Canção Vintage (Crânio & Magrí - Os Karas) escrita por Lieh


Capítulo 13
Affari di Famiglia - Parte III


Notas iniciais do capítulo

Olá leitores! Finalmente chegamos no fim deste conto, espero que gostem!

Música: I Ran - A Flock of Seagulls



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No dia anterior, São Paulo, 08:30 da manhã

Magrí tentava em vão manter-se calma, enquanto pelo rabo de olho via Crânio remexer-se desconfortavelmente na cadeira ao lado dela. O restaurante, ou melhor, a cantina no bairro do Bixiga não estava muito cheia, apesar de alguns alunos de escolas próximas estarem tomando o café da manhã em meio à risadas e conversas frívolas.

Ninguém do Colégio Elite frequentava aquele lugar, então era a escolha perfeita para encontrar um agente da Interpol sem ninguém desconfiar de nada. Os dois continuaram em um silêncio tenso - Magrí beslicava alguns biscoitos e bebericava do seu chá, enquanto Crânio tomava uma xícara de café atrás da outra.

A menina sabia que quando ele fazia isso era sinal de que o garoto estava apreensivo e que não queria falar. Sendo assim, ela evitou puxar qualquer assunto, por mais que estivesse morrendo de curiosidade para saber mais a respeito do tal agente e do porquê Crânio querer a ajuda dele.

Finalmente, o gênio dos Karas deu sinal que o tal agente Tyler havia chegado. Ele fitou um homem alto com cabelo cor de areia que adentrou o restaurante com olhar desconfiado. Os olhos cravaram no garoto, este que sentou mais ereto na cadeira o encarando de volta. O agente com passos largos foi até eles. Sem dizer nenhum cumprimento, sentou-se na cadeira à frente de Magrí e Crânio.

Ele chamou o garçom e na sua voz arrastada e sotaque esquisito, pediu um xícara de café forte. Quando o garçom saiu, o agente Tyler sem nenhuma cerimônia e sem se importar com o aviso de que era proibido fumar dentro do restaurante, acendeu o cigarro que estava no bolso, tragou e encarou Crânio, desferindo em meio a fumaça.

— I thought our meeting would be private and alone. Why is this girl here?

Crânio levantou uma sobrancelha.

— I'm not sorry, Mr. Tyler. Mas a garota fica, por dois motivos: por ela ser testemunha e por eu confiar a ela a minha vida.

Magrí sentiu as bochechas corarem e o estômago dar algumas cambalhotas. Fitou o garoto ao seu lado com carinho, ponderando o duplo significado daquelas palavras. Ele não a olhou de volta, mas pelo canto da boca sorriu, o que já foi o suficiente para ela.

Contudo, havia algo nos olhos do agente que incomodava a menina, que era muito observadora. Ele, por sua vez, tragou de novo o cigarro sem responder.

— Whatever, I don't carrre much. Show me that note you 'had told me.

Crânio tirou do bolso o bilhete um pouco amassado e colocou em cima da mesa. O garçom voltou com o café e gesticulou para o cigarro aceso do agente com um aviso. Ele por sua vez sorriu cinicamente, apagou o cigarro, depositando a bituca em cima da mesa e bebericou do café. Os olhos se fixaram no conteúdo do bilhete e não havia nenhuma emoção neles, Magrí percebeu.

Passaram longos minutos até o agente quebrar o silêncio.

— You know this can be a trrrick. Right, my boy?

— Of course. Mas eu me pergunto porque essa pessoa se daria o trabalho de fazer tal coisa.

Ninguém respondeu. Magrí não conseguia tirar os olhos do agente, e cada vez mais sua intuição dizia que estavam correndo grande perigo estando com ele. Não se sentia nenhum um pouco segura e se arrependeu de não ter persuadido Crânio para não se encontrar com o agente Tyler.

Tudo nele, para a garota, gritava mal negócio. A disposição do homem, o desdém apático, o modo como a tratou, tudo indicava que ele não era uma boa pessoa. Contudo, o que mais a assustava era o modo como ele fitava Crânio. Era um olhar estranho, tempestuoso em meio a uma calmaria forçada. Era o olhar de uma raposa pronta para dar o bote no cordeiro.

Quando veio esse pensamento, o coração da menina acelerou e Crânio percebeu o desconforto dela. Discretamente, o garoto procurou a mão dela que descansava na cadeira, puxando-a por debaixo da mesa, passando a fazer pequenos círculos com o polegar para acalmá-la. O remédio teve o seu efeito, mas os batimentos cardíacos de Magrí continuaram acelerados, porém agora por outros motivos...

— I think - começou de repente o agente Tyler - the person we'rrrre looking for will be at that family's party tonight. Our investigations believe that the suspect will trrry something therre, because no one will give attention to anything during the party. Also therrre will be many people. The Sicilian mafia works this way.

Crânio arregalou um poucos olhos. Magrí o olhou de relance imitando a mesma expressão, mas talvez não pelo mesmo motivo. Aquela informação era valiosa e confidencial, a garota tinha certeza. Por que o agente Tyler compartilhou tal conhecimento com eles, dois estranhos? Não, não era possível...

Ela sabia que o garoto estava pensando a mesma coisa, mas ele apenas se limitou a acenar que tinha entendido sem responder. O agente Tyler deu a conversa como encerrada e já estava para se levantar para pagar o café e sair. Porém, antes dele voltar por onde veio, Magrí sem conseguir se conter, disse:

— Where are you from, agent Tyler? Your accent is very different from anything I've heard before.

O homem levantou um sobrancelha e sua voz saiu entediada.

— I was born in France, but I've had lived in America since my childhood. Boy, - virou-se para Crânio - If I were you, I'd do anything to preserve my family's name. Anything. Have a good day.

E saiu, deixando Crânio com os pensamentos correndo em sua mente como se fosse uma engrenagem maluca e Magrí mais nervosa.

Pois uma coisa era certa: o agente Tyler não era francês coisa nenhuma, porque a menina conhecia bem o sotaque e o dele era uma imitação tosca. Era como se ele tentasse esconder sua língua materna, e o motivo só a deixava mais ansiosa.

Por mais que fosse um Kara, às vezes há situação que é difícil manter o controle e as emoções - como Magrí iria descobrir amargamente mais tarde - e como aquela. O que a consolava era a mão de Crânio ainda entrelaçada na sua embaixo da mesa...

***

São Paulo, 22:32 da noite

Chumbinho agradeceu mais tarde por não ter negligenciado as aulas de Educação Física no Colégio Elite. Se não fosse por isso, ele jamais conseguiria perseguir à pé o carro onde os dois homens jogaram Crânio desmaiado, no meio da noite. Para sua sorte, as ruas estavam bem iluminadas e o carro não foi muito longe como ele previa - já estava até contando se o dinheiro que tinha no bolso pagaria um táxi - quando chegou ofegante numa quadra próxima onde estava ocorrendo a festa.

Habilmente, Chumbinho se manteve no escuro, enquanto observava os dois homens arrastaram Crânio para dentro do que parecia ser um depósito abandonado. O menor dos Karas, vendo que estava seguro, saiu das sombras para espionar melhor o local. O que mais o surpreendeu, no entanto, foi ver um longo cabo no chão próximo a calçada que continuava para dentro do depósito. Aquilo não fez o menor sentido para o garoto.

Com o coração aos pulos pela corrida e pelo pânico que tentava controlar, Chumbinho escaneou a rua quase às escuras pela má iluminação pensando no que fazer.

"Eu preciso avisar os Karas. Eu não deveria ter vindo para cá sozinho, mas não tenho coragem de voltar. E se alguma coisa acontecer lá dentro nesse meio tempo? Não, não, eu tenho de dar um jeito de avisá-los!"

Em vão, Chumbinho procurou por um orelhão próximo, mas sua sorte não estava tão boa assim. Em desespero, quase desistindo, ele estacou e olhou para o poste de iluminação ao seu lado.

Uma ideia maluca - ideia que só um Kara teria - surgiu na cabeça do garoto. O poste era perfeito para o que desejava, pois era alto, parecia um abajur gigante e estava numa posição que qualquer pessoa nos quarteirões próximos veriam.

Rezava para que alguns dos Karas estivesse perubulando ou nos jardins do local da festa ou estivesse próximo de uma janela para ver a loucura que Chumbinho iria fazer.

Como se fosse um gato de rua, o garoto subiu na árvore próxima do poste de luz até o galho mais próximo da lâmpada. Com um leve sorriso travesso, tirou para o seu prazer a camisa social ridícula que usava, ficando com a camiseta de baixo. Esticou a camisa o máximo que pode, sabendo que sua mãe o mataria por isso quando ele chegasse em casa.

Com a camisa social já toda esticada, Chumbinho segurando as duas mangas como se fosse um saco, jogou o resto do pano na lâmpada três vezes, apagando-a e acendendo-a, apagando e acendendo-a...

***

Miguel estava tentando se livrar daqueles engravatados que o cercaram no meio da festa para conversar. Sentia que perdia tempo e não tinha visto os outros Karas já por um longo período, principalmente Crânio. Alguma coisa lhe dizia que havia algo errado.

Com uma desculpa qualquer, sem nem se importar com o que disse e com a cara azeda dos engravatados, Miguel saiu às pressas a procura de um dos Karas. Algo, porém, no seu canto de olho chamou-lhe a atenção. Pela janela, um poste de iluminação parecia que iria queimar, mas os padrões não estavam certos.

Arregalou os olhos. Aquilo era Código Morse! Com a garganta seca, apertou os olhos para entender a mensagem, enquanto que o Kara do outro lado - só poderia ser um deles! - repetia a mensagem pela terceira vez.

Miguel decodificou a mensagem de cabeça. Após absorver seu conteúdo, com o estômago afundando, saiu às pressas a procura dos amigos.

Os curtos e os longos do Código Morse ecoaram por minutos a fio na cabeça da Miguel, enquanto ele atravessava a festa, a mensagem se repetindo tal como um mantra:

SEQUESTRO. CRÂNIO.

***

A náusea parecia que iria tomar conta do corpo de Crânio quando despertou. Em alerta, percebeu que as mãos e os pés estavam amarrados e a boca tampada para que não gritasse e pedisse ajuda. O lugar onde se encontrava tinha uma luz parca, pois uma das lâmpadas estava queimada. Percebeu também que boa parte do local era feito de madeira, incluindo o chão onde estava sentado, encostado a parede. Com olhos como de águia, que não deixava passar nenhum detalhe, o garoto procurou por seus sequestradores. Havia uma porta no fim de um corredor à frente dele que estava entreaberta, e era possível ouvir vozes abafadas vindo de lá.

A cabeça girava, o que atrapalhava seu raciocínio. Não havia nenhum jeito de enviar uma mensagem para os Karas... Ele esperava que pelo menos alguém tenha visto o que aconteceu. Porém pelo o que se recordava antes de desmaiar, não havia ninguém próximo que poderia ter sido uma testemunha... Mas arregalou os olhos quando lembrou-se de Chumbinho.

Chumbinho! Ele viu o que aconteceu. Então os Karas estavam a caminho...

A dor de cabeça aumentou e por alguns instantes, Crânio apagou de novo.

***

Chumbinho aguardava perto do poste de luz, ainda um pouco ofegante pela peripécia que tinha feito. Esperava que tivesse dado certo, pois do contrário - se os Karas não aparecessem - o menino teria que se virar sozinho para ajudar Crânio. Por mais que fosse corajoso, ele sabia que as chances de alguém sair vivo dali eram mínimas, o que o deixava um pouco aflito e de mãos atadas. Esperou, usando da máxima paciência que tinha, no escuro e sentindo a fome que queria bater-lhe o estômago. Mal conseguiu comer uns salgadinhos na festa...

Pouco mais de dez minutos depois, Chumbinho entrou em estado de alerta ao ver vultos e silhuetas que se aproximavam na rua. Ninguém havia passado ali, salvo alguns carros, por mais de meia hora. Sendo assim, as esperanças do garoto se renovaram, mas sabia que deveria ser cauteloso.

Uma silhueta aproximou-se mais de onde ele estava escondido, acobertado pela árvore e a meia luz. O garoto não precisou mais do que cinco segundos para reconhecer a figura de Magrí. Rapidamente ele se deixou ver pela menina, que correu até onde ele estava. Apesar da pouca luz, Chumbinho percebeu que as bochechas da garota estavam molhadas - ou ela correu e suou muito, ou ela chorou bastante. O garoto não sabia dizer e tinha receios de perguntar.

— Magrí, onde estão os outros? - sussurrou.

— Estão vindo! O que aconteceu, Chumbinho? Como veio parar aqui?

Havia ansiedade na voz da menina dos Karas, que não passou despercebido para o garoto.

— Agora não, Magrí. Temos que esperar os outros chegarem.

Ela não gostou da recusa, mas não disse nada e os dois ficaram em silêncio. Poucos minutos depois a figura de Miguel e Calú apareceram na rua e sem perderem tempo, foram até onde estava os outros dois Karas. Miguel tomou a frente:

— Conte sem delongas o que houve, Chumbinho.

Então ele narrou tudo o que aconteceu e a cada sentença que proferia, o rosto dos três amigos se tornavam mais carregados. Miguel comentou pensativo para Calú.

— Pela descrição de Chumbinho, um é o homem loiro da festa. Lembra dele, Calú? Mas e o outro?

Chumbinho tentou descrever o máximo que conseguiu ver do outro homem, até Magrí arfar.

— É o agente Tyler! Só pode ser ele.

— Esquecemos que você o conhece também - disse Calú - Por que ele se envolveu nisso? O que ele quer com Crânio?

— Eu deveria ter dito para ele que o agente não era confiável... - Magrí sussurrou para si mesma, mas foi ouvida por todos.

— Não temos tempo para bolar teorias agora - Miguel encerrou as indagações de Calú - Precisamos dar um jeito de entrar lá dentro e tirar Crânio com vida.

Chumbinho fitou o depósito perto deles.

— Eu sinceramente não faço a menor ideia de como vamos fazer isso, Miguel...

***

— Acorde, ragazzo. Temos muito o que conversar hoje.

Crânio abriu novamente os olhos, dando de cara com o homem loiro que parecia um anjo cruel. O homem tinha um sorriso de escárnio ao fitá-lo. Ele se aproximou e tirou a fita que cobria a boca do garoto.

— Sei que é esperto, até demais, e não irá fazer nada idiota como gritar por ajuda. Do contrário, será a última coisa que você fará. Giusto?

O gênio dos Karas não respondeu quando o homem mostrou-lhe a arma que trazia escondida no paletó, que por incrível que parecia, o tecido estava impecável, sem marcas da força que o menino fez para se livrar de seu agressor. Ele se perguntava onde estava o ex-agente Tyler e o homem loiro percebeu isso.

— HA! Procura por aquele imprestável do Paolo? Ele já vai vir para termos uma divertida conversa. Mas que rudeza minha não me apresentar.

Ao citar o ex-agente, Crânio sentiu uma raiva borbulhando no peito por ter sido enganado. O homem tirou a arma do bolso do paletó e um pano, passando a lustrar o cano do revólver de forma preguiçosa.

A boca de Crânio tinha gosto de ferrugem, mas pelo menos a náusea de outrora havia passado. Qualquer um na situação dele estaria apavorado. No entanto o jovem manteve-se de cabeça erguida, sem demonstrar nenhuma covardia ao encarar seu sequestrador.

— Meu nome é Fillippo Cordopatri, molto piacere. Você não precisa se apresentar, pois sei seu nome - seu verdadeiro nome - e até o seu apelido. Crânio, não é?

Ele acenou confirmando. Fillippo riu sarcástico.

— Os homens da sua família sempre foram mais calados, de fato. Não me surpreende seu comportamento. No entanto, ragazzo, você já é um homem feito e teremos uma conversa na altura de um.

— Muito obrigado pelo elogio - Crânio respondeu irônico - Mas não acho que eu ainda seja um homem feito.

— Ah não? Se você não fosse, estaria implorando pela sua vida, chorando e gemendo que nem um bambino faria, fazendo eu perder a minha paciência e matá-lo antes da hora como os outros. Porém até agora você não fez nada disso. Por isso me prestei em vir até aqui para falar com você. Na Sicília já te tratariam como um adulto, independente da sua idade hoje.

"Não só na Sicília", pensou Crânio quando se lembrou da mesma situação que passou no Pantanal nas mãos da quadrilha do Centurião.

Lembrar daqueles fatos tão recentes despertou no rapazinho todas as perguntas que queria fazer sobre sua família. Fillippo não era a pessoa ideal para aquilo, porém era provável que ele e talvez Paolo/Tyler seriam os únicos a ter uma resposta.

Não era somente aquilo que o intrigava em toda aquela história. Quem era aquele homem? O que queria com ele? Paolo já não era mais um mistério para o garoto: o ex-agente era o filho de tia Matilde com Don Vitório, que assumiu uma identidade falsa para enganar todo mundo sobre suas origens.

A humilhação de ter sido enganado por Paolo queimava no peito de Crânio, mas que tentava conter o sentimento - qualquer coisa que fizesse ou dissesse poderia acabar com sua vida em um segundo. Era preciso cautela, ou seja, era preciso ser um Kara, na sua melhor forma.

— Eu sei o que você está pensando, ragazzo — recomeçou Fillippo - Sou um velho conhecido do seus malditos parentes, que sempre ficam no meu caminho atrapalhando meus negócios... Até Vitório não ter no quê interferir...

Fillippo parou com os olhos vagos, mas Crânio compreendeu o que ficou subentendido. A morte misteriosa de Don Vitório não foi um acidente, afinal de contas.

— Então depois que Don Vitório saiu do seu caminho, você foi atrás de Paolo para fazer o serviço completo? - Crânio levantou uma sobrancelha fingindo calmaria - Ainda não entendi o que você quer comigo, afinal de contas. Já que o seu acerto é com ele, não comigo.

Fillippo o encarou com olhos sombrios, escondendo uma raiva, quase ódio que parecia ter sido reprimida por muitos anos. Quando ele falou, não havia um traço do tom irônico de outrora, mas sim puro desdém.

— Preste atenção, moleque: não gosto de nada inacabado. E você tem uma semelhança com sua mãe que me enoja.

Crânio arregalou os olhos e empalideceu. Pela primeira vez desde que chegou ali ficou surpreso, sem ação e os pensamentos suspensos, como se fosse uma queda de energia. A curiosidade e o receio de saber mais o dominava. Contudo a conversa foi interrompida com a chegada de Paolo. Ele não se deu o trabalho de olhar para o garoto que fingiu amizade.

— Está tudo pronto, Cordopatri. Podemos ir e deixar o moleque aí para morrer.

O homem loiro não respondeu. Continuou limpando o cano da arma que já brilhava, e virou as costas para Crânio encarando Paolo. De súbito apontou o revólver para ele.

— Mudei de ideia, Franchetti. Acho que vou matar vocês dois.

***

Magrí entrou sorrateiramente pela janela que estava quebrada do outro lado do depósito. Com um pulo silencioso, ela chegou ao chão esperando que o barulho não tenha chamado a atenção de ninguém lá dentro. Os Karas estavam com sorte do local ter duas entradas, assim ficaria mais fácil agirem sem serem percebidos pelos bandidos. Os outros aguardavam por ela para darem prosseguimento ao plano de Miguel - ela só esperava que não fosse tarde demais.

Andando da forma mais silenciosa que conseguia, para que a madeira não rangesse com o barulho dos seus pés, a menina tateou no escuro calculando onde Crânio e os sequestradores poderiam estar. Com o dedo indicador, batia levemente na parede conforme caminhava, mas não era batidas qualquer - era a sequência de uma mensagem em Código Morse. Parou e repetiu a mensagem em um longo pio igual a de uma coruja. Esperou alguns segundos e continuou a andar repetindo a sequência, esperando que Crânio pudesse responder de alguma forma.

De repente, ela ouviu da parede onde ela estava parada, três batidas curtas, uma longa, mais seis batidas curtas e três longas. Ela deu um sorriso largo e respondeu, tentando conter a alegria.

***

Por mais que seus pensamentos estivessem uma bagunça pela surpresa de informações, Crânio estava alerta. Passou a ouvir alguma coisa batendo nas paredes que se aproximava de onde ele estava, e com esforço percebeu que as batidas estava em Código Morse. 

Então Chumbinho conseguiu! Os Karas estavam próximos, só precisava dar um jeito de avisar quem quer que estivesse do outro lado que estava vivo e acordado.

Aproveitando que Fillippo estava de costas, enquanto ele e Paolo estava muito absortos na discussão para prestar atenção, assim que percebeu as batidas atrás de si, disfarçando bateu na madeira com o máxima esforço que suas mãos amarradas permitiam.

— We had a deal! - Paolo esbravejava - I'd give you the damn boy and you'd leave me alone!

— Você acha mesmo que eu cobraria tão barato assim, depois de tudo o que você e sua família fez para os Codorpatri em todos esses anos? Você acreditou mesmo, Franchetti? Stupido! Tuo padre si vergognerebbe di te!

— He wasn't my father!

— Ah então ele era tuo padrino? Fez um péssimo trabalho...

Nesse momento, Paolo também puxou um revólver e apontou para Fillippo. Havia ódio em sua expressão e parecia descontrolado. Crânio encarou a cena sentindo-se tenso. Era possível que presenciaria um assassinato? Tanto Fillippo quanto Paolo estavam perdendo o controle de si mesmos por sua longa rivalidade e esquecendo do garoto.

— At least - grunhiu Paolo para o sorriso sarcástico e suado de Fillippo - He married the woman he loved. You otherwise are making the son of the woman you loved your hostage!

— O QUÊ?

Crânio perdeu um pouco do domínio de si. Aquilo era demais. Os dois voltaram-se para ele e Fillippo apenas disse, sem expressão:

— A Sicília tem muitas histórias, ragazzo.

Antes que ele ou Crânio dissesse qualquer coisa, um barulhou de madeira batendo soou pelo depósito dispersando a conversa. Paolo e Fillippo se encaram e saem para averiguar o que estava acontecendo, sem se importarem de deixar Crânio sozinho por alguns instantes. Eles sabiam que ele não correria, pois estava plantando no chão em choque, como se estivesse morto.

***

Miguel aguardava a chegada de Calú tentando conter a impaciência, ora olhando para a rua deserta ao lado, ora encarando a segunda entrada do depósito onde Magrí ,seguida de Chumbinho, tinham entrado. Esperava que os bandidos não os estivessem pegado, mas até ali o plano estava dando certo. Logo ouviu os passos de Calú que se aproximava com uma sacola.

— Você demorou demais, Calú! - ralhou o líder dos Karas.

— Ora essa, eu sou o ator, não o Flash, Miguel! E não foi fácil conseguir esse paletó na festa, e precisei roubar itens de maquiagem do banheiro feminino...

— Tudo bem, me desculpe. Mas... Você entrou no banheiro feminino?!

Calú riu um pouco sem jeito e sem responder, enquanto se preparava para fazer o seu melhor ofício: fingir. Miguel deixou a questão para lá, com medo de saber de detalhes. Haviam outras preocupações.

Logo Magrí e Chumbinho retornaram como dois gatos na noite para o esconderijo onde estava os outros dois Karas. Magrí sussurrou com urgência:

— Conseguimos, eles estão saindo!

— Calú, você sabe o que fazer. Agora!

Com um aceno e já disfarçado, Calú adentrou o depósito. Miguel, Magrí e Chumbinho esperava que o garoto fosse bem sucedido, pois do contrário, todo o plano iria por água abaixo. E poderiam ser mortos juntos com Crânio.

Miguel contou por alguns instantes antes de se dirigir a Chumbinho e Magrí:

— Você e eu temos que ir para a outra entrada procurar onde está Crânio e tirá-lo de lá, Chumbinho. Magrí, você fica caso Calú precise de ajuda.

A menina franziu o cenho em descontentamento.

— Pensei que eu iria com você para libertar Crânio!

— Mudança de planos, não temos tempo para perguntas.

— Mas Miguel...!

A expressão severa do garoto fez Magrí se calar. Porém ela borbulhava de raiva e já imaginava o que estava por trás da decisão do líder dos Karas. Com um suspiro, resignou-se a ficar e ajudar Calú, enquanto via Miguel e Chumbinho sumirem na noite.

***

— Who the hell are you?!

— Hey sir and sir, calm down, calm down. I have a message.

— Mensaggio? Quem mandou mensagem?

O mocinho de cartola e falso cavanhaque sorriu para o homem loiro, dizendo com o seu melhor sotaque italiano:

— Sí, sí. Os seus empregados na festa querem falar com vocês, é urgente. Non ti preoccupare, sou de confiança.

Fillippo e Paolo se entreolharam, o primeiro com o revólver apontado para o garoto de cartola, que não parecia se importar muito. Paolo já iria dizer que não acreditava nele, enquanto Fillippo estava pronto para atirar, quando alguém subiu pelas costas do herdeiro da máfia tapando sua boca com um pano.

Em pânico, Paolo viu que Fillippo foi rendido pelo rapaz de cartola, que corajosamente arrancou o revólver da mão do mais velho com um chute e também colocava um pano na boca dele. Paolo lutou em vão, mas a sua agressora - a mão era feminina - estava em vantagem, pois ele já estava enfraquecendo sob o efeito do clorofórmio, o mesmo que estava guardado no carro que usaram.

Calú respirou fundo e sorriu de admiração para Magrí quando os dois homens estavam ao chão. Ela correspondeu com um sorriso mais contido, o suficiente para o rapazinho concluir que ela era mais bonita do que já tinha observado, mesmo desgrenhada pela aventura...

***

Com muito esforço, Crânio conseguiu soltar uma das mãos que estavam amarradas. Com rapidez, tentava afrouxar o nó da corda que amarrava seus calcanhares, porém com uma mão só demoraria demais.

Para sua surpresa, um esbaforido Chumbinho adentrou o local onde estava seguido de Miguel. Os dois ajudaram o amigo a se soltar e deram um rápido abraço de grupo. Era com alívio que se reencontraram.

Sem dizerem nada, os três estavam para sair do depósito pelo outro lado por onde entraram, quando deram de cara com quilos de dinamite prontas para serem ativadas. Os três estacaram.

— O cabo! - exclamou Chumbinho - Era para isso que servia o cabo que vi na rua do salão de festa e quando cheguei aqui!

— Agora sei do que Paolo estava falando quando chegou - Crânio se abaixou para observar melhor a dinamite - Vai explodir em dez minutos. Posso desativá-la, mas eu preciso de um alicate!

Miguel rapidamente achou um alicate enferrujado no meio de várias caixas e jogou para Crânio. O líder dos Karas vigiava os corredores, enquanto o amigo desarmava a bomba o mais rápido que conseguia. Crânio desativou a dinamite, com um suspiro de alívio. Miguel apressou os dois amigos:

— Vamos, Calú e Magrí estão esperando lá fora!

Mal ele acabou de falar, um barulho de tiro ecoou pelo depósito. Os três Karas ficaram mudos, apreensivos. Com o aceno do líder dos Karas, no entanto, continuaram o caminho para sair dali até o cano de um revólver bem polido aparecer do último corredor.

— Our affaris haven't endend yet, boy.

***

— Magrí, não vai! Miguel não deu autorização para sairmos do esconderijo!

A garota ignorou o amigo ao adentrar novamente o depósito, movida pelo barulho de tiro há poucos minutos. Precisava saber da demora de Miguel e Chumbinho e se eles tinham conseguido libertar Crânio.

Calú a segurou pelo braço:

— Magrí, por favor, não vai!

Em outra ocasião, ela teria gritado com o garoto para soltá-la, mas a menina parecia estar num transe de tanta apreensão pensando no que poderia ter dado errado. Sem pensar muito, ela deu um leve beijo na bochecha de Calú, e saiu correndo.

O rapazinho piscou alguma vezes sem entender nada, sorrindo.

***

— O que quer que você e minha mãe tiveram, é tudo passado. Não vale mais de nada e mesmo me matando, você não a terá de volta.

A calma de Crânio ao falar poderia ser explicada pela fadiga e pela raiva ao encarar Fillippo. O garoto suspeitava que o tiro que eles escutaram foi dado em Paolo.

— Eu não ligo. Já esperei demais, não tenho nada a perder.

Nesse instante, Magrí e Calú vieram por trás do homem e o derrubou. Fillippo bateu a cara no chão e grunhiu de dor e praquejou. Aproveitando sua confusão, os Karas passaram por cima dele para fugir. Estavam próximos do fim daquela loucura.

Eles quase conseguiram sair ilesos.

Crânio e Magrí estavam por último na fila, mas somente a menina viu Fillippo ainda largado no chão empunhar a arma diretamente para as costas do gênio dos Karas. Ela não pensou.

— NÃO!

Com um empurrão, Magrí tirou Crânio da mira do revólver, porém a bala acabou acertando-a. Com um baque, ela caiu e a última coisa que ouviu foi Crânio gritando seu nome e as sirenes de polícia.

***

Magrí deu um leve suspiro seguido de um gemido de dor quando abriu os olhos. A claridade ofuscou seus olhos, mas mesmo assim se esforçou para mantê-los abertos. Estava confusa e os acontecimentos das últimas horas estavam como borrões de um sonho na sua memória.

— Você teve muita sorte. Mais um pouco e a bala teria acertado seu peito.

Ela virou-se e viu Crânio se levantar da cadeira onde estava para sentar na que estava mais próxima do seu leito. Magrí seguiu o olhar dele que se dirigia ao braço direito enfaixado da menina. Entendeu então da onde vinha aquela dor.

— Os médicos já tiraram a bala e os seus pais estão lá fora, mas já vão voltar agora que você acordou.

Magrí franziu o cenho ao girar o garoto. A voz dele saia numa apatia controlada e o rapazinho não olhava para o rosto dela. Observou que ele estava cansado, triste e algo mais que não conseguia dizer.

— Crânio... - Ela fez uma careta pelo gosto de ferrugem que tinha na boca - O que houve? Onde estão os outros?

— Você tomou um tiro, lembra? E os outros foram para casa depois que viram que você estava bem. O detetive Andrade te trouxe para cá no carro da polícia...

Magrí sentou-se na cama tomando cuidado para não mexer o braço enfaixado. Os acontecimentos retornaram a sua mente.

— Aquele homem loiro e o agente Tyler...!

— Fillippo foi preso e Paolo morreu há duas horas.

A resposta direta e seca do garoto a pegou de surpresa. A garota não sabia o que dizer, mas Crânio continuou:

— O detetive Andrade contou o restou da história para nós enquanto você dormia. Em resumo, Paolo estava devendo para Fillippo, mas não poderia pagá-lo tão cedo. Resolveu trocar de identidade por um tempo, mas sua decisão foi apressada após a morte de tia Matilde. Sabendo que a fortuna dos Franchetti iria para ele, recuou e Fillippo o pegou. Paolo me odiava pelo o que aconteceu com sua mãe adotiva, e sabendo que eu era filho da mulher que Fillippo um dia amou, ele tinha um blefe perfeito. Eu seria o "pagamento" do que ele devia. Fillippo era vingativo e não perderia essa oportunidade perfeita.

Crânio parou e pela primeira vez, olhou Magrí nos olhos. Continuou:

— Eles não só iriam me matar, e fizeram questão disso ao atrapalhar as investigações sobre a morte do professor Elias, como também iriam se vingar de toda a minha família com aquela bomba atrelada ao salão de festas e o depósito. A explosão daria a impressão que foi um acidente de gás e os dois sairiam ilesos. Era um plano perfeito.

— Foi o sobrenome naqueles cheques na mesa do delegado, lembra? - Magrí comentou - Igual ao seu, então isso foi coisa do ex-agente Tyler. Ele tentou abafar o caso para despistar a polícia de você.

Crânio acenou concordando.

— Paolo ou agente Samuel Tyler era adolescente quando visitei a Sicília nas minhas férias quando criança. Ele era próximo dos meus parentes de lá, por isso ele estava no álbum de fotos. Fingiu ser meu amigo para me atrair para a armadilha, e tenho certeza que foi ele quem colocou o bilhete na minha mochila, enquanto eu estava delegacia dando meu depoimento.

Silêncio. Magrí queria dizer tantas coisas, contudo o cansaço não deixava. Disse apenas:

— Eu deveria ter dito para você que ele não era confiável.

O gênio dos Karas a encarou.

— Você não deveria é ter se metido na minha frente. Se você está ferida, a culpa é minha.

Magrí fechou a cara. Não estava acreditando no que ouviu.

— E assim que me agradece?! Eu salvei sua vida!

— Mas poderia ter morrido!

— Eu fiz o que eu tinha que fazer, oras! O que um Kara faria. O que você faria!

Crânio não respondeu, mas era óbvio que não estava convencido de nada do que Magrí disse. A garota estava indignada pela ingratidão dele, porém algo lhe dizia que havia algo mais por trás do que ele dizia que tentava esconder dela.

De súbito, ela agarrou a mão do rapazinho que descansava nos lençóis e falou com determinação:

— Agora me escute aqui, cala essa sua boca e seus pensamentos também. Eu não me arrependo e faria de novo se fosse necessário. E você não tem culpa. Fim da história.

Ficaram de mãos dadas em silêncio por alguns instantes. Crânio não disse nada, mas o sentimento de culpa ainda estava estampada em seu rosto. Até murmurar:

— Eu preciso ir, mas volto amanhã cedo. Descanse - antes de se levantar, ele beijou a mão da menina - E obrigada. Por tudo.

Não disse mais nada da conversa anterior, ainda assim aquilo não saiu facilmente de seus pensamentos e nem dos de Magrí.

Quando Crânio saiu, a menina sentiu o coração afundar. Pressentia que as coisas não seriam mais como antes e temia a sua relação com Crânio dali para frente. Se as coisas já eram confusas entre eles, agora estavam muito mais. Sabendo do extinto protetor dele, talvez o garoto se afastaria dela para não colocá-la em "perigos desnecessários". Talvez não, tinha certeza que era isso que ele faria.

Além disso, não conseguiu evitar de se perguntar: o que fez foi por uma questão de dever como um Kara, ou porque era ele? O que aquilo significava, afinal? Não tinha respostas e temia saber seus sentimentos. 

Relações familiares são difíceis em qualquer lugar ou época. Relações de amizade não ficavam atrás... Sentimentos maiores do que isso poderia desfazer laços para sempre. Miguel, Calú e Chumbinho passaram rapidamente por sua cabeça. Teria feito o mesmo por eles? Teria mesmo?

Uma lágrima desceu pela bochecha da menina.


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Notas finais do capítulo

No próximo conto: O que uma ou várias fofocas, conversas mal explicadas podem acarretar em uma amizade? Magrí e Calú se vêem "na boca do povo" após o sinistro assassinato do querido professor de teatro Solomon Friedman. Crânio, no entanto, não consegue esconder seus sentimentos...



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