Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 19
Educação Sentimental


Notas iniciais do capítulo

Olá leitores! Este conto se passa no finalzinho de Droga de Americana com algumas cenas perdidas da aventura. Espero que gostem.

Boa leitura!

Música: Educação Sentimental - Kid Abelha



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Já era noite alta. O barulho das sirenes de polícia, jornalistas e palpiteiros aos redores do Colégio Elite eram a prova de que aquele era mais um dia atípico da rotina de professores e alunos.

A libertação heroica de Peggy MacDermott — a filha do Presidente dos Estados Unidos, sequestrada para o susto do mundo inteiro, literalmente — colocou a escola sob os holofotes de todas as emissoras de TV existentes. Era quase impossível não receber um flash na cara das câmaras fotográficas que registravam a saída da garota pelas mãos do gordo detetive Andrade.

No meio de toda aquela bagunça, Crânio não estava ligando para Peggy MacDermott. Era outra garota que o estava preocupando de verdade, mas não conseguia achá-la desde a hora que desceram dos telhados do colégio. Por mais que Magrí não estivesse ferida, o rapazinho precisava assegurar de que ela estava bem, e sabia se não o fizesse, não ia conseguir dormir aquela noite (que já estava longa demais).

O gênio dos Karas conseguiu deixar o quarteirão caótico do Elite sem ser visto, se misturando às sombras das árvores e dos muros dos casarões em volta. A todo instante, ele se perguntava para onde Magrí tinha ido.

Porém para sua surpresa e decepção, não foi Magrí quem encontrou alguns metros de distância da escola.

— Crânio! Que susto! Eu não vi você chegando.

— Eu digo mesmo, Miguel! Como conseguiu sair tão rápido?

— Dei um jeito de usar os portões do fundo da escola. Não tinha quase ninguém ali. Estou esperando as coisas se acalmarem para eu pegar minha bicicleta no estacionamento.

Os dois Karas ficaram em silêncio sem saberem muito o que fazer. Era a primeira vez em meses que Crânio e Miguel conversavam sozinhos, e eles ainda estavam um pouco desconfortáveis na presença um do outro. Soma-se a isso os acontecimentos das últimas horas e a fatídica reunião de emergência...

Miguel por fim, quebrou o silêncio. Pigarreou:

— Obrigado.

— Quê? — Crânio piscou virando-se para o amigo — Você disse alguma coisa?

— Eu disse obrigado... Por você ter votado sim na reunião.

— Ah.

Crânio mordeu o lábio inferior sem saber o que dizer. Era fato que com o sequestro de Magrí e a vida dela em risco, ele perdeu um pouco da sua frieza racional de sempre. Ainda estava sentindo-se esmagado por tanta preocupação, e admitia a si mesmo que também sentia-se traído pelo o seu melhor amigo.

Como Miguel pode ser tão descuidado em revelar sobre os Karas para uma garota desconhecida? Filha do presidente americano ou não, para Crânio, Peggy não era especial — era só mais uma garota comum com uma péssima sorte. E uma intrometida também, que entrou para os Karas pela fraqueza de Miguel, não por algum mérito próprio.

Era muita coisa para pensar. Precisava de mais tempo. As motivações do seu líder ainda eram estranhas ao garoto.

— Bem, por nada, Miguel. Quero dizer... — Crânio parou e estralou a mão — Sendo sincero, eu não entendo o que você estava pensando quando revelou tudo para aquela garota sem nos consultar primeiro. Foi uma imprudência, não há dúvidas e a sua expulsão dos Karas seria merecida, você sabe disse, certo?

Miguel acenou engolindo em seco.

— A regra foi aprovada por todos. Eu esperaria um erro grave como esse de qualquer um, menos de você, Miguel.

Crânio não escondeu o tom de decepção, sentimento este que ocultou bem durante a reunião, sendo a razão do seu momento de emoção. Percebeu que havia dado um sermão no líder dos Karas, algo que jamais se imaginou fazendo, pois Miguel sempre foi o que mais obedecia todas as regras.

Mais tarde, Crânio concluiria que aquela demonstração de fraqueza do seu líder foi boa, ao dar uma luz para mostrar que Miguel não era perfeito, mas que nem por isso deixaria de respeitá-lo e admirá-lo.

— Eu concordo com tudo o que você disse, Crânio. Creio que os outros devem estarem pensando a mesma coisa. Eu não tenho nada a dizer em minha defesa a não ser que fui descuidado e espero que um dia você me perdoe.

Crânio esperava qualquer coisa, menos um pedido de desculpas. O gênio dos Karas num gesto inesperado, abraçou o amigo rapidamente. Quando o soltou, sorriu:

— Você pode agir que nem idiota de vez em quando, mas você sabe que eu não fico irritado com você por muito tempo. Já passou e é melhor deixarmos isso para lá.

Crânio não percebeu, mas Miguel sentiu um peso saindo das suas costas pelas palavras do companheiro. A lealdade dele era algo que o líder dos Karas achava que às vezes não merecia, por toda a mancha de ciúmes que ainda reinava em seu coração. Sabia, no entanto, que jamais odiaria o geninho, mesmo temendo as próprias fraquezas.

Os dois se despediram e tomaram caminhos opostos. Crânio acharia difícil encontrar Magrí àquela hora — era provável que ela já estivesse em casa. Qual não foi sua surpresa, porém, quando retornou ao quarteirão do Colégio Elite, e viu a garota sentada na escuridão na calçada onde havia um ponto de táxi. A menina estava encolhida no uniforme de Chumbinho, que não a protegia o suficiente do frio daquela noite.

Crânio tirou a jaqueta que vestia e se aproximou, deixando que ela o visse para não assustá-la. Os olhos da menina se iluminaram à meia luz. O rapazinho sentou-se ao lado dela e colocou a jaqueta nos ombros de Magrí, que sorriu para ele. Crânio passou o braço em torno da garota, tomou delicadamente o rosto dela com a mão livre e deu-lhe um beijo apaixonado e cheio de saudades e preocupações.

Magrí enconstou a cabeça no ombro de Crânio e deixou-se ser abraçada e beijada, correspondendo com carinho. Por algumas horas terríveis pensou que jamais teria aquela oportunidade, que jamais veria aquele menino adorável de novo. Aquele pensamento fez com que ela o beijasse por mais tempo, não querendo mais soltá-lo.

— Eu estava te procurando há quase uma hora — sussurrou Crânio entre os cabelos de Magrí — Achei que já tinha ido para casa.

— Eu estava indo — ela suspirou abraçando-se mais ao garoto — Mas fiquei um pouco tonta pela fraqueza e resolvi me sentar um pouquinho para ver se passa.

Crânio estreitou o braço em torno dela.

— Você não come nada há horas... Deveria comer alguma coisa antes de ir para casa.

Magrí sorriu com um risinho.

— E você não está com frio só de camisa?

O garoto balançou a cabeça em negativa, mesmo com os dentes querendo tilintar, pois a temperatura caía cada vez mais. Os dois acharam a situação até um pouquinho romântica mesmo em meio às circunstâncias. Aquela seria a noite que teriam ido ao cinema, assim que Magrí deixasse o ginásio da escola, aproveitando a mudança de planos dos pais de Peggy sobre o jantar de comemoração que planejavam dar. Com os compromissos do presidente, o combinado seria o jantar na noite seguinte — com Magrí livre, Crânio aproveitou para chama-la após a exibição. Porém com o sequestro, tudo foi abaixo e a menina duvidava até mesmo se teria o jantar de comemoração.

O garoto se levantou e estendeu a mão para a Magrí. Ela estava contente por estar escuro e ele não vê-la naquele estado caótico que estava. Tinha ciência que estava suja, com o cabelo todo embaraçado, sem maquiagem parecendo uma mendiga. O tênis de Chumbinho estava grande demais nos pés dela, o que dificultava o seu andar. Mas Crânio nem percebeu esses detalhes, se percebeu não se importava, o que ela sentia-se muito grata.

Sabia que não teria chegado em casa mais tarde, sem levantar suspeita de ninguém sobre o que aconteceu, se não fosse os cuidados dele para com ela naquela noite. Crânio comprou um lanche para a menina não morrer de fome e levou-a rapidamente para um posto de gasolina próximo para ela usar o banheiro. Magrí aproveitou para lavar o rosto e arrumar o cabelo o máximo que conseguia sem um pente. Não deu para fazer muita coisa, mas pelo menos estava menos pior de quando saiu do forro do vestiário.

O dois pegaram um táxi, e foram todo o trajeto abraçados e trocando alguns beijos. Falavam baixo para o motorista não ouvir.

— Você me deu um susto tão grande. Achei que morreria.

Magrí beijou o rosto de Crânio com carinho sorrindo.

— Eu imaginei. Desculpe, meu amor, mas não havia o que fazer. E você teria feito o mesmo no meu lugar.

O garoto concordou a contragosto, sendo a segunda vez que escutava aquilo naquela noite. Mas ali nos braços um do outro, os dois já esqueciam a tensão e o terror que sentiram nas últimas horas, e só queria aproveitar aquele breve instante até a casa de Magrí, para sentir seus corações batendo enquanto se abraçavam e a suas respirações fazendo cócegas nos seus rostos enquanto se beijavam...

***

O som suave de uma gaita ecoava pela sala de jogos quase vazia, se não fosse pelo seu único ocupante. O tabuleiro de Xadrez estava arrumado para uma partida que só ocorria na mente do garoto prodígio, mas que parecia estar diante de um problema difícil de resolver.

Porém o gênio dos Karas não ficou por muito tempo sozinho. Uma figura adentrou a sala fechando a porta atrás de si e indo em direção onde o garoto estava sentado. Crânio franziu a testa quando reconheceu o amigo Calú. O jovem ator puxou a cadeira oposta, sentando-se sem dizer nada. A expressão dele, no entanto, estava muito esquisita, o que não passou despercebida para Crânio.

— Err... Tudo bem com você, Calú?

O rapazinho demorou para responder, como se os pensamentos estivessem distantes demais para prestar atenção em qualquer coisa. Por fim, ele piscou e balançou a cabeça.

— Ah, desculpe. Olá, você está ocupado?

Crânio apontou para o tabuleiro de Xadrez.

— O que você acha?

Calú olhou para o tabuleiro e deu de ombros.

— Você não está ocupado, então pode me dar atenção agora.

Crânio respirou fundo e contou até cinco para manter-se calmo. Passou dias sem treinar no Xadrez por causa das provas. Aquela tarde, finalmente, viu-se livre para tentar resolver um problema do jogo que ainda não tinha encontrado uma solução. Mas é claro que alguém iria perturbá-lo. A única pessoa que poderia fazer isso sem irritá-lo era Magrí...

— Fala logo, eu não tenho o dia inteiro — retrucou o garoto de forma seca.

— Nossa, como você está de bom humor. Estou comovido pelo carinho.

Crânio revirou os olhos, apoiando os cotovelos na mesa. Para o seu maior desgosto, Calú tirou o tabuleiro da mesa e o colocou no chão.

— Certo, Chapolin! Bem... Err... — o ator dos Karas pigarreou e encarou o amigo de forma sem graça — Não sei por onde começar. É complicado, sabe...

O gênio dos Karas franziu ainda mais a testa. Havia alguma coisa muito estranha com Calú, porque o garoto aparentava estar nervoso. Com o quê?

— Você pode começar pelo começo, já que começar algo pelo fim é impossível... Hipoteticamente falando. — Crânio se empolgou — Porque o fim ainda não existe sem o começo, porque é como o tempo. Entende? O tempo de agora não existe mais porque já virou um passado, então o futuro também não existe, assim como o fim sem o começo... Caramba, nunca pensei nisso.

Crânio estava preocupado com os próprios pensamentos filosóficos, que não percebeu a cara de paisagem de Calú.

— Ãhn? Não entendi um linha do que você disse!

Antes que o amigo retrucasse, o ator dos Karas continuou:

— Eu não vim aqui para discutir problemas científicos malucos, não. Ouviu?!

O gênio dos Karas balançou a cabeça e piscou, mas ainda assim parecia distraído com o próprio pensamento.

— Onde eu li a respeito disso? Eu vou perguntar para o professor Hugo amanhã...

Calú deu um chute na canela de Crânio, que pulou de susto.

— Oi criatura do pântano! Eu estou falando com você! Volta para Terra, ET!

Crânio fulminou Calú com os olhos indignado, mas não deixou barato, pois chutou o garoto de volta.

— O que você quer, hein Calú?

— Isso está mais difícil do que eu pensei — resmungou o jovem ator massageando a canela — Eu preciso falar com você sobre um assunto muito sério.

— E o que seria?

 — Garotas!

Crânio arregalou os olhos para o amigo como se realmente estivesse vendo um ET.

— Nem vem com essa que você não sabe o que é.

— É claro que eu sei o que são garotas, Calú! Por que diabos você quer falar disso comigo?

O ator dos Karas passou a mão nos belos cabelos e se arrumou na cadeira. Pigarreou de novo.

— Bem... Você é a única pessoa no momento que eu posso falar disso.

— Você tem vários amigos... — Crânio levantou uma sobrancelha — Eu seria a última pessoa quem você deveria procurar.

— Não, tem que ser você, Kara. Meus amigos vão tirar sarro da minha cara se eu disser algo para eles. Miguel está fora de questão e Chumbinho vai de rir de mim. Só resta você.

Ficou óbvio para Crânio que Calú excluiu Magrí da lista de propósito. Aquilo só fez o garoto sentir-se suspeito e ciumento. Então Calú achava que seu único concorrente por Magrí era Miguel? Só porque ele era uma galãzinho de meia tigela achava que poderia ter qualquer garota que quisesse? Aqueles pensamentos deixou Crânio muito zangado. Se fosse verdade...

— Entendi, eu acho... — ele deu um meio sorriso zombeteiro — Mas eu me recuso a falar desse assunto em circunstâncias normais. Preciso de stress e estímulo.

— Que tipo de stress e estímulo?

***

O ginásio de esportes do Colégio Elite sempre ficava aberto após o horário das aulas. O único setor que era fechado e só poderia ser aberto por professores, era a sala de lutas corporais como o Karatê, o Judô e o disputado ringue de Boxe Olímpico.

Os dois Karas arrombaram a porta, o tempo todo vigiando para verem se nenhum segurança ou aluno xereta estava por perto. Se fossem pegos, levariam outra suspensão, o que não contribuiria em nada para a reputação deles.

Os dois vestiram as luvas pesadas e entraram no ringue. Calú parecia nervoso e cada vez mais confuso.

— Você tem certeza de que isso é uma boa ideia, Crânio? A gente pode acabar se machucando de verdade.

O gênio dos Karas deu de ombros, com o sorriso de zombaria sem deixar seu rosto.

— Eu não me importo de ficar com o rosto cheio de hematomas. Já você...

Calú levantou a cabeça.

— O quê? Você acha que eu me importo de me machucar? Você não me conhece!

— É o que veremos. Enquanto isso, você pode falar seja lá o que você quer falar.

— Bela maneira de convers —

Calú não completou a frase. Em dois segundos, Crânio o derrubou com um soco certeiro bem no queixo.

— O que você estava dizendo mesmo? — Crânio riu — Você é lento demais.

O ator dos Karas se levantou num pulo, avançou e tentou acertar o rosto de Crânio, mas ele se desviou. Não estava indo bem com a mão direita, então resolveu investir com a esquerda e finalmente conseguiu acertar a bochecha do amigo. Porém para o seu desgosto, ele não caiu.

— Você ainda vai me pagar por aquele soco no meio da rua — grunhiu Calú — Mas o nosso assunto. Garotas. O que eu quero dizer é que eu estou apaixonado, dessa vez para valer.

Crânio trincou os dentes já imaginando quem seria a felizarda do garoto. Foi para cima de Calú com toda a força que tinha. Tentou socá-lo, mas o rapazinho estava aprendendo a ser mais rápido e desviar das investidas.

— E daí? Qual é o problema? — Crânio já estava suando.

— Eu não sei como dizer isso para ela. Acho que ela não vai acreditar em mim.

Mal Calú terminou de falar, Crânio o acertou em cheio de novo. Dessa vez ficou um roxo no belo rosto do ator dos Karas, que caiu novamente. Calú soltou um palavrão. Crânio cuspiu as palavras.

— Por que você acha que ela não vai acreditar em você?

— Você está muito agressivo, p*** m***! Não precisa me matar!

Crânio voltou para o centro do ringue esperando o garoto se levantar. Calú segurou o gemido de dor. Não sabia como dizer para o amigo sobre sua situação e via que ele estava com uma expressão cada vez mais raivosa. O que ele fez de errado?

O gênio dos Karas, por sua vez, parou e refletiu as palavras de Calú. Por que Magrí não acreditaria nas palavras do garoto? Aquilo não fazia sentido. O ator dos Karas se levantou e continuou:

— Ela vai achar que eu só estou tirando sarro da cara dela, ou apenas me aproveitando da situação. Enfim, eu não sei o que fazer.

Os dois voltaram a tentar socar a cara um do outro, mas absortos nos próprios pensamentos. Crânio estava cada vez mais perturbado e com raiva de Calú por querer humilhá-lo com toda aquela conversa. Dessa vez, o soco do garoto foi na barriga do ator dos Karas que gritou de dor.

— Onde você aprendeu esse golpe, Crânio?!

O gênio dos Karas riu com gosto. Nunca contaria para Calú que foi Magrí que o ensinou a lutar boxe. Porém era melhor acabar com aquela brincadeira antes de ser obrigado a levar o amigo para o hospital.

Suspirou. Por mais raiva que sentisse dele, Crânio jamais odiaria Calú, mesmo o achando metido e idiota a maior parte do tempo.

— Diz logo para a Magrí que você a ama e pronto. Ela vai acreditar em você, seu palhaço.

Calú já estava em pé de novo massageando o rim. Franziu a testa para o amigo.

— Para a Magrí? Por que eu diria isso para a Magrí? Não é dela de quem eu estou falando!

Crânio parou e abaixou os braços fitando Calú como se o visse pela primeira vez na vida.

— De quem então?

— É a Peggy, a garota que a gente salvou!

A expressão de Crânio era de alguém que havia levado um soco.

— Você está namorando com a Peggy MacDermott?

— Bem... Namorando não é bem a palavra certa — Calú massageou o pescoço — Eu diria que estamos nos conhecendo ainda. Eu passei um tempo com ela esses dias e até já a beijei...

Calú por alguns segundos pareceu sonhar, mas voltou rapidamente a realidade. Fitou Crânio e riu alto.

— Você é tão inteligente para a maioria das coisas, mas é uma anta para outras! Quero dizer, acho que me enganei sobre a Magrí. Fiquei melancólico depois que meu professor de teatro foi assassinado e não estava pensando direito. Bem... —  Ele parou massageando o queixo — Acho que eu cheguei sim a me apaixonar por ela, mas não da mesma forma como estou pela Peggy. Você me entende?

Crânio acenou tentando seguir a trilha de raciocínio esquisita de Calú. Ainda estava surpreso pela confissão do amigo, o que significava que o julgou muito mal aquele tempo todo. Será que aquela história sobre a Peggy era mais uma das brincadeiras dele?  

Contudo, talvez lá no fundo, mesmo jamais admitindo isso em voz alta, ele não sentisse inveja do ator dos Karas por ser tão bonito e desejado por todas as meninas do Colégio Elite?

Não era que não gostasse do rapazinho, mas não poderia negar que a inveja às vezes alimentava uma certa antipatia e mal julgamento, achando que o jovem ator era apenas um rostinho bonito, sendo que Calú provou várias vezes que era um Kara tão corajoso e inteligente quanto ele próprio.

— Acho... Acho que eu entendo você, Calú — Crânio mordeu o lábio inferior encarando os padrões no chão — Se você diz que está apaixonado, apenas... Sei lá, diga a ela com sinceridade. Não precisa inventar nada, as garotas sabem quando mentimos ou não.

Calú encarou o amigo com um sorriso, já sentindo um gostinho de sangue vindo dos lábios feridos.

— Agora sim você falou que algo que preste! Sabia que você saberia o que dizer, sempre foi o mais romântico de todos os meus amigos.

O garoto disse aquilo não como zombaria como normalmente se falaria, mas como um elogio de verdade — o que pegou Crânio completamente desprevenido. Calú continuou a falar, e cada palavra surpreendia mais o gênio dos Karas.

— Eu não estou tirando sarro de você, Crânio. Nem querendo provar que sou melhor do que você, não percebe isso? Eu torro sua paciência, te dou apelidos, porque eu te admiro. Quem me dera se eu fosse tão esperto como você é, mas eu sei minhas limitações.

Ele riu e passou a mãos nos cabelos agora bagunçados.

— E não pense você que com esse ar de intelectual, que você não tenha admiradoras por aí, por isso não precisa sentir inveja de mim.

Crânio abriu e fechou a boca de tão surpreso que estava por Calú ter praticamente lido seus pensamentos. Sentiu-se envergonhado pelo seu comportamento infantil com o rapazinho.

— Err... Obrigado, Calú. E você tem razão, eu estava sendo um idiota com você esse tempo todo. Desculpe.

Calú acenou de forma afirmativa e antes de dizer qualquer coisa, aproveitou a distração de Crânio para acertá-lo certeiramente no queixo e derrubá-lo. Finalmente.

— HA!  Agora sim estamos quites e posso te desculpar, Peter Parker!

Os dois caíram na gargalhada como duas crianças que se jogaram na grama.

***

O cinema Belas Artes no coração da cidade de São Paulo estava cheio para aquele início de noite. O hall de entrada do pequeno prédio, quase escondido, estava ocupado por uma fila esperando a vez para comprar os ingressos. De uma das salas, um casalzinho saiu abraçado, rindo e conversando e de vez em quando, trocando pequenos beijos rápidos.

Os dois ficaram um tempo abraçados num canto da entrada do cinema sem atrapalhar ninguém. A menina, sorrindo, dizia para o rapazinho:

— Ah está vendo como o filme era legal? Eu te disse!

— Bem, você tinha razão, minha querida — ele riu dando um selinho na menina — Mas o que você queria que eu pensasse com o título? Clube dos Cinco, isso é lá nome de filme?

Ela revirou os olhos sem deixar de sorrir.

— Você é muito exigente, porém não pode negar que você riu assistindo!

O garoto não contestou, é claro. Contudo o que o fez rir não foi exatamente a história do filme em si, mas sim a semelhança física bizarra de um dos protagonistas (qual era o nome do personagem mesmo, Andrew alguma coisa?) com o seu melhor amigo Miguel. Óbvio que Crânio não ia citar o nome do seu líder no meio do seu tão sonhado encontro romântico com Magrí, porque era um assunto sempre delicado.

Com carinho, Crânio segurou a mão de Magrí e a puxou para fora do Cine Belas Artes para a suave noite invernal paulistana.

— Vem, eu reservei uma mesa em uma restaurante legal para jantarmos. Você vai adorar.

Os dois então saíram de mãos dadas ainda comentando sobre o filme. Já no restaurante, Magrí não se decepcionou: era mesmo um lugar muito bonito no qual ela nunca tinha ido. Era todo decorado como se fosse um casarão dos tempos coloniais, mas sem perder o aspecto moderno. A mesa que se acomodaram tinha a melhor vista da noite lá fora.

Era nítido que Crânio tinha pensado em tudo para agradá-la nos mínimos detalhes, o que fazia seu coraçãozinho sentir-se mais aquecido e seus belos olhos brilharem ainda mais para ele.

Na iluminação do restaurante, a garota percebeu que o lábio superior de Crânio parecia um pouco machucado e inchado. Ela estendeu os dedos até o local examinando-o.

— O que houve com o seu lábio, meu querido? Parece que levou um soco.

— Err, não é nada não — mentiu ele — Acho que deve ser só o frio.

— Coitadinho — Magrí se inclinou e o beijou com carinho e delicadeza — Deve estar doendo esse tempo todo e você nem me diz nada.

— Até parece que eu ia reclamar...

Com a chegada do garçom com os pedidos do casal, os dois se separaram, mas continuaram conversando enquanto comiam. Havia um assunto que Magrí vinha pensando há muito tempo.

— Se eu te perguntar uma coisa, você me promete ser sincero comigo?

Crânio a fitou com curiosidade, enquanto cortava a carne do seu prato.

— Claro, minha querida. O que é?

A menina arrumou uma mecha de cabelo teimosa, colocando-a atrás da orelha tentando esconder o nervosismo.

— Sobre as quatro garotas que você beijou, você gostava delas de verdade?

O gênio dos Karas encarou a menina sem expressão, tentando puxar da memória sobre o que ela estava falando. Finalmente, se lembrou da partida de xadrez maluca que jogaram. Tantas coisas aconteceram que pareciam que foram eras, assim como o relacionamento dos dois, que evoluiu entre altos e baixos.

A pergunta, no entanto, pegou o garoto de surpresa mesmo assim.

— Hum, eu não me lembro de ter gostado muito de uma garota antes de você — Crânio estava de fato tentando se lembrar de alguém memorável — Mas porque você quer saber disso, Magrí? Não acho que importa agora. Nenhuma delas é você.

A garota terminou de mastigar e olhou para o rapazinho com ternura e um outro sentimento difícil de dizer.

— Acho que você tem razão… — sorriu fracamente — Talvez eu esteja sendo uma boba ciumenta.

Aquilo fez com que Crânio cogitasse uma possibilidade que ele sempre ignorava conscientemente.

— Mas e você? Eu falei a verdade, acho que eu também mereço saber quantos garotos você já beijou…

Magrí corou até a raíz dos cabelos. Era justo, é claro, ainda mais que os dois estavam praticamente no início de um namoro. Mas como iria dizer para ele um detalhe de toda aquela história que poderia deixá-lo nada feliz?

— Só beijei um número a menos que você. Err, bem acho que um deles você conhece.

Crânio ficou estático na cadeira e a sua expressão enrijeceu. Só poderia ser um dos Karas, eram os únicos amigos que tinham em comum. O garoto estava tão surpreso que não sabia o que pensar direito. Sentiu-se até um pouco tonto pela informação.

Despertou com a voz de Magrí:

— Meu querido, não foi nada e aconteceu há tanto tempo que não importa mais. Mas eu acho que você deveria saber. Não quero segredos entre nós, entende?

Ele acenou indicando que compreendia, mesmo curioso por mais detalhes, sabendo que aquilo não faria nada bem aos dois. Sorriu abertamente.

— É, acho que não importa mais. O importante é que eu amo você.

Magrí corou, sorrindo e acariciou a mão do rapazinho com doçura. Nunca se cansaria de ouvir ele dizendo que a amava.

— Eu também amo você, meu amor.

Crânio teria beijado a garota de novo se não tivesse uma mesa entre eles. Ela era tão linda! É ficava mais linda ainda quando sorria, com o rosto corado, dizendo que o amava. Naquele momento sentiu-se o garoto mais sortudo do mundo por ter conquistado a menina dos seus sonhos.

Se perguntassem para o rapazinho porque ele amava Magrí, ele teria diversas razões ao mesmo tempo que não conseguiria explicar o porquê. Mas sabia que amava, porque jamais se permitiu mostrar-se na sua forma mais fraca a nenhuma outra, nem mesmo sua irmã. Havia algo em Magrí que sempre atraía Crânio como um ímã, e sobre essas coisas não são necessárias explicações.

O tão esperado jantar romântico foi interrompido com a chegada do gerente, que se dirigiu à mesa dos dois. Atrás deles, vinha um outro casal, mas como havia uma pilastra entre as mesas, o recém chegados ficaram por ali esperando.

— Com licença, acho que houve um engano a respeito da mesa. Um outro casal já havia alugado antes de vocês.

— O quê?! — Crânio virou-se par o gerente — Eu liguei ontem, como que já haviam reservado antes? Além do mais, nós já estamos aqui.

— Houve uma confusão na recepção, lamento muito. Já temos outro mesa para vocês dois.

Os dois Karas se encararam sem saberem o que fazer. Magrí acariciou a mão de Crânio novamente dizendo com os seus olhos que estava tudo bem, que eles poderiam se mudar para outra mesa. Era melhor do que causar uma cena. O rapazinho não estava nada feliz com toda a decisão.

Num relance, pelo rabo de olho, Crânio viu o rosto do outro garoto perto da pilastra. Arregalou os olhos e o encarou. O outro rapaz o encarou de volta também com surpresa. O gênio dos Karas fechou a cara.

“Eu vou terminar de arrebentar sua cara, Calú!”

De fato, era o jovem ator acompanhado de uma moça desconhecida com um cabelo curto que parecia peruca — talvez ela fosse cega porque usava óculos escuros — de mãos dadas ao lado dele. Com um sorriso falso, Crânio virou-se para o gerente:

— Com licença, eu vou ter uma palavrinha com outro cara ali.

O rapazinho deu um beijo rápido na mão direita de Magrí, pedindo para ela esperar. A expressão da garota era de confusão. Crânio foi até o outro casal, tomou o braço de Calú e praticamente o arrastou até a saída do restaurante. A expressão de surpresa não deixou o rosto do ator dos Karas.

Lá fora, Crânio fuzilava o amigo com os olhos e quase grunhia:

— O que você pensa que está fazendo, Calú?!

O garoto subitamente começou a rir de verdade. Crânio o olhava cada vez mais feio a cada minuto.

— Então eu estava certo? Você e a Magrí estão mesmo se agarrando por aí? Seu espertalhão! Nem me falou nada!

Crânio corou furiosamente e sentiu-se desarmado por Calú, que não parava de rir como se tivessem contado para ele a piada mais engraçada do mundo.

— Nós, bem… — o gênio dos Karas gaguejou — Estamos só nos conhecendo, tá legal? E não é da sua conta!

Calú limpava as lágrimas de riso do canto dos olhos.

— Aham, sei, acredito em você! Agora eu entendi porque você estava tão raivoso quando fui falar com você!

Crânio ficava cada vez mais impaciente e irritado. Vendo que o amigo não ia aguentar mais aquela conversa, Calú se acalmou.

— Ok, ok! Parei! Não precisa ficar bravo! Credo! Você não percebe como a situação é hilária? A gente reservou a mesma mesa, no mesmo restaurante, no mesmo dia para levar nossas novas namoradas!

Crânio piscou encarando Calú que começou a rir de novo. Percebendo o absurdo da situação, o gênio dos Karas aos poucos também caía na gargalhada, balançando a cabeça ao refletir o que tinha acontecido. O gênio dos Karas encarou o amigo com curiosidade.

— Calú, como você adivinhou sobre eu e a Magrí...?

— Acho que eu sempre soube para falar a verdade... E nos últimos tempos, vocês tinham aquelas caras de culpados e uns olhares estranhos...

O ator dos Karas riu de novo e Crânio o acompanhou, contudo lá no fundo da mente do garoto ele se perguntava se as coisas estavam tão óbvias assim a ponto de mais pessoas perceberem o que estava acontecendo entre ele e Magrí...

Quando os dois se acalmaram, Crânio encarou com Calú de forma mais séria.

— Mas e agora? O que vamos fazer?

Da saída do restaurante, Magrí apareceu ao lado de uma Peggy disfarçada, as duas também rindo.  A primeira fitou Crânio depois olhou para Calú com um sorrisinho irônico. Mas o sorriso se apagou e ela levantou uma sobrancelha:

— Calú, porque seu rosto está machucado?

O garoto abriu e fechou a boca pedindo socorro para Crânio que olhou para cima tentando disfarçar. Peggy comentou:

— Oh my God, is a way worst when I met you, darling!

Na verdade, o garoto havia disfarçado os machucados com a maquiagem que usava no palco, mas que já estava começando a sair. Magrí num rompante socou o braço de Crânio que pulou de surpresa e dor e depois o braço de Calú.

— Hey! O que é isso, Magrí?

— Eu já falei mil vezes que eu ia socar vocês cada vez que começassem a brigar! Francamente, saírem no braço por uma mesa?!

Os dois garotos encararam a moça de boca aberta compreendendo o que ela havia concluído. Crânio estava quase para dizer o que tinha acontecido de verdade e o motivo dos dois estarem de cara estrupidada, quando Calú interpelou o amigo:

— Ok, aprendemos a lição, minha querida Magrí! Não é Crânio?

O rapazinho encarou o ator dos Karas que fez um gesto despercebido para Magrí com os dedos, que diziam para Crânio ficar quieto e apenas concordar. Antes que dedurasse o que fizeram e colocassem os dois em mais problemas com Magrí, o geninho apenas concordou, sem dizer nada. No fundo estava grato por Calú.

A gratidão aumentou pelas próximas palavras do garoto que se dirigiu a Peggy, que observava a cena sem compreender muito o que estava acontecendo.

— Vem cá, my babe. Eu conheço um outro restaurante legal sem gente para interromper. Você vai adorar.

Calú piscou para Crânio e Magrí, tomando o braço de Peggy entre o seu. A menina sorria radiante por trás do disfarce, trocando um olhar cúmplice com Magrí, antes de deixar ser levada por Calú.

A menina se aproximou de Crânio.

— Dá para acreditar nesses dois? E a Peggy não me disse uma palavra sobre o Calú — ela fez um beicinho — Mas você não parecia tão surpreso…

Crânio sorriu de nervoso.

— Ele comentou comigo que havia chamado Peggy para sair com ele. Mas achei que era só brincadeira, você sabe como é o Calú. É difícil saber quando ele está falando sério ou não.

Magrí riu concordando. Crânio a abraçou pela cintura, dando um beijo carinhoso nos lábios dela. Murmurou:

— Vamos voltar para dentro antes que você fiquei com frio.

— Hummm tão romântico! Nunca me decepciona, mesmo depois eu ter de batido...

Crânio corou e sorriu.

— Ainda bem que você gosta por eu ser “antiquado”. E bem, já estou acostumado com o seu jeitinho de resolver as coisas.

A menina riu de novo e repetiu o gesto da amiga Peggy, entrelaçando o braço com o de Crânio. O rapazinho olhava a rua por onde o amigo e a nova integrante dos Karas haviam cruzado.

— Mas acho que eu estou devendo uma para Calú depois de hoje.

— Por quê?

Crânio sorriu enigmático.

— Ah, pela boa educação sentimental dele...


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Notas finais do capítulo

No próximo conto: Crânio e Magrí refletem sobre Peggy, a nova integrante dos Karas. O garoto ainda não está convencido a respeito dela. Porém quando o segredo da existência dos Karas é posto em perigo, resta a americana, com a ajuda do casal, salvar o grupo e provar seu valor.



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