coração ia para boca achando que era ela, mas só tive notícias dois dias depois. Contei o que aconteceu com Crânio a Chumbinho e Calú e prometi aos dois que os manteria informados. Não consegui encontrar uma oportunidade de contar a Miguel, mas Chumbinho me garantiu que ele sabe e que estava muito preocupado -- diz ele que nunca tinha visto Miguel tão pálido. Sei que a situação é muito ruim, porém há um ditado que dizemos aqui que há males que vem para o bem… Se pudermos tirar um bem disso, Peggy?

Agora sim posso te contar em detalhes como Crânio foi parar no hospital.

No último ano, Crânio se dedicou 100% ao programa de jovens talentos do ITA e ao trabalho de monitoria para alunos do ginásio de uma escola local ensinando matemática para se manter na cidade. Dani me contou que ele ficou tão obcecado em entrar para o instituto que ele virava noites estudando; não se alimentava direito por dias, do tipo não comer, você acredita?! E imagine fazer isso por meses?

Pois é, foi o que ele fez. Dani contou que até mesmo os colegas de Crânio começaram a se preocupar com a falta de sono e alimentação e o stress em que ele estava, mas os pais dele e nem Dani tinham ideia do que estava acontecendo já que ele omitia isso das cartas. Até que chegou um ponto que ficou insustentável e ele começou a passar muito mal no apartamento em que ele estava morando.

O colega que dividiu o apartamento com ele, Felipe foi quem o ajudou. Felipe o levou para o hospital de pronto atendimento mais próximo que tinha e ficaram lá por horas. De início, os médicos acharam que era um problema simples de resolver, mas depois quando viram que Crânio não reagia aos medicamentos, o hospital resolveu transferi-lo para ser internado. O problema é que ele não tinha 18 anos completos (Felipe já era de maior) e o hospital exigiu a presença dos pais de Crânio.

Felipe ligou para casa de Crânio, mas quem atendeu foi Dani. Ela já estava preocupada por Crânio não ter respondido minha carta, mas imagine o choque dela com a notícia. Ela só teve tempo de avisar os pais e precisava voltar para o Elite para entregar um trabalho antes de ir para São José dos Campos -- foi nessa hora que eu a encontrei enquanto falava com Miguel.

Passei alguns dias esperando que ela me ligasse, e por fim ela me telefonou dizendo que Crânio estava reagindo ao tratamento. Na verdade ele tinha desenvolvido uma pneumonia muito forte que não tinha sido tratada como deveria, justamente pelo relapso dele com a própria saúde. Junte isso a falta de alimentação e sono não me surpreende o estado em que ele ficou.

Quando Dani me ligou ela me surpreendeu com um pedido.

“Você consegue passar aqui no hospital?” disse de forma tímida “Ele vive perguntando de você, até quando está sob os efeitos dos remédios… E ele sempre faz aquela cara de culpa com remorso que me dá muita pena….”

Engoli em seco e senti meus olhos encheram d’água. Não poderia negar esse pedido, por mais magoada que eu estivesse com Crânio. Não foi difícil convencer os meus pais a autorizaram que eu fosse (junto o sr. Nicolas nosso motorista) e em algumas horas eu já estava na recepção do hospital. Dani já estava me esperando. Os pais de Crânio estavam almoçando e não demorou muito para que eu entrasse no quarto onde ele estava -- ela tinha autorização dos médicos, mas eu não poderia demorar muito.

O quarto estava com as cortinas abertas e a claridade da tarde disfarçava um pouco da palidez de Crânio. Ele estava acordado e parecia já estar me esperando. Eu me assustei um pouco em como ele tinha emagrecido e quão cansado ele parecia. Sentei na cadeira ao lado da cama e ele estendeu fracamente a mão para mim. Eu o segurei.

Naquela hora todas as lágrimas que eu tinha prometido que eu não ia derramar na frente dele vieram como uma enxurrada. Acho que eu nunca chorei tanto na minha vida. Crânio continuou segurando minha mão e ficou tudo ao contrário, pois ele que estava me consolando.

Quando, por fim, eu me acalmei eu sussurrei irritada:

“Se você fizer isso de novo, eu juro que vou deixar a Dani te bater!”

Ele riu e eu nunca fiquei tão feliz em vê-lo sorrir de novo. Ao menos seu humor arrogante ainda estava intacto.

“Já fiz mil promessas que eu seria mais sensato daqui para frente. Mas não posso morrer agora, sou muito jovem para isso e eu ainda não ganhei o Nobel”.

Ficamos alguns minutos conversando sobre os dias que antecederam a internação dele. Dei não sei quantas broncas pela falta de cuidado com a saúde e por ele não ter ido ao pronto-socorro assim que percebeu que havia algo de errado. Se fosse em qualquer outra ocasião ele teria revirado os olhos, mas pelo o que eu pude perceber, toda a aflição que ele causou na família não era algo a se desprezar.

Quando ficamos em silêncio por alguns instantes, Crânio olhou para mim com aquela veneração que fez que eu percebesse há quatro anos que ele me amava de verdade (mesmo que eu não tivesse completamente consciente que eu sabia). Ele beijou minha mão.

“Eu nunca imaginei até agora o quanto eu poderia ser obsessivo a ponto de por minha própria vida em risco. Eu não sei o que eu queria provar… parece que eu entrei numa competição comigo mesmo. Quando eu cheguei aqui eu não estava completamente consciente, mas eu lembro de ter pensado em você e eu fiquei apavorado ao pensar que eu ia morrer sabendo que você me odiava…”

Eu quase fiz uma coisa bem estúpida que me levaria a tomar uma bronca da enfermeira que estava passando pelo corredor e espiou pela janela do quarto. Você imagina o que é, Peggy e eu sei que você está rindo de mim enquanto lê, mas eu quase o agarrei ali mesmo com fio e tudo.

Porém, eu sou mais sensata que isso e apenas aproximei mais a cadeira para que só ele ouvisse. Parecia que ele estava pensando no que me disse há muito tempo.

“Eu nunca te odiei, seu besta! Por mais que você tenha me magoado por ter me abandonado, eu não te odiei nem por um minuto. Acho… acho… “eu parei e refleti um pouco. “Acho que estávamos precisando de um tempo, tanto eu quanto você”.

Ele acenou em compreensão e ficamos em silêncio de novo, mas não um silêncio constrangedor, mas sim amigável. Achei que ele tinha cochilado por alguns minutos até sentir ele se mexer.

Eu estava esperando que ele ia me dizer qualquer coisa, porém (como sempre) ele me pegou de surpresa. Ainda me lembro exatamente das palavras, da expressão dele… Das luzes natalinas que Dani tinha posto no quarto (“para tirar o ar de necrotério” como ela tinha dito a mim), enfim de tudo.

Gostaria de ser uma Cecília Meireles nessas horas (ela é uma poetisa brasileira muito famosa) para saber descrever tudo com exatidão e lirismo. Mas não sei, não nasci para ser escritora, infelizmente. Não sei se era o remédio que estava fazendo efeito, não sei se ele achou que estava sonhando, mas ele me disse:

“Eu nunca parei de te amar, Magrí”.

Eu abri um sorriso enorme e olhando rapidamente para ver se ninguém estava passando no corredor, e dei um leve beijo na testa dele.

“Eu sei. Amo você, muito mesmo. Mas temos ainda tantas coisas para resolver entre nós… Mas agora descanse. Teremos tempo depois”.

Crânio sorriu e por fim dormiu. E agora estou aqui no restaurante depois ter almoçando te escrevendo essa carta. Ah Peggy, como as coisas podem mudar tão rápido! Mas me sinto mais tranquila, uma sensação que eu não sabia o que era desde… não me lembro.

Provavelmente quando essa carta chegar até você já vai ser Natal. Então, feliz natal, querida Peggy! Que todos os seus sonhos se realizem e muito obrigada por ser minha melhor amiga! E que o ano-novo que se aproxima seja maravilhoso!

Mil beijos,

Magrí


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Notas finais do capítulo

Feliz Natal!



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