Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 36
Natureza do Perdão


Notas iniciais do capítulo

Olá queridos Karas!! Estou muito contente com esse conto! Também não é para menos, porque Miguel e Dani é um casal que quero mesmo continuar desenvolvendo ;)

Quem tem problemas respiratórios, eu indico ler com cuidado. Altas emoções por aqui.

Boa leitura!



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Londres, Fevereiro de 1994

O tempo ameno com a leve brisa de inverno que batia na janela não amenizava os temores da garota sentada na sala de espera. As mãos pálidas dela suavam enquanto ela apertava a pastinha com documentos apoiada no colo. Ela respirava fundo a cada cinco segundos e olhava com impaciência para o relógio — tinha chegado muito mais cedo do que deveria. Mal havia desembarcado no país e já se apresentou para trabalhar na secretaria da Embaixada brasileira. Tinha ido bem na prova, passou na entrevista ainda no Brasil e agora era chegado o momento.

Para ser sincera, Dani queria apenas deixar o passado para trás e começar uma nova vida na terra da rainha. Já havia estudado na Inglaterra por seis meses durante o ensino médio, conhecia muito bem o país, tinha um inglês perfeito e alguns amigos que não perdeu contato. A moça sempre quis estudar arte na Royal College of Arts, mas não sabia explicar porque demorou tanto para enviar a candidatura.

Terminou a escola, passou uns três anos entregando alguns trabalhos de pintura para alguns poucos clientes e estudando por conta própria, mas precisava de técnica e contatos na área. A RCA era uma grande oportunidade, mas precisaria de um emprego para pagar o curso e se manter no país. Por que não na embaixada, pensou ela na época, não era uma função difícil e os horários de trabalho eram bons.

A família não ficou muito feliz com a decisão dela de voltar para a Inglaterra. Crânio queria que ela continuasse por perto e fosse para a USP. Mas só de imaginar a vida no campus e tantos conhecidos que poderiam estar por lá, Dani descartou por completo, para a tristeza do irmão e da cunhada, Magrí. Ela sorriu com a lembrança. Claro que eles ficaram felizes quando ela recebeu a carta de aceitação da RCA semanas depois, assim como os pais — a mãe chorou de orgulho, e Dani teve que lidar com um jantar de despedida com todos os amigos da família antes de sua partida.

"Cuidado por lá, viu irmãzinha? Fique longe dos ingleses, não confio neles", brincou Crânio que levou um tapa no braço da irmã, mas não pode evitar a risada — ele sempre seria o irmão mais velho protetor irritante. No aeroporto, Dani quase desistiu da viagem quando foi se despedir dele. 

O rapaz também iria embora em breve para os EUA e não tinham idéia de quando se veriam de novo. Crânio piscava loucamente tentando conter as lágrimas quando abraçou a irmã, enquanto Dani deixou que alguns soluços escapassem no peito dele. Adorava aquele idiota, e não sabia o que seria dela sem ele para fazê-la rir. Na primeira vez que ela foi para o UK a despedida não foi tão dolorida em comparação com aquela — uma despedida que tinha gosto de durar por muito tempo.

Dani suspirou. Estava morta de cansada, com sono e com fome e mal podia esperar para ver como ficou o flat que alugou perto do campus da RCA, e que fez questão que arrumassem com esmero — não queria que fosse feio e sujo como dos outros alunos. Moraria numa zona cheia de estudantes de outros cursos, mas estava ok com isso — ninguém a conhecia.

— Excuse, ma'am, I'm waiting for my application. May you see to me if it's everything ok?

Dani segurou a vontade de socar a cara da atendente pela má vontade em ajudar que ela não escondeu. A atendente clicou de forma cansada no computador, e com voz arrastada, disse que estava tudo ok, mas precisava aguardar mais um pouco. Dani quase bateu o pé de frustração. Odiava esperar.

Voltou para a cadeira onde estava sentada e tentou assistir o programa de comédia que passava na TV, porém sem prestar atenção. Gostaria muito de um pouco de café, mas não sabia onde tinha e não queria perguntar mais nada para a recepcionista preguiçosa. Resolveu então ao ir toalete retocar a leve maquiagem e desamassar a roupa.

No corredor, havia dois funcionários conversando em voz baixa enquanto se dirigiam a uma sala de reunião. Dani estacou no meio do caminho. 

Aquela voz... Não. Não, estava ouvindo coisas — de jeito nenhum que era ele. Ela respirou fundo de novo e se trancou no toalete. Quando retornou, a recepcionista preguiçosa disse que ela estava sendo aguardada pelo seu futuro chefe na sala de reuniões no fim do corredor. Ela agradeceu com um sorriso falso e se dirigiu à sala.

Quando abriu a porta, o mundo de Dani caiu de cabeça para baixo. 

A sala era ampla, bem arejada, com uma mesa de madeira enorme. Bem decorada. Belas cores, suas mente artística pensou de forma inconsciente. O designer de interiores que planejou a sala tinha bom gosto. Talvez tivesse algo também do gosto do dono dela. O dono...

Dani queria sair correndo. Sentiu o ar ficar preso na garganta a ponto de deixá-la tonta. O rapaz — ele era um rapaz, não era muito mais velho do que ela — estava de cabeça baixa escrevendo alguma coisa num papel. Ele levantou a cabeça e ficou tão chocado quanto ela.

— Danielle, é você?

Dani pensou em vários cenários:

1) Sair correndo e deixar a vaga para outra pessoa;

2) Pedir para trabalhar com qualquer outra coisa (poderia ser ajudante da recepcionista preguiçosa);

3) Trabalhar com ele e ser obrigada a vê-lo todo santo dia.

Aquele... Aquele... urgh! Ela não conseguia nem encontrar um xingamento próprio. Ele ainda tinha a pachorra de sorrir com sinceridade — o sorriso que ela conhecia bem até demais. A voz saiu áspera e abafada, quase num sussurro:

— Bom dia, Miguel.

Ele respondeu sem denotar muita emoção:

— Bom dia, Dani. Quanto tempo...

A vida gostava de ser cruel com ela. Aquilo só poderia ser uma grande, grande piada de mau gosto. Não era possível!

— Sente-se. Não vou tomar muito o seu tempo — disse ele — Isso é só um procedimento padrão para novos funcionários e para você conhecer com quem vai trabalhar.

Miguel parou com a caneta em cima do papel. Olhou de relance para ela com um leve sorriso sem emoção. Como sempre, ele era uma pedra de gelo.

— Pelo jeito não vai ser necessário nos apresentarmos.

Dani se sentou controlando o impulso de sair correndo. A mente estava em negação. Não iria trabalhar para ele, iria?! Iria mesmo?! Miguel, por fim, fez o favor de parar de escrever e finalmente a olhou direito. A voz saiu mecânica que deixava claro business talk:

— Eu entendi que você acabou de chegar, então não precisa trabalhar essa semana, venha na segunda. Você vai ser o meu braço direito aqui dentro, porque você vai perceber que há muito trabalho por aqui e tudo passa por mim, por isso essa vaga foi aberta. Não se preocupe, é só burocracia e algumas reuniões de planejamento a cada quinze dias. Com você aqui, eu posso me ausentar por mais tempo no auxílio dos embaixadores que nos visitam. Alguma dúvida?

Ela balançou a cabeça em negação. Parecia que estava ligada no piloto automático, apenas concordando e assinando papéis sem prestar nenhuma atenção. A única coisa que tinha na cabeça era aquela voz — suave, calma e indiferente. A mesma voz, talvez um pouco mais grossa. As mesmas feições, porém mais masculinas. Ele cresceu também, percebeu quando ele ficou em pé para mostrar a mesa dela (em frente a dele, notou querendo chorar). Tudo impecável e limpo, nem uma caneta fora do lugar.

Aquele foi o pior dia da vida de Dani e só estava começando.

No terceiro dia de trabalho, ela se aproximou da mesa de Miguel, exatamente num dia qualquer como  quando chegou ali, nos seguintes termos:

— Eu quero me demitir.

Miguel levantou a cabeça deixando transparecer a surpresa pelo leve arregalar de olhos.

— Por quê? Você acabou de chegar. Não faz nem uma semana.

— Eu quero me demitir, Miguel — numa voz mais contida, ela sorriu amarelo — Consegui outro emprego.

Era mentira. Sem aquele trabalho não tinha idéia do que iria fazer. Mas o desespero chegou a tal ponto que ela não estava pensando direito. Miguel era seu chefe. Trabalhava com ele na frente dela todo santo dia. Aquilo provavelmente era a sua punição por todos os pecados que cometeu na vida, não era possível que Deus tivesse um humor tão sardônico!

— Dani, você não pode ir embora justo agora. Eu preciso de você.

Ela sorriu de forma irônica. Ele precisa de mim. Ha! Que piada de mau gosto. Cada sentença que ele dizia soava como uma zombaria nos ouvidos dela. Ele enumerou todos os pontos do porquê ela não podia ir embora, por que ela era necessária, todas as suas competências e organização, etc., etc., etc! Se eles não estivessem em um ambiente profissional, ela iria mandá-lo para aquele lugar sem pena.

O que sentia por Miguel no decorrer dos anos oscilava entre amor e ódio. Não se lembrava mais quando percebeu que gostava dele mais do que um amigo do seu irmão. Começou como uma paixonite platônica adolescente, afinal Miguel era tudo o que ela não era: educado, bem comportado, sereno, líder, sabia lidar com as pessoas e com responsabilidades e sempre teve aquele ar de "garoto mais velho" igual ao irmão. A diferença era que o temperamento de Crânio era próximo do dela, com seus altos e baixos.

Mas com Miguel era tudo diferente. E ela lembrava de gostar daquele contraste. Porém, ele sempre preferiu outras garotas...

Aquilo era passado. Não eram mais adolescentes, poderiam lidar com tudo aquilo como jovens adultos, certo? Nada de ressentimentos, afinal ele nunca soube dos sentimentos dela, certo?

Bela forma de lidar pedindo demissão...

Em determinada hora, quando a conversa já estava longa demais, Miguel massageou as têmporas e a fitou com certa súplica. O tom mecânico dele deu lugar a um tom mais humano:

— Não faça isso, por favor. Eu sei que pouco nos falamos na escola e que nunca fomos próximos, mas... Por favor, não vá embora. Somos um time, não somos? Você vai mesmo me deixar na mão?

Dani se odiou naquele dia. Ela deu de ombros e ficou, para completar o quadro de "eu quero me jogar da Tower Bridge". Miguel lhe deu um leve e rápido abraço com o seu sorriso sereno e prometeu que, se ela continuasse fazendo um bom trabalho, teria um aumento em seis meses. Perfeito.

Ela queria continuar odiando Miguel. Ela queria continuar pensando que ele era um bloco de gelo sem coração (o que era em parte verdade) egocêntrico, metido e nariz empinado, ou seja, a imagem que pintou na sua cabeça para esquecê-lo e ser indiferente a ele.

Mas no dia a dia, o filho da mãe era tudo isso ao contrário, além de ser gentil demais com ela e paciente com todas as merdas que fazia nos relatórios. Ele sempre a salvava do Mr. Pickwick, uma espécie de consultor do governo britânico, que pegou raiva de Dani já no primeiro mês de trabalho. 

Mr. Pickwick sempre adentrava bufando e pisando duro na sala deles com o seu sotaque pausado e firme, e um dedo acusatório para Dani por trás dos bigodes:

— Miss, how can you forget to put the date of the meeting? Reports need to be very, very careful done. How can you possibly think that the government will approve this? Jesus!

Miguel sempre se levantava rapidamente e pedia com os olhos que Dani permanecesse quieta que ele resolveria tudo. Era sempre assim. Ele acalmava o velho e sempre voltava segurando o risada dos arrombos e exageros de Mr. Pickwick.

— O que você disse para ele para deixá-lo calmo? — ela perguntou na primeira vez.

Miguel deu de ombros.

— Nada. Apenas que ele era o melhor funcionário do Coroa. Uma mentirinha de nada.

Daquele dia em diante, Dani descobriu uma coisa: Miguel não era tão perfeito assim, afinal. E que ela ainda o amava apesar de dizer a si mesma que era indiferente a ele.

***

Londres, 1995

Miguel torcia as mãos e evitava beber mais do sachê para não perder a fome (ou ficar tonto). O restaurante não estava muito cheio para um final de dia — também não era para menos por ainda ser meio de semana. Ele olhava constantemente para porta e para o relógio de pulso. Ela estava um pouco atrasada, mas sabia que ela estaria voltando da faculdade naquele horário. Ainda não acreditava que ela aceitou aquele encontro.

Por fim, Dani chegou. O vislumbre dela sempre o deixava desconcertado e sem graça desde o primeiro dia que ela chegou. Anos de prática o ensinaram a disfarçar tudo, incluindo o menor dos desconfortos, mas ultimamente Miguel estava perdendo a compostura perto dela. O que foi aquilo no escritório? Se alguém tivesse entrado quando a beijava, os dois estariam em muitos apuros...

Ele se levantou com um sorriso e deu um leve selinho antes de puxar a cadeira para ela sentar. Dani parecia sem graça e um pouco perdida, mal levantando os olhos para olhá-lo. Não era por menos, talvez ela não estava ainda tão confortável com a situação. Teria que ser mais cauteloso e deixá-la mais à vontade. Estava preocupado por ela não ter feito um comentário sarcástico em cinco minutos desde que chegou.

Enquanto aguardavam os pedidos, Miguel começou:

— Como está indo a faculdade? Você não nunca mais me mostrou esboços dos seus trabalhos...

Ela corou e se remexeu na cadeira.

— Está indo tranquilo até demais. Teremos uma exposição dos alunos mês que vem, talvez eu apresente algum trabalho para o público.

— Vai tentar reproduzir no estilo do Monet* de novo? — ele sorriu calidamente — Sei que ele é um dos seus favoritos...

— Talvez — ele baixou a cabeça sem graça — É provável que sim.

Um silêncio esquisito caiu. Dani evitava olhar para Miguel, enquanto o rapaz não tirava os olhos dela. Ele sempre a deixou desconfortável e estava surpresa por ter sobrevivido durante um ano inteiro trabalhando com ele todos os dias. Sentia a língua presa no céu boca, e deu graças a Deus quando a comida que pediram chegou.

O silêncio continuou enquanto eles comiam. Dani sentia os olhos de Miguel pousando nela com frequência, e o rapaz parecia querer continuar a conversa sem saber como. Decidiu então continuar no tópico sobre arte sabendo que era um assunto que a deixava mais à vontade e animada — e era seguro.

— Eu sinto um pouco de vertigem quando olho para alguns quadros de Monet. Não sou muito fã dos impressionistas...

Dani engoliu a comida e deu um sorriso de lado.

— Eu já não acho isso. Gosto muito das cores e das paisagens que ele pintou. Sempre visito a National Gallery para vê-las de perto.

— Você vai lá com frequência? Só fui uma vez — Miguel pigarreou — E talvez... Talvez eu poderia ir com você um dia? Se não for incômodo, claro...

"Isso não está acontecendo, está?" Dani entrou em pânico. Ele queria sair com ela de novo? Miguel só podia estar de sacanagem. O olhar dele era ao mesmo firme e suplicante, uma mistura de segurança e insegurança.

— Hã, claro... eu acho — ela deu um grande gole no suco — Sabe por que eu gosto dos impressionistas? Eles pegam somente as sombras das coisas, apenas a superfície. Eles não ficam se preocupando com detalhes como os renascentistas.

Miguel franziu a testa. Ele se inclinou na mesa para mais perto dela. Dani recuou o tronco de forma inconsciente, mas os olhos dele pareciam puxá-la de volta. "Eu não vou sair viva daqui".

— Exato, Dani. Por isso não gosto tanto. São lindos, mas... Eu gosto dos detalhes das coisas e das pessoas. Gosto de entendê-las, não vê-las só por cima, como eu acho que talvez você prefira.

Dani fez uma carranca.

— Não é como se eu não gostasse de conhecer as pessoas, mas... são poucas pessoas no mundo que eu gosto e poucas ainda as que eu amo.

— Eu sou uma dessas pessoas? — Miguel sussurrou acariciando a mão dela apoiada na mesa.

Dani foi salva de responder com a aproximação do garçom com a sobremesa. Ela deixou o ar que segurou sair dos pulmões. Até quando aguentaria aquele jogo? Miguel parecia determinado em deixá-la nervosa e tornar sua vida miserável.

Eles permaneceram em silêncio enquanto desfrutavam de um pedaço de pudim à moda inglesa. Dani queria gritar com ele tudo o que guardou, todo aquele maldito ressentimento irracional que acumulou.

Ele nunca soube dos sentimentos dela, soube? Ela nunca disse, mas sempre demonstrou em todas as vezes que o ajudou. Porém o infeliz estava tão ocupado correndo atrás da Magrí ou brigando com o seu irmão, ou com qualquer outra besteira que ele não tinha tempo para perceber isso. Garoto estúpido, estúpido! Mas o que deu nele agora? Ela era a única opção para ele? Estava com pena dela?

Dani enfiou o garfo no pudim com mais força do que necessário, sentindo os punhos da mão esquerda se fecharem embaixo da mesa, e algumas lágrimas encheram os olhos. Ela respirou fundo contando até dez mentalmente. Por outro lado, Miguel percebeu o desconforto dela e começou, numa voz mais animada:

— Sabe que o Mr. Pickwick veio reclamar de você para mim de novo?

Miguel riu e numa voz empastada e teatral, imitando o sotaque afetado do funcionário, disse:

— "Mr. Miguel, your assistant is a disgrace for this country and yours! She can't put two and two together!"

Dani abriu a boca de espanto e em seguida caiu na gargalhada. A imitação do Mr. Pickwick foi tão perfeita que ela ficou chocada em ver esse lado brincalhão de Miguel. Nunca tinha visto ele tirar sarro de alguém daquela forma.

Feliz por vê-la sorrindo, o rapazinho (mordendo a língua para não rir) continuou na sua personificação:

— E o que mais? Ah ele falou também "You need to punish her right away if I were you!" — ele pegou um palito de dente colocando no canto da boca para imitar o cigarro do Mr. Pickwick — "excellence is a bless for a state position. Remember that if you want to grow up here".

Dani estava chorando de rir — meio sufocada pelas lágrimas anteriores — pelas caretas e pela voz horrorosa que Miguel personificou. Mais calma, ela brincou:

— Que homem detestável! Se ele não fosse velho o suficiente para ser meu pai, eu acharia que ele está apaixonado por mim e quer minha atenção! Se ele ver você o imitando, ele vai pedir sua demissão!

Miguel fez uma careta pela imagem mental que veio à sua cabeça. Tirou o palito de dente da boca e num tom mais sério, porém ainda com traços da leveza da brincadeira, desferiu:

— Não precisa se preocupar com ele. Eu sempre vou garantir que ele não vai te prejudicar em nada, e sempre continuarei te defendendo contra os ataques irracionais dele.

Antes que Dani respondesse — chocada pela afirmação dele — Miguel continuou, com algo na expressão dele que a menina nunca viu antes:

— Sabe o que eu respondi para ele? "Mr. Pickwick, Danielle is an excellent professional and also a darling friend. I trust her with my heart. Since she came here, I'm totally dependent of her... — ele pausou e continuou quase sussurrando — And no one can replace her in my life.

Parecia que o relógio tinha parado para Dani. Os sentidos talvez a estivesse pregando uma peça. Agitada, confusa e sufocada, ela se levantou num solavanco, pegou a bolsa que estava pendurada na cadeira e saiu do restaurante apressada, quase correndo para a rua já mais escura pelo crepúsculo.

Ela ouviu os passos de Miguel logo atrás dela, ela ouviu ele chamando-a com aflição, mas não deu ouvidos. Continuou caminhando para Deus sabe onde, querendo ao máximo ficar longe dele. 

Era tudo demais para ela suportar. Por que ele brincava com os sentimentos dela daquela forma? Ele não tinha coração?!

— Dani, pelo amor de Deus! — ele a alcançou e a segurou pelo braço — O que diabos eu fiz?

Raiva. Era só raiva que sentia.

— Tudo! Tudo nos últimos dez anos! Eu te odeio! — ele estava gritando sentindo os pingos de chuva caírem no rosto — Me deixa em paz!

Ela tentou se soltar do aperto dele — que não era muito forte para não machucá-la — mas Miguel não deixou. De forma delicada, ele a segurou pelo outro braço e fez com que ela o encarasse. Havia dor no semblante dele.

— Eu sei, minha querida, eu sei. Mas eu não posso tentar te compensar?

Mais uma onde de choque. Se ele não a estivesse segurando, Dani tinha certeza que teria ido direto ao chão. Estava tonta, a cabeça girava loucamente.

Ele sabia. Ele sabia...

Ele sempre soube?

— Eu sempre soube — disse ele enquanto a abraçava e dava-lhe um leve beijo na bochecha — Eu sempre soube que você amava. Mas não queria lidar com isso. Me perdoe...

O corpo de Dani começou a se tremer. O choro há tanto tempo engolido veio forte como a chuva de verão que começou a cair. Miguel a abraçava mais ainda e ninava como se fosse uma criança ferida. Ele disse algumas coisas, mas ela jamais se recordou do que eram. Não conseguia pensar. 

Quando recobrou os sentidos, ela estava sozinha em casa. Não fazia ideia que horas eram. Estava deitada no minúsculo sofá do flat, com as mesmas roupas do dia anterior, porém sem as sandálias que tinha usado quando... Quando mesmo? E como ela voltou para casa?

Havia um papel em cima da mesinha do telefone. Grogue, sentindo um enjoô e ainda tonta, ela abriu o bilhete dobrado uma vez só. Uma letra firme que ela conhecia bem apareceu nos seus olhos. 

Tudo o que ocorreu no dia anterior voltou-lhe a memória: alguém a carregando no colo até a porta e colocando-a deitada no sofá, o beijo nos lábios, a tristeza na voz dele quando se despediu... e o bilhete:

Me perdoe, minha querida.


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Notas finais do capítulo

*Claude Monet: Pintor francês do século XIX e um dos maiores representantes do movimento impressionista.

N/A: Estão vivos? Inteiros? Espero que ninguém queira me matar por isso hahaha xD

No próximo conto: As coisas não estão nada boas nem no Elite e nem entre os Karas. Eles precisam se unir para salvar a escola de uma possível falência, mas o ciúmes de Miguel, a cegueira de Magrí e a falta de paciência de Crânio podem por tudo a perder...



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