Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 43
Cordialmente, um Kara – 1986 e 1987


Notas iniciais do capítulo

N/A: Texto itálico corresponde às cartas, texto normal corresponde ao narrador.



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Troca de cartas dos ex- Karas datadas entre 1986 e 1987. A maioria foram enviadas para a Peggy McDermott e foram encontradas num velho baú da garota (essas cartas foram traduzidas com algumas omissões). O conteúdo de algumas cartas acabou se oxidando pelo tempo e os textos ficaram ilegíveis. Possíveis erros de redação foram preservados.

 

I

São Paulo, 12 de dezembro de 1986

Querida Peggy,

Não vejo a hora de nos reencontrarmos depois de tantos meses longe uma da outra. Tenho tantas coisas para te contar e desabafar que talvez vamos precisar virar a noite conversando (para o desgosto das nossas treinadoras!). Foi com muita dificuldade que consegui parar para responder a sua última carta.

Este último ano foi o mais conturbado da minha vida e estou agradecida que finalmente ele está terminando. Dá para acreditar que ano que vem eu estarei me formando? Estou feliz, é claro, mas você sabe também que essa felicidade tem um gostinho muito amargo.

Respondendo a sua pergunta, Crânio e eu não estamos nos falando muito. Ainda doí pensar naquilo e no que ele me disse. Sei que lá no fundo ele tem um pouco de razão, porém não consigo deixar de pensar que é injusto para comigo. Ah Peggy, será que estou sendo egoísta de querê-lo para mim ignorando os sentimentos de Miguel? Mas depois eu me sinto horrível por feri-lo e magoá-lo mais do que já magoei. Ele só gritou com Crânio na ocasião, mas eu acho que ele deveria ter gritado comigo também, talvez eu me sentiria menos horrível.

Mas no fundo eu sei que ele ainda se importa comigo, porque no último jogo do campeonato de vôlei eu te contei que eu bati o joelho com muita força e fiquei mancando por alguns dias. No dia seguinte, após a partida, esbarrei nele no corredor e ele me perguntou do meu joelho, e se eu tinha certeza que poderia jogar a próxima partida. Eu ainda estava com muita raiva (e acho que ainda estou) porém ele estava com aquela carinha dele de cachorrinho abandonado que eu quase fiz uma grande estupidez como agarrá-lo ali no mesmo corredor…

Claro que não fiz isso (fiquei muito tentada!) e contei que eu estaria melhor até o próximo jogo. E melhorei mesmo, só precisei tomar cuidado para não forçar demais e estou até agora colocando uma compressa de gelo antes de dormir.

Você perguntou do Miguel na sua última carta... Bem, a última vez que eu conversei foi brevemente após a vitória que teve nas eleições do Grêmio. Foi muito constrangedor e mal conseguíamos olhar na cara um do outro. Ele foi muito formal e frio e parecia querer sair correndo de perto de mim como se eu fosse uma espécie de fantasma — bem talvez eu seja mesmo.

O que mais me machuca em tudo isso, querida amiga, são aqueles pensamentos que me vêem à tona (principalmente quando estou de TPM!) de que eu estraguei uma amizade tão bonita e que os Karas se separaram por minha culpa. Eu sei, você vai dizer que estou sendo dura demais comigo mesma, mas você também pensaria o mesmo ou não? Isso já aconteceu antes (você ainda não fazia parte do grupo) e eu fiquei em tanta aflição que eu não conseguia me olhar no espelho. Agora está sendo pior. Eu fico com pena do Chumbinho e do Calú. Eles até tentaram colocar um pouco de senso na cabeça daqueles dois, mas não adiantou -- são mais teimosos que uma mula!

O que eu faço, Peggy? Eu preciso fazer alguma coisa antes que eu enlouqueça...

Junte a isso, querida Peggy, e a minha frustração com os cravos que andam aparecendo no meu rosto. Não tem maquiagem que cubra esses benditos! Você tem alguma receita ou produto especial aí? Eu te pago depois quando você chegar no Brasil.

Ainda não sei se vou mesmo fazer aquele intercâmbio no EUA no próximo ano. Mas seria legal ficarmos mais perto uma da outra...

Da sua querida amiga,

Magrí

II

São Paulo, 13 de dezembro de 1986

Querida Peggy,

Obrigado pela sua última carta e confesso que fiquei surpreso em ver que você escreveu para mim… Não me leve a mal, é que eu não estava esperando receber uma carta sua. E não sei dizer se fiquei ou não surpreso sobre os seus questionamentos.

Respondendo diretamente a sua pergunta, é claro que eu ainda amo a Magrí, Peggy! Eu sei, eu sei você tem toda razão de estar zangada pela minha atitude, mas o que eu poderia fazer? Bom, pelo visto agora não tenho somente [trecho ilegível]

Foi tudo um grande desastre, Peggy. Eu não sei se a situação se resolveria de forma tão simples numa conversa (!). Eu quero muito sim que Miguel me perdoe, mas eu não posso forçá-lo a isso. Não teria como continuar o namoro com Magrí depois dessa, Peggy. Imagine se no meu lugar e da Magrí fosse você e o Calú? Vocês iam conseguir continuar juntos? Magrí está chateada porque eu fui um babaca quando conversamos na biblioteca, mas era a única forma dela entender…

Você conhece melhor do que eu (já que além de americana, namora com um ator) a seguinte linha do Bardo: “Mas se a vontade é grande, minha culpa é maior.”*. Salvo as devidas proporções (afinal, não cometi nenhum crime como o Rei Claudius) é bem o que eu estou sentindo ultimamente, ou seja, culpa. Magrí não tem culpa, sou eu que tenho. Sabe que antes de começarmos a namorar, eu e Miguel tivemos uma conversa? A minha intenção era contar para ele o que estava acontecendo e dizer que Magrí me amava também (não como amigo) e enfim, você sabe… abrir o jogo.

Mas eu me acovardei, Peggy. Fiquei adiando e levando a situação achando que não ia dar em nada. Miguel é um cara esperto e logo começou a suspeitar porque eu estava tão estranho com ele. Eu até tinha falado com a Magrí não se preocupar com Miguel porque eu lidaria com ele assim que possível… bem, vamos dizer que eu fiz uma grande merda.

Agora vem outra questão: é possível que ano que vem eu não [trecho ilegível]

Eu não sei explicar, mas eu quero muito fazer algo de útil -- se eu pudesse já estaria trabalhando, mas meus pais nem sonham com isso. Ano que vem também é o ano que vou ter que apresentar no Exército e seria muito curioso da minha parte dizer que eu estou ansioso para isso? Acho que ando inquieto.

Eu sinto que vou receber uma resposta bem brava de você, Peggy, mas acho que já estou preparado…

Abraços,

Crânio

III

São Paulo, 18 de dezembro de 1986

Minha gatinha,

Adorei receber sua última carta e devo lhe dizer que as suas frases em português estão muito mais entendíveis. Também sinto sua falta, meu bem, e fico com ciúmes só de pensar nesses caras da sua escola que ficam de olho grande para você!

Mal posso esperar para te ver de novo antes do Ano-Novo. Aqui está bem quente e ensolarado, muito melhor do que aí nos EUA, não acha? Eu realmente tive um sonho tão lindo com você, começava assim [Trecho ilegível por uma mancha].

[...]

Enfim, o último ano da escola foi bem agitado, como você deve ter imaginado. O Elite ainda não se recuperou de toda a crise econômica, sendo assim a temporada de Romeu e Julieta foi cancelada no início do ano, mas conseguimos fazer algumas apresentações esporádicas agora no final do ano. Minha mãe tirou muitas fotos da noite de estréia, e já que você vive pedindo uma foto minha, eu vou enviar junto com a carta uma foto vestido de Romeu no camarim -- já que eu sou o seu Romeu…

Realmente, gata, Crânio e Magrí estão deprimidos, não é somente impressão sua pelas cartas que eles enviam. Vejo os dois quase todos os dias e eles andam muito para baixo -- Miguel não está muito atrás, apesar dele conseguir disfarçar melhor, mas eu conheço o “chefão”. Eu e Chumbinho passamos o resto do ano tentando colocar um pouco de bom senso nesses três, mas foi tudo em vão. Falando no Chumbinho, ele te contou que a Natália está dando bola para ele? Mas não fala que fui eu que falei! Se não ele vai me chamar de dedo duro, mas é verdade, ela até deu um selinho nele hehe.

O que eu dizia? Ah sim, aqueles três teimosos. Se você acha que conversando com eles vai resolver? Hum não sei, sendo sincero… Pode ser que eles te escutem, mas não quero que você fique decepcionada. Eu praticamente desisti por um tempo, não sei quanto ao Chumbinho.

Eu conversei com os meus pais sobre o que vai ser da minha vida ano que vem e o meu desejo de prestar a prova de Artes Cênicas para a Universidade de Nova York. Eles não ficaram tão felizes, eu já percebi de cara. Não só o fato de eu ir embora, mas de eu realmente levar a sério a carreira de ator. Eles têm medo que eu me decepcione ou perca tempo, já que você sabe, não são todos os atores que são bem sucedidos.

Eu entendo o lado deles, é claro, mas eu queria que eles tivessem mais confiança em mim. Óbvio que eu não espero conseguir o meu primeiro papel profissional logo como protagonista de um filme do Spielberg (seria irado!) ou um papel de destaque num musical da Broadway (sempre quis fazer Cantando na Chuva, porque não? Se você pode até duvidar das minhas habilidades como cantor num musical, mas você não reclamou quando eu cantei “Heaven” do Bryan Adams no seu ouvido da última vez que nos vimos, né?)

O que eu tenho mais para falar, prefiro dizer pessoalmente. Mal posso esperar!

Do amor da sua vida

Calú

 

IV

Nova York, 02 de fevereiro de 1987

Querida Peggy,

Eu cheguei em Nova York na noite de ontem, mas estava tão cansada que só consegui te enviar aquele telegrama escrito às pressas para você saber que eu estava sã e salva no hotel. Fiquei tão feliz por esse quase um mês que você ficou no Brasil! E agradeço de novo pela “carona” e estadia nos Estados Unidos antes de começar o ano letivo. As últimas semanas juntas foram ótimas, e você conseguiu realmente me distrair e entreter -- poderia dizer que eu quase fiquei completamente feliz! Ainda fico pasma em como você conseguiu ir e voltar de forma incógnita. Foi muita sorte que ninguém te reconheceu no Brasil.

Eu sei, eu sei. Eu não deveria ter escrito um bilhete para ele, mas eu não podia ir embora por meses sem nem ao menos me despedir. Mas ele foi muito gentil e mandou um bilhete com uma caixa de bombons me desejando boa viagem e bons estudos. Fiquei surpresa, não nego, mas achei o gesto muito doce da parte dele. Ok, não estou mais com raiva, admito! Mas sinto saudades e isso dói.

Acho que vou me dar bem na escola, mas seis meses é bastante tempo. Prof. Iolanda ficou contente e ao mesmo tempo preocupada com a minha ausência do Elite por causa da ginástica, mas prometi que continuaria treinando por conta própria.

Claro que vou ficar muito feliz de te visitar no próximo feriado! Já estava pensando no que ia fazer sozinha nessa cidade enorme -- provavelmente [parágrafo manchado].

Desculpe não me alongar na carta, mas prometo escrever mais da próxima vez.

Da sua querida amiga,

Magrí



Curto telegrama

São Paulo, 05 de fevereiro de 1987

Magrí,

Não consegui me despedir de forma apropriada na sexta-feira antes de você pegar o vôo para Nova York. Desejo uma excelente estada nos Estados Unidos.

Cordialmente,

Miguel

V

São Paulo, 14 de fevereiro de 1987

Querida Peggy,

Você tinha razão, a sua carta chegou mesmo no Dia dos Namorados (na América do Norte!). Calú estava do meu lado no corredor da escola enquanto eu lia a sua última carta, e ele fingiu que estava enciumado -- eu não sei como você o aguenta. Ele ainda está aqui bisbilhotando enquanto escrevo a minha resposta.

Magrí falou dos bombons? Bem, eu fico feliz. Obrigado por ter sugerido o que escrever no bilhete, porque eu nunca fui muito eloquente com a minha própria correspondência. Sendo franco, sou bem desleixado e agradeço pela paciência em esperar minhas respostas longas e confusas.

Calú não para de perguntar o que eu estou escrevendo para a namorada dele. Devo responder que estou fazendo sessão de terapia gratuita via correios? Brincadeira! Mas não deixa de ser verdade. Você tem me ajudado muito a entender a mim mesmo nos últimos meses. Apesar de eu ainda me sentir péssimo pelo o que aconteceu, estou tentando pôr as coisas em perspectiva.

Não vou negar para você que a viagem de Magrí me deixou triste, como você adivinhou (espertinha!). Bom, qualquer pessoa diria que não é da minha conta já que não estamos mais juntos, mas eu não posso deixar de me importar. Como vai estar quando voltar? Será que fará novos amigos? Ou quem sabe… (Calú está mandando eu parar de ser idiota).

Estou bem, não se preocupe comigo. E sim, estou pensando seriamente no que você disse, de verdade. Meses antes eu não consideraria tal coisa -- não teria a coragem. Agora vejo que estava sendo covarde. Assim que eu me decidi, você vai ser a primeira a saber (se o Calú não ler minha carta antes. Sério, seu namorado é um bisbilhoteiro!).

Trecho interrompido pela letra de Calú:

Do que vocês estão fofocando? Eu quero saber! E que história é essa de terapia?!

Letra de Crânio

Virei dois segundos para ajudar a Sra. Morcego aqui na biblioteca e vejo que o Calú rasurou minha carta, desculpe por isso! Ele continua me olhando feio do outro lado da mesa (como se eu ligasse…)

Não lembro o que eu dizer, então encerro por aqui.

Abraços,

Crânio

VI

São Paulo, 20 de fevereiro de 1987

Queridíssima Peggy,

Eu fiz exatamente como você me pediu na sua última carta! Você acha mesmo que vai dar certo?! Não foi fácil escrever aqueles bilhetes e enganar Miguel e Crânio! Se não fosse pelo Calú, eu acho que eu não teria conseguido (minha letra é um horror). Agora só nos resta torcer para ver se esses dois criam um pouco de juízo -- me sinto tão adulto falando assim! Parece coisa que minha mãe diria…

Você perguntou como andam as coisas por aqui, e devo dizer que estão bem, mas ando muito entediado. Sem as reuniões dos Karas, tudo por aqui não Elite não é divertido. Eu esqueci de mencionar na última carta que Miguel veio conversar comigo há duas semanas (isso antes de eu fazer aquilo lá que você falou). Foi estranho e engraçado -- não sabia quem estava mais sem graça… Mas ele me pediu para ajudá-lo com algumas obrigações do Grêmio! Imagina, vou ser o “braço direito” dele. Tenho pelo menos isso para se animar, já que não consigo ver mais a Natália… Ela está muito ocupada com os treinos e como é o último ano dela…

Não quero nem pensar quando todo mundo se formar e eu ficar por aqui ainda. E eu penso que Natália me acha muito novo para ela. Bem, eu cresci cinco centímetros do ano passado para cá, eu não tenho mais cara de bebê, tenho?

Com carinho

Chumbinho

VII

São Paulo, 26 de fevereiro de 1987

Queridíssima Peggy,

Tenho muitas coisas para lhe contar, desculpe o [trecho ilegível].

Agora sim posso começar! A “reunião” de Crânio e Miguel foi… curiosa. Como eu estava lá, os dois não sabiam onde enfiar a cara! A última vez que eu vi o Crânio tão vermelho foi quando eu disse (sem querer) que eu vi o beijão dele com a Magrí atrás do hospital! Não diga que eu contei!

Como eu dizia, lá estavam os dois e eu fui o seu porta-voz (acho que consegui gravar todo o grosso da conversa de cabeça, vou tentar te passar). Além de outras coisas, eu disse (ou “disse eu? se a professora de redação ver essa dúvida minha, vou tomar um esporro!):

“A questão não é somente os Karas, o grupo secreto era o menor dos problemas. O que eu, Peggy e Calú queremos ao menos é uma conversa pacífica entre vocês dois”.

Miguel me olhou com uma cara meio estranha e enquanto o Crânio continuava calado e pensativo. Por um momento achei que o gato tinha comido a língua dos dois e íamos ficar ali naquele silêncio constrangedor até cair a noite na sala de jogos. Finalmente, Crânio disse mais ou menos isso:

“Você nos enganou direitinho, Chumbinho. Achei mesmo que fosse uma emergência com o Calú”.

“Calú está bem”, eu respondi  “e ele nem sabe que estamos aqui”, eles vão me perdoar pela mentirinha. Calú estava ouvindo tudo do outro lado da porta!

Acho que ele desconfiava do seu dedinho nisso, Peggy! Nada passa despercebido para Crânio – ele gosta de fazer jus ao apelido, tem um faro tão bom para essas coisas como Magrí.

Miguel parecia concentrado em alguma coisa e evitava olhar para nós (e adivinha para quem em particular?) mas parecia muito envergonhado e juro que vi ele ficar vermelho também.

“Espero que esteja bem, Crânio”, Miguel falou tão baixo que mal escutei “Ouvi que vai deixar o Elite. É verdade?”

Imagine a minha cara quando ele disse isso! Sim, Peggy talvez você já saiba – Calú é um tagarela – mas Crânio vai mesmo embora do Elite esse ano! Embora de vez, não vai voltar! Eu fiquei chocado e senti o meu estômago afundar! Você e Magrí no EUA (tudo bem que com Magrí são apenas seis meses) e agora Crânio deixando a escola!

“Como assim?! Que história é essa, Crânio?! Você ainda tem um ano para terminar! Como você vai se formar? Tudo bem que você é inteligente para caramba e tal, mas...”

Eu estava p% da vida, Peggy!

“Não é isso, Chumbinho. Eu fiz a prova nacional dos estudantes que desejam concluir o Ensino Médio e bem... eu fui o 1º colocado na classificação”.

Eu estava tão chocado que parecia que alguém tinha me batido. Ainda não tenho certeza se ouvi mesmo o Miguel dizendo baixo com riso na voz “novidade, mas devo ter sonhado acordado. Ele deu um parabéns para Crânio que apenas acenou. Eu fiquei muito frustrado! Quem é termina o Ensino Médio mais cedo?! Sério, às vezes o Crânio me assusta!

Eles trocaram um diálogo “amigável” mas sem importância sobre escola e faculdade. Dava para fingir que eles nem tinham brigado ano passado, mas a tensão ainda estava lá, dava para perceber logo de cara. Bom, pelo menos eles deram um breve aperto de mão, mas fazer as pazes mesmo como queríamos... não rolou. Os dois estavam frios, distantes e alheios, pareciam que estavam fechando um negócio do que uma conversa de amigos.

Bem... em comparação em como as coisas estavam ano passado, foi um avanço. Duvido, porém, que eles vão continuar se falando ou que a antiga amizade voltou. Me preocupo com Magrí também.

Antes dela ir para o EUA, eu conversei com ela por um longo tempo e ela me disse algumas coisas que me deixou triste. Perguntei sobre o término do namoro com Crânio, e ela ficou muito mais abatida. Me disse que estava arrependida de ter gritado com ele, mas agora via que ele tinha razão. Perguntei se eu poderia ser sincero com ela e ela disse que sim. Daí eu falei algo assim: “Não acho que vocês dois ficando separados vai trazer os Karas de volta”.

Ela me olhou com um grande olhar de derrota, o mesmo olhar de quando ela voltou do EUA às pressas para encontrar os Karas separados no caso da droga do amor. Parece que dessa vez foi mais feio e a coisa apenas se inverteu – ela foi o EUA depois, quero dizer. Ela me respondeu assim, algo que realmente não esqueci:

“A culpa nos mantém separados”.

Pois é, Peggy... Eu estou sem palavras até agora.

Caramba, essa é a minha primeira carta que dá 2 páginas! Nunca escrevi uma carta tão longa! Não se acostume, porque eu levei três dias para escrever – eu sou muito lento e precisei passar o meu garrancho a limpo. Não é todo mundo que tem uma letra bonitinha como a sua, Peggy!

Com carinho

Chumbinho

VIII

A carta a seguir foi encontrada num pacote de extravio dos correios indicando que nunca chegou ao destinatário. Alguns trechos se perderam após a carta ter sido amassada por acidente.

São Paulo, 25 de março de 1987

Querida Magrí,

Eu não sei porque estou escrevendo essa carta, não deveria na realidade. É tarde da noite e estou sem sono. Nada do que eu faça convence meu cérebro a dormir, então resolvi escrever para você. Provavelmente vou me arrepender pela manhã quando postar essa carta nos correios e você vai me odiar depois que terminar de ler, porque eu vou tornar a sua vida mais difícil.

Eu te amo muito, Magrí e isso não tempo não amenizou. Eu penso em você todos os dias, eu sinto sua falta todos os dias. Toda vez que eu passo nos corredores do Elite e não escuto a sua voz risonha, ou atravesso o ginásio e não te vejo mais pulando e saltitando eu sinto uma dor no peito. Não consigo deixar de pensar que parte da razão de você ter ido para o EUA por tanto tempo é para se afastar de mim. Eu entendo e não te culpo. Mas eu não posso andar no Elite ou no Parque do Ibirapuera sem ter uma lembrança sua – e isso está insuportável.

Por isso que eu deixei o Elite e me esforcei para passar naquela prova. Já estou me mudando para São José dos Campos e acho que vou gostar da cidade, é muito bonita. Mas eu não vou te esquecer, Magrí, disso eu tenho certeza.

Eu espero de todo o meu coração que você esteja feliz, se divertindo, fazendo novos amigos e tendo uma temporada muito mais agradável. Não pense que quero vê-la lamentando por mim, ao contrário – quero vê-la mais feliz do que nunca. Eu posso viver em agonia, mas você não, não permita isso.

O que quer que aconteça nas nossas vidas daqui para frente, saiba que você é a garota mais dócil, boa e gentil que eu já conheci e não há nenhuma substituta para você em meu coração.

Cordialmente,

Crânio

 

*Hamlet, Ato III Cena III - Shakespeare (Tradução de Millôr Fernandes).


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