Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 39
Nuances do Eufemismo - Parte II


Notas iniciais do capítulo

Este conto é um dos mais importantes da fic.

Boa leitura!



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— Eles votaram não, Miguel! O Conselho votou contra a festa! Você tem que fazer alguma coisa!

Se há cinco minutos Miguel estava quase sufocando com as próprias emoções tumultuosas, agora o rapazinho sentia o sangue pulsar nas veias — as veias de um Kara — para partir para a ação imediatamente. Mas o seu lado egoísta iria se dar por vencido tão facilmente, pelo contrário, o adolescente mimado queria suprimir o garoto com princípios de um homem bem crescido. Naquela batalha em específico, o lado mais mesquinho de Miguel venceu. 

A expressão dele tornou-se fria e reservada quando se dirigiu a um Chumbinho muito aflito:

— Não posso fazer nada, Chumbinho. Eu já disse isso a você e expliquei os meus motivos.

— Você não pode estar falando sério, Miguel! Tem que haver alguma coisa que você possa fazer! O que será do Elite?

Os dois estavam tão absortos que quase se esqueceram da presença de Dani. A garota pigarreou:

— Chumbinho tem razão, Miguel. Não é possível que a sua influência não possa fazer alguma coisa. Por que a relutância?

— Por causa das eleições idiotas — respondeu Chumbinho bufando sem dar tempo de Miguel responder — Ele acha que isso vai atrapalhar a candidatura dele.

Dani franziu o cenho e encarou Miguel com uma expressão que o rapazinho não gostou de ver, mas não sabia dizer a razão. O que quer que fosse fez com que ele corasse.

Chumbinho estava tão indignado pela situação — pela recusa do conselho e pela inércia de Miguel — que ele não conseguia ficar parado no mesmo lugar. Precisava fazer alguma coisa, por mínima que fosse.

— Eu vou atrás da Magrí e dos outros — decidiu ele num tom desafio para Miguel — E tenho certeza que teremos um plano.

E saiu pisando duro de um jeito completamente atípico dele. Contudo, os ombros do garoto caíram quando se virou de costas e encarou Miguel com uma expressão triste desferindo:

— Por favor, Miguel. Não seja uma decepção para mim.

Se Chumbinho tivesse dado um soco em Miguel teria doído muito menos. A mente do garoto clareou um pouco, calando a voz egoísta que gritava para ele dizendo que continuasse com a atitude indiferente. Chumbinho contava com ele e sempre o admirou como um líder e irmão mais velho. A aprovação dele para com o seu comportamento era algo que até então Miguel não imaginava o tamanho da importância e consideração.

O garoto despertou dos pensamentos turbulentos com a voz raivosa de Dani ao seu lado.

— Eu não acredito que você não vai ajudar no projeto por causa dessas eleições idiotas, Miguel!

O líder dos Karas se assustou com o tom e a audácia da garota em se dirigir a ele daquela forma tão petulante. Dani comprimia os lábios numa linha fina e apertada, enquanto os olhos faiscavam para ele.

— Tô nem aí se você me chamar de intrometida ou que quer que seja! Você está sendo um... — ela parou abruptamente. Miguel teve a sensação de que ela iria xingá-lo com um palavrão — Um grande idiota.

Ele rebateu com raiva, cansado de fazer pose de centrado e controlado:

— Sim, tem razão. Você não tem a ver com isso. Não fique no meu caminho.

O garoto não queria dizer aquilo, mas saiu como se alguma força maligna tivesse tomado controle da própria boca. Dani deu um leve passo para trás de susto pelas palavras duras, porém aquilo não fez com que perdesse a coragem — ao contrário, pareceu que lhe deu mais coragem, mas Miguel não esperava ouvir o que ouviu:

— Desculpe senhor Oh eu sou o presidente da p*%¨* do Grêmio estudantil e todo deve lamber o &¨%$(... — aqui Miguel corou furiosamente e arregalou os olhos — Vá para a $@* tá entendendo? Não imaginava que você fosse um egoísta de merda que só pensa no $#*& de cargo! Enfia esse seu cargo no...

Miguel colocou a mão na boca de Dani calando-a. A garota tentou se desvencilhar dele, mas Miguel era mais forte. Ela se debatia de forma furiosa, mas em vão.

Os dois sabiam que estavam fazendo uma cena no estacionamento do Elite. Ele arrastou a garota com delicadeza pelo braço para um canto que não havia muito gente tentando clarear os próprios pensamentos.

Por mais raivosa que estivesse, Dani tinha razão no que disse (incluindo os palavrões....) mas Miguel precisava lidar com o tumulto dentro de si sozinho sem ninguém gritando com ele (por mais que a vermelhidão do rosto dela a deixasse flamejante. E aquilo era um elogio...).

Por fim, ele a soltou e ela se acalmou. Continuava extremamente vermelha e parecia um pouco sem graça, mas os olhos faiscantes ainda estavam cravados em Miguel de forma acusatória. O rapazinho passava as mãos no cabelo de forma nervosa. Dani ficou em silêncio e parecia ter se dado conta do que fez e o rubor tornou-se de vergonha.

— Eu não queria falar assim, eu… — ela parou e baixou os olhos — Esqueça tudo o que eu disse.

Por mais que tentasse, Miguel não estava com raiva dela. Ainda sim os pensamentos não estavam claros e ele se sentia zonzo. Começou a falar sem pensar, como se quisesse tirar da cabeça as coisas que o perturbava.

— Dani, você já se sentia como uma impostora bem cretina?

A garota arregalou um pouco os olhos e acenou. Era a primeira vez que via Miguel falar com tanta franqueza perto dela.

— Sim, já. Muitas vezes… — ela estava quase sussurrando — É assim que você se sente?

Miguel balançou a cabeça num sim triste. Ele se espantou com a própria sinceridade com aquela garota que mal conversava. Mas de uma coisa tinha certeza: nenhuma outra garota que conhecia seria tão franca com ele a ponto de xingá-lo com um monte de palavrões como Dani, nem mesmo a amada Magrí. 

Lá no fundo da sua mente, um tempo depois de tudo aquilo, Miguel entenderia que era exatamente aquela qualidade, em questão de caráter, que ele mais buscava no sexo oposto. Naquele momento, porém, Miguel só queria bater a cabeça na parede, ou sumir da cidade por seis meses.

— Às vezes eu acho que sou uma farsa, Dani, que tudo que eu faço é somente pose e atuação. Eu acho que eu tenho vivido assim nos últimos tempos.

Dani franziu o cenho.

— E não vê aquilo que está bem à sua frente — ela murmurou para si mesma sem se importar se ele ouviu ou não.

Miguel ouviu, mas não entendeu o que ela quis dizer (não ali naquela hora, pelo menos).

— Olha, eu não sei bem o que você está sentindo — começou ela de forma cautelosa — Mas o que eu e o meu irmão fazemos quando estamos zangados um com o outro é dizer a verdade e o que estamos pensando sem medo.

Miguel queria rir pela ironia do que ela disse. Duvidava que somente dizer a verdade para Crânio fosse resolver o problema…

— Obrigado — disse de forma sincera — Talvez isso ajude.

Dani acenou e arrumando a alça da mochila para ir embora, disse:

— Ah outra coisa: não é justo as outras pessoas pagaram pelas nossos problemas. O Elite precisa de você.

E saiu deixando um Miguel desconsolado.

***

Na manhã seguinte, Crânio estava sentado sozinho no refeitório tentando resolver uns exercícios de matemática sem sucesso. A mente viajava longe com os problemas do Elite e dos Karas. Mais do que isso, pensava com preocupação sobre Magrí e Miguel. Como ela não percebeu o que estava realmente acontecendo? Como Miguel podia ser tão egoísta aquele ponto? O que deveria fazer? Como que um projeto modesto de vender pizzas se transformou num drama?

Alguém se sentou ao seu lado de forma suave. Sentiu o perfume que bem conhecido e nem precisou levantar os olhos para saber que era Magrí sentada ao seu lado. Ela passou pela mesa uma folha de jornal para os olhos de Crânio. Percebeu que ela fungava. Havia uma chamada logo na página inicial do jornal:

Principal colégio particular de SP anuncia falência

Logo abaixo vinha uma longa reportagem sobre o Colégio Elite, sua história e seu possível fechamento em meio à ruína financeira. Havia uma breve entrevista com alguns professores e ex-professores sobre a situação do colégio, e a tragédia que o fechamento deste significaria para os alunos da cidade. A matéria dizia que o atual diretor não quis se pronunciar.

Crânio desviou o olhar do jornal com raiva. Até onde sabia, o Elite não tinha declarado falência de forma oficial, mas os jornais já dando como notícia certa naquele tom de pena que Crânio odiava.

— Esses jornalistas palhaços — resmungou raivoso — Não perdem tempo mesmo!

O rapazinho abraçou Magrí pelos ombros. Ela murmurou:

— Não há o que fazer, Crânio.

Um pensamento que tinha esquecido há muito tempo voltou à tona na cabeça de Crânio sobre a conversa que teve com a orientadora, que parece que foi há séculos. Mas ele empurrou para o fundo da mente, pois Magrí já estava triste demais com tudo aquilo.

— Ei, você é a otimista aqui, não eu — disse fazendo secando as lágrimas da bochecha dela — Esquece essa matéria idiota. Nós sabemos que nem tudo está perdido.

A menina deitou a cabeça no ombro do namorado e suspirou.

— Você acha? Eu estou tão desanimada depois da reunião do conselho que já estou perdendo as esperanças… — ela parou e em seguida levantou os olhos até Crânio — Acho que você tinha razão em relação ao Miguel.

Crânio ficou tenso com aquela afirmação. O rapaz estava surpreso por Magrí não ter chegado à conclusão que ele mesmo chegou — que as motivações de Miguel eram movidas por egoísmo e talvez… ciúmes. A idéia de proteger Magrí do sofrimento poderia ir ladeira abaixo. Tentou ser diplomático por mais que não concordasse com tudo o que falou:

— Olha, minha querida, eu estava muito bravo… — franziu os lábios — Mas talvez eu fui duro demais com ele. Ele nem deixei ele falar direito.

Magrí levantou a sobrancelha:

— Não, amor, você estava certo e era eu quem estava errada. Detesto ver vocês brigando, mas pensei melhor e vi que… Que Miguel simplesmente nos largou à deriva. Ele nos abandonou neste problemão, Crânio. Nosso líder, a pessoa que deveria estar nos guiando, nos deixou sozinhos.

— Quem nos deixou?

A voz e a forma de Calú se aproximaram da mesa onde o casal de Karas se encontrava. O jovem ator se sentou numa cadeira em frente a Magrí e Crânio.

— Estávamos falando do Miguel — respondeu o gênio dos Karas.

Calú franziu a testa e não parecia muito contente com os próprios pensamentos.

— Ele anda esquisito ultimamente, não acham? E o que foi aquela desculpa esfarrapada sobre as eleições para não ajudar na nossa campanha?

Magrí se agitou:

— Exato, Calú, era isso que estávamos falando. Deveríamos conversar com ele.

A idéia de conversar com Miguel de novo fez o estômago de Crânio embrulhar. Preferia subir o Monte Everest só com as roupas de baixo do que chamar o amigo para ter uma conversa que poderia acabar num verdadeiro desastre na amizade deles — se é que ela já não estava abalada de forma definitiva.

O fato de nunca terem conversado francamente desde a festa de quinze anos da Magrí, de nunca terem colocado em palavras o que sentiam um na cara do outro, deixava tudo muito pior. Sabia que o amigo não era dado às muitas palavras, assim como ele próprio — o trabalho de ser tagarela e falar o que pensava sem medo nenhum ficava para Magrí, Chumbinho e Calú. Mas superariam a covardia mútua e conversariam como dois homens crescidos? Ou ficariam naquele jogo de indiretas até morrerem?

— Eu converso com ele — disse Crânio tentando conter a careta — Vocês dois e Chumbinho continuem o que desejam fazer que eu cuido do Miguel.

Magrí se inclinou e ignorando que Calú estava presente, puxou o rapazinho por um rápido beijo.

— Obrigada, querido.

Os dois ficaram se olhando por alguns minutos com carinho e completamente alheios ao resto do mundo.

Calú fez um som entre a risada e reprovação para os amigos.

— Eu sei onde fica a chave do almoxarifado, vocês dois querem ir para lá?

Magrí e Crânio desviaram o olhar e ambos coraram que nem tomates. Crânio rebateu entre o riso e a raiva:

— Cala boca, Calú!

O ator dos Karas riu alto e pareceu se lembrar de alguma coisa que só fez aumentar o próprio riso. Levantou a sobrancelha de forma maliciosa para o gênio dos Karas:

— Eu esqueci de te parabenizar, Crânio, já que você me provou que não pensa só cientificamente e usa outras coisas para pensar.

Magrí franziu a testa sem entender do que Calú estava falando, mas o namorado ficou vermelho como um pimentão ao lembrar-se da conversa constrangedora que teve com o ator dos Karas no forro do vestiário no que parecia ser eras antes.

Crânio iria matar Calú quando o encontrasse sozinho na próxima oportunidade.

— Calú, eu juro que eu vou t…

A risada do garoto cortou a fala raivosa de Crânio. Ele jogou de forma despreocupada os vários panfletos que havia mandado fazer para a festa da pizza.

— Ah qual é, só estou brincando, Crânio!

— Do que vocês dois estão falando? — Magrí franziu o cenho — Enlouqueceram de vez? Vocês só andam escondendo as coisas de mim.

Calú não conseguia falar de tanto que estava rindo. Crânio se perguntou se deixasse o olho dele roxo por alguns dias faria algum mal a ele, já que não iria atuar por um bom tempo.

— Não queira saber, querida. É só o Calú sendo Calú.

Magrí fez um muxoxo e murmurou:

— Loucos, esses garotos são todos malucos.

Calú continuou falando como se nada tivesse acontecido. Parecia que nada abalava o bom humor de Calú, apesar dele também estar preocupado com as perspectivas do Elite.

— Tem muita gente disposta a ajudar a causa, Karas. Já até me perguntaram quando vamos começar a vender os ingressos para a primeira festa. O pessoal do teatro fez até uma lista só deles de reservas de pizzas!

— Isso é maravilhoso, Calú! — Magrí se animou — Quem sabe com o apoio de todos os alunos o conselho na próxima reunião não resolva aprovar a festa.

Calú continuou contando sobre as reações dos alunos do Elite para a festa quando Chumbinho se aproximou. O garoto parecia que não dormia duas noites.

— Tenho mais notícias sobre a reunião do conselho — disse de forma cansada enquanto se sentava ao lado de Calú — Os pais que fazem parte do conselho de classe vão participar e votar.

Calú franziu a testa:

— Queria ficar contente com isso, mas eu tenho a impressão que isso não vai nos ajudar muito…

— Depende das famílias — começou Crânio mais calmo do que estava cinco minutos antes — Nossos pais fazem parte do conselho e creio que eles apoiam a causa, certo?

Magrí estava mais preocupada:

— Sim, mas e os outros pais? Quem são eles? O que eles pensam disso tudo? Se ao menos pudéssemos falar com eles antes da reunião…

Os ombros de Chumbinho caíram mais ainda.

— Eu sei que os pais do Laerte fazem parte, mas só. Os outros são todos pais de alunos do ano de vocês.

Não precisavam dizer quem poderia saber quais eram os pais participantes do conselho. Sentiam cada vez mais a ausência de seu líder.

— Eu sei que os pais dos gêmeos Vieira fazem parte e são muito influentes no conselho — Calú fez uma careta — Se eles forem intragáveis como são os filhos estamos muito ferrados. Sabe o que a Heloísa e o Heitor Vieira disseram para mim? Que eles odiavam o Elite e esperavam que “esse buraco de escola fosse para o inferno”.

As expressões de preocupação se estampou no rosto deles. Crânio quebrou o silêncio:

— Bem… Espero que os Vieira sejam a minoria. Mas ouvi dizer que eles têm o diretor na palma da mão deles...

— Isso é péssimo! — Chumbinho exclamou — Eles podem influenciar os outros pais contra nós, Karas.

Calú pela primeira vez não falava em seu habitual tom animado:

— E o que vamos fazer?

Os quatro se entreolharam um procurando a resposta no olhar do outro, mas sem encontrar o que queriam. O que era para ser uma simples festa para arrecadar fundos estava virando uma bola de neve que explodiria a qualquer momento.

Crânio e Magrí se entreolharam. Os olhos da menina eram de súplica, enquanto os de Crânio eram puro temor.

— Acho que vocês podem continuar conversando com os alunos — começou Crânio tentando esconder a insegurança — A reunião do conselho está marcada para hoje à noite. Eu vou chegar um pouco tarde, mas não se preocupem comigo.

— O que você vai fazer, Crânio? — Chumbinho não escondeu a preocupação.

Crânio queria dizer mil coisas, mas se controlou para responder:

— Eu vou ter uma conversa muito difícil.

***

As aulas do dia chegaram ao fim e a reunião do conselho de pais e professores seria logo após o horário de saída dos alunos. Miguel saiu da sala de aula como se estivesse no piloto automático tentando não ouvir o zunido das conversas ansiosas dos alunos sobre o conselho daquela noite. Alguns colegas do Grêmio passou cumprimentando-o e perguntando se ele estaria na reunião, o que o rapaz respondeu numa negativa dizendo que tinha muita coisa para fazer. Os colegas não esconderam o espanto, mas não fizeram mais perguntas, o que ele ficou muito grato.

Antes que chegasse na saída do corredor, sentiu alguém tocar-lhe o ombro.

— Posso falar com você um minuto?

Antes mesmo de se virar em direção a voz, Miguel já reconheceu que era Crânio. O rapaz tinha uma expressão que o líder dos Karas não conseguia decifrar, mas que indicava, como se estivesse escrito em letras garrafais na testa do garoto “você está muito encrencado”.

Com um leve aceno de cabeça, Miguel abriu a porta de uma sala de aula vazia e entrou com Crânio logo atrás dele. O gênio dos Karas fechou e se encostou na porta com os braços cruzados sobre o peito e as sobrancelhas franzidas, como se Miguel fosse um dos problemas de física que o garoto não conseguia resolver. Aquele olhar escrutinador não era algo tão comum de Crânio. Ele só poderia ter aprendido a olhar daquela forma que o deixava constrangido com outra pessoa…

Até que por fim a ficha de Miguel caiu. Era justamente dela que iriam falar, era óbvio pela expressão de Crânio, que apesar de desafiadora, era uma cobertura para esconder o nervosismo dele.

— Miguel, eu quero falar com você como dois amigos — começou Crânio que baixou o olhar para o chão — Eu não quero falar com o Miguel Presidente do Grêmio e nem o Miguel Líder dos Karas, eu quero falar com o Miguel, meu melhor amigo. Assim como eu vou falar com você sendo eu mesmo…

Ele parou abruptamente como se não conseguisse respirar. Continou:

— O que eu quero dizer é, eu vou ser sincero com você e espero que você faça o mesmo.

Se Miguel pudesse adiar aquela conversa por mais tempo, era exatamente o que faria. Não estava preparado para confrontar Crânio sobre a Magrí, sobre os Karas, sobre os seus sentimentos… Sobre tudo. Nunca estaria e já se sentia sufocado de novo. Preferiria ouvir a Dani gritando com ele do que encarar o irmão da garota. Ou enfrentar o Dr. Q.I, ou os contrabandistas do Pantanal ou qualquer criminoso que os Karas já colocaram na cadeia no último ano. Era fácil para Miguel mostrar coragem em frente a tirania ou ao crime, mas por que não era fácil para ele mostrar coragem de ter uma conversa franca com o seu melhor amigo?!

O sentimento de que ele era uma farsa voltou com mais força no líder dos Karas. Apenas acenou indicando que Crânio podia continuar falando. O rapazinho respirou fundo e desviou o olhar como se quisesse fugir dali. 

Por fim, Crânio cravou os olhos em Miguel cerrando o maxilar.

— Você ainda ama a Magrí?

Os olhos de Miguel se arregalaram um pouco pelo modo direto ao ponto do amigo — típico de Crânio, não gostava de enrolação e era exatamente por isso que se tornaram tão amigos. O que deveria responder, então?

“A verdade, idiota. Diga a verdade”.

— Sim.

Os olhos de Crânio se arregalaram um pouco, mas logo voltaram ao normal. Ele ficou em um silêncio meditativo. Os únicos sons à distância era o barulho dos alunos deixando a escola, as buzinas dos carros na rua, a música infantil do carrinho de sorvete e o sangue pulsando nos ouvidos de Miguel. A voz de Crânio soou distante para o rapazinho, como se estivesse num fundo de uma caverna e ele do lado de fora conversando com ele:

— O que vamos fazer a respeito disso, Miguel?

— Não há nada a ser feito, Crânio.

Crânio cerrou de novo o maxilar. Miguel estava deixando tudo aquilo mais difícil do que ele esperava.

— Ela ama você — continuou Miguel olhando algum ponto atrás de Crânio — Fim da história.

— Você pode estar ressentido comigo, eu sei que está — Crânio rebateu com raiva na voz forçando Miguel a encará-lo de novo — Mas isso é justo com os Karas e com o Elite? Você continua com essa pose de durão! Eu não pedi para você ser sincero?

Miguel soltou a respiração pelo nariz e trincou os dentes. As paredes que Miguel construiu em torno dos seus sentimentos, suas angústias, sua raiva saiu como um tiro de canhão. Ok então, Crânio, você pediu:

— Tá! Você quer sinceridade, Crânio? — Miguel não conteve a ironia — Aqui vai: eu aceitaria melhor o seu relacionamento com a Magrí se você tivesse me contado desde o começo, se você tivesse tido a decência de me falar o que estava acontecendo! Mas não, claro que não! Para quê contar para o seu melhor amigo?! Que utilidade isso vai ter? Ele vai descobrir de qualquer forma, que se f…—

Miguel engoliu o palavrão enquanto sentia o rosto esquentar de raiva. Não era dado a dizer profanidades, mas a raiva estava deixando sua visão vermelha. Crânio estava pregado no chão o encarando. Não havia terminado ainda; a voz subiu uma oitava enfatizando cada afirmação:

— … Que se lasque tudo né, Crânio? Você me apunhalou pelas costas, mas o culpado de toda essa merda sou eu? OK! Eu assumo culpa! Eu pensei que seria bom que o Elite fechasse e eu não precisasse te encarar todo santo dia sabendo que meu melhor amigo me traiu!

A última frase soou como um soco na cara de Crânio. O rapazinho estava mudo em uma rara ocasião de estar sem palavras. Porém não estava surpreso, já esperava por esse dia e hora que ouviria Miguel gritar traidor na cara dele, pois era verdade. Um traidor.

Miguel respirava com dificuldade. O lábio inferior tremia e ele cerrava os punhos com as mãos que suavam. Sentiu um tremor gelado no corpo como se estivesse com febre, e se sentou na cadeira colocando a cabeça entre as mãos.

Nunca soube quantos minutos se passaram e até tinha esquecido da presença de Crânio. O rapazinho por fim falou numa voz abafada e estrangulada:

— Eu não tenho nada com que me defender. Você tem razão… — a voz falhou saindo quase num sussurro — Espero que um dia você me perdoe, Miguel.

Miguel ouviu Crânio respirar fundo e falar de um jeito que nunca viu antes, em tom de súplica:

— Mas por favor, não culpe a Magrí, nem os Karas, nem o Elite. Eu deixo que você me odeie, mas não desconte neles a sua raiva pela minha traição.

Uma lágrima caiu do canto do olho de Crânio, mas ele a limpou rapidamente. Miguel continuava de cabeça baixa. Ele desferiu quase como se estivesse falando consigo mesmo.

— Eu não posso, eu não posso continuar com isso…

Não falaram mais nada por longos minutos. O sol já tinha se escondido e a sala só não estava na completa escuridão por causa dos postes de iluminação que jogavam feixes de luz pela janela.

— Eu vou ajudar o… Eu vou ajudar o Elite — Miguel levantou o rosto — Mas eu não quero continuar com os Karas e quero você longe de mim.

Crânio apenas acenou concordando. Miguel se levantou, passou por ele sem olhá-lo e foi até a porta. Antes de sair, encarou o garoto:

— Não vou dizer uma palavra para Magrí, prometo.

Abriu, saiu e fechou a porta num estrondo deixando Crânio na semi escuridão com os sentimentos de remorso e culpa a corroer seu coração. Nunca o rapazinho se odiou tanto como naquele momento.

A conclusão que sua mente prodigiosa encontrou doeu tanto quanto as palavras de Miguel: Ele não merecia a amizade de Miguel e nem o amor de Magrí.

Crânio era um traidor.

O que aconteceu depois foi como um longo pesadelo. Miguel discursou no conselho e ganhou a maioria dos votos para a causa. As semanas de alegria para a festa da pizza foram manchadas pela reunião dos Karas convocada por Miguel após o sucesso do evento. O que falou ou pensou naquela última reunião, Crânio nunca conseguiu se lembrar. Só lembrava das súplicas de Magrí, da revolta de Chumbinho, da desconfiança e raiva de Calú e a própria mudez.

Era 1986. Os Karas estavam oficialmente dissolvidos. Meses depois, Crânio e Magrí terminaram o namoro.

***

O Elite foi salvo da falência, pelo menos por um tempo até a administração da escola ser trocada por pessoas mais competentes, mas aquilo custou a união dos Karas na época. E custou mais: o namoro de Magrí e Crânio e a amizade de Miguel com Crânio. Era um dos assuntos que o jovem casal ainda tinham muito a dizer.

Um Crânio mais velho relembrava tudo aquilo ainda sentindo a dor no peito que o acompanhou nos últimos anos enquanto fitava Magrí do outro lado da mesa do restaurante. Quanta dor causou à aquela garota adorável pelo próprio egoísmo?

— Eu não sei como tive coragem de terminar nosso namoro depois da separação dos Karas, lembra? — disse ele acariciando a mão dela.

Magrí fez uma careta.

— Nem me lembre disso! Você terminou comigo no final do segundo ano sem nem me explicar direito o que estava acontecendo… Pensei que não me amava mais.

Ela fez um bico e Crânio se segurou para não puxá-la pela mesa para dar-lhe um beijo.

Por muito tempo, o rapaz sentiu remorso. Terminar com Magrí foi uma das coisas mais difíceis que já fez na vida — não se lembrava mais do que falou na conversa ou da resposta de Magrí. O resto do segundo ano e mais da metade do terceiro ano do ensino médio passaram como uma borrão para os dois. Sentiam também que o mesmo ocorreu com os outros Karas.

— Mas você soube depois, já que eu não consigo esconder nada de você por muito tempo — ele deu um sorriso triste — Foi tudo tão maluco, eu não estava pensando direito. Foi na mesma época que me ofereceram uma prova para eu pular o ensino médio e ir direto para a universidade. Eu já não queria aceitar, mas depois daquele desastre, eu não poderia dar às costas e fugir.

A moça segurou as duas mãos do noivo apertando-as com as suas próprias mãos. Sabia bem que Crânio ainda se sentia responsável pela separação dos Karas, mas queria tirar aquele fardo das costas dele e estava determinada a fazê-lo desde então.

— Você foi muito corajoso, Crânio e não permito mais que você pense que foi um covarde ou que toda a culpa foi sua. Aquilo iria acontecer de qualquer forma, e lembre-se: eu também fui e sou culpada. Além do mais, acredite ou não, mas hoje eu entendo perfeitamente as suas razões por ter terminado comigo.

Crânio começou a falar, mas Magrí colocou o dedo indicador nos lábios dele calando-o.

— Nem mais uma palavra, Crânio. O que passou, passou — ela levou a mão dos lábios para o rosto — E estamos juntos de novo e temos um futuro. Eu amo os Karas, sempre vou desejar a nossa reunião. Mas nós… Nosso casamento, nossa vida juntos daqui para frente é a minha prioridade e espero que também seja a sua.

Crânio sorriu para ela calidamente. Não conseguia mais imaginar a sua vida sem ela — mesmo que soe muito piegas, mas era verdade.

— Estou disposto a fazer qualquer coisa para nunca mais nos separarmos de novo.


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