Made of Stone escrita por littlefatpanda


Capítulo 23
XVII. Minha caixinha de argumentos


Notas iniciais do capítulo

Gente linda, gente boa, gente bela! ♥

O capítulo que vos trago hj não é um extra, mas é mais do que especial. Bom, vocês já conhecem o esquema! Hahahah.
Segundo minhas contas iniciais, serão +/- uns 5 POV’s do Alex. Este é o segundo. Disfrutem na paz.

PS.: respondi todos os reviews (terminei agorinha - desde às 2h da manhã), e nossa!, me desculpem, eu não achei que fossem tantos que eu tinha deixado pra trás. Vou tentar melhorar nisso. E ah, amei todos e amo vocês ♥

Boa leitura!



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Hoje eu fui covarde de novo.

Eu o encarei nos olhos durante o almoço em família inteiro, aquele forçado pela minha mãe por algum motivo evangélico do além, por cerca de meia hora. Meia hora encarando-o, um minuto para abrir a boca, e um milésimo de segundo para fechá-la, com o rabo entre as pernas. 

Covarde.

Não é tão difícil, Alex. É só abrir a boca e dizer:

Pai, você pode ter destruído o meu violão quando eu era mais novo, mas não destruiu a minha paixão por música. Eu ainda vou cantar até meus pulmões falharem.

Pai, lembro da satisfação que foi quando eu trouxe minha primeira namorada para casa, então me pesa dizer que sou gay. Não por estar errado, mas por você ser errado.

Pai, eu sei que não sou o melhor filho do mundo para a minha mãe, e talvez eu soe hipócrita, mas ainda assim eu detesto a forma como a trata.

Pai, me enoja pensar que o único motivo pelo qual tenho moradia, estudos e comida pagos é porque é crime caso se recuse a tal. Me enoja que você seja tão podre por dentro e me enoja ainda mais que eu seja motivo de parte dessa podridão. 

Pai, eu não tenho medo de você.

Pai, eu...

— Eu também sou seu filho — murmurei, desgostoso, ao girar o papel em mãos.

Tudo o que eu precisava fazer era abrir a boca e despejar, mas se isto que eu vivo agora é a calmaria das palavras não ditas, eu sequer consigo imaginar como seria a tempestade delas vomitadas.

Então, mais uma vez, a covardia foi bem-vinda.

O arrependimento de ficar calado nunca vem, porque a simples ideia do arrependimento que viria por haver aberto a boca já me causa calafrios.

Nem terapia iria adiantar.

Preciso de um cigarro, pensei, no automático.

Aliás, quanto da minha vida é vivida no automático?

Calar.

Assentir.

Engolir.

Implodir.

Quanto de mim é, de fato, autêntico?

— Quem sou eu? — sussurrei, antes que me desse conta. Girei o rosto com rapidez para a porta quando ela foi batida, despertando-me dos meus devaneios. — Quem é? — perguntei, mais alto, desestabilizado, robotizado.

Uma parte de mim quis rir por isto.

Palavras vivem saindo da minha boca no automático, sem o meu controle, sem o meu consentimento, sem a minha percepção, e quando eu preciso que elas saiam, a covardia me impede. Mas talvez isto seja o destino, talvez seja assim como as coisas devem ser. Talvez eu precise calar para sempre, e talvez eu mereça cada segundo de agonia que o "para sempre" me resguarda.  

A outra parte de mim já havia jogado o cigarro fora, corria para pegar o desodorante e espirrar pelo quarto para disfarçar o cheiro, enquanto eu tentava reconectar a primeira parte com a segunda.  

A mente e o corpo.

E de novo, ambas funcionavam no automático, embora nem sempre sincronizadas.

Espera. O que eu...

— Espera um minuto — pedi, quando a batida se repetiu, correndo pelo quarto depois de eu pôr o violão no roupeiro e fechá-lo.

... tenho que esconder?

Além do cigarro. 

E do violão do Ben. 

E a minha sexualidade, as minhas opiniões, os meus pesadelos, os meus sentimentos, a minha liberdade. 

Hahaha, Alex, você é tão fodido!

— Eu já abro! — repeti, olhando ao redor, pensando.  

Mas o que falta?

Só então eu enxerguei a caixa aberta em cima da cama, ao lado de um caderno com folhas deformadas e uma caneta. Peguei a caixa com rapidez, jogando dentro dela o papel que eu tanto encarei, a ponto de haver batido a profunda necessidade de tragar nicotina. 

Sequer me lembro de haver levantado e fumado as duas bitucas que acabei de jogar para um canto escondidos ou da paisagem que eu devo ter olhado enquanto o fazia. 

Não fechei a caixa direito, ouvindo a porta abrir, e joguei-a de qualquer jeito embaixo da cama como um vulto.

No entanto, quando olhei para a figura que jazia na porta com olhos curiosos, pude suspirar aliviado e relaxar a postura completamente.

— Ah, é você! — A voz saiu, com um riso, como se não fosse minha. — Achei que fosse minha mãe — expliquei, a sensação estranha se desvanecendo aos poucos.

Caleb soltou um riso pelo nariz, enquanto eu engolia em seco e tentava acalmar a adrenalina que parecia haver corrido pelas minhas veias para todo o meu corpo. 

— Por quê? — perguntou, adentrando mais no quarto. — Tá escondendo os cigarros? — deduziu, olhando ao redor. — Não adianta, o cheiro tá em todo o quarto.

Suspirei, sentindo como se a voz dele houvesse, por fim, conectado os fios que restavam para que a mente e o corpo entrassem em sintonia mais uma vez. Era como os fios de uma televisão, os de som e de imagem.

Quando eu me desligo, eu me desligo mesmo. Cacete!

Será que isso é normal?

Caminhei em direção ao Caleb, puxando a porta detrás dele para fechá-la e passei a chave, inicialmente esquecida. — Pronto — falei, por fim virando para encará-lo.

Ele não havia trazido mochila desta vez, embora eu pudesse ver o volume do celular no bolso da calça jeans. A camiseta azul eu já conhecia, com uma estampa de jogos, mas desejei que fosse verde para combinar com os olhos curiosos que desviaram para a minha cama mais de uma vez.

Especificadamente, para debaixo dela, porque deve ter visto quando eu enfiei a caixa ali.

Me remexi, nervoso.

— O que faz aqui tão cedo? — questionei, chamando sua atenção.

— Ué — falou, com um gesto confuso. — Combinamos às três — falou, sem entender.

Ri, observando-o. — É, mas isto significa às seis — retruquei, achando-o gracioso, antes de me deslocar para a minha cama e sentar nela. — Todo mundo sempre chega atrasado, especialmente meu primo.

Caleb revira os olhos, mas parece desconfortável, sempre voltando os olhos analíticos para mim, como se percebesse meu estado agitado da prévia correria para esconder...

Bom, para esconder tudo o que me envolve.

— Eu posso voltar mais tarde também — murmurou, perdido.

— Não! — exclamei, talvez alto demais. Caramba, quem precisa de drogas com tanta adrenalina? — Claro que não, Caleb — acrescentei, controlando a voz.

Caleb sorri, ainda me estranhando um pouco, mas então retornou os olhos para debaixo das minhas pernas.

— O que tava escondendo da sua mãe?

Cocei os cabelos, desviando o olhar. — Não é nada.

Embora, por dentro, eu achasse graça que ele mencionou minha mãe, em específico, provavelmente já tendo percebido que meu pai jamais aparece de supetão no meu quarto. Geralmente quando quer discutir comigo, me chama para o escritório dele, como um chefe faz com um funcionário.

— Nada? — perguntou, desacreditado, antes de se aproximar mais da cama e fazer menção a se abaixar. — Então eu posso ver.

— N-não — falei, levantando-me e ficando de frente para ele. Caleb voltou à sua posição inicial, sem saber o que dizer.

Ainda assim, eu me perguntava o que tinha de mais mostrar-lhe mais um pouco dos meus defeitos. Será que em algum momento se tornaria muito para ele e ele se afastaria?

Embora Caleb não parecesse assustado ou surpreso com nada que eu lhe contasse. Nada sobre minha família, nada sobre minha vida amorosa, nada sobre a insônia, a música, o trago e as tragadas. Nada parecia lhe afetar, como se fosse vacinado contra tudo. Isto me fazia questionar o que havia ali, debaixo da superfície daquele garoto de treze anos que o marcou tanto. 

O pai que havia “sumido”?

Talvez não, talvez tenha sido algo pior. Talvez Caleb seja tão fodido quanto eu, mas na ignorância que eu mesmo tinha três anos atrás sobre mim mesmo, sequer havia se dado conta. 

— Ok — falei, me abaixando para puxar a caixa de papelão, encarando-a com uma careta, relutante. 

Realmente havia coisa que Caleb não podia sonhar em ver ali dentro, mas eu podia manejar isto.  

— Não precisa — tentou, parecendo até estar com medo do que eu devia guardar ali, analisando meu rosto.

Ri, coçando o pescoço. 

— Não, tudo bem — garanti, encarando-o. — É que é meio bobo — falei, sem graça. — E meio sem sentido também.

— Você tem um diário? — questionou, dando um passo em frente com os olhos alargados em um misto de choque e curiosidade.

— Não — ri, achando graça, enquanto Caleb analisava a tampa.

— “CD’s de Rock” — leu, franzindo o cenho, antes de erguer os olhos para mim. — É isto que é tão importante? 

Sorri de canto, deixando a caixa em seus braços.

Nope.

Eu sabia o que ele estava pensando: era leve, como se não tivesse nada dentro, especialmente algo pesado como CDs.

Aproveitei o momento de relutância de Caleb para puxar a cordinha que eu costumo amarrar de um jeito especial em torno da caixa: era para que eu soubesse se alguém mais havia aberto e tentado dar um nó parecido, mas não igual. Desta vez, no entanto, o cordão estava solto, na pressa de esconder a caixa, então apenas o puxei para a minha mão junto da tampa.

Caleb arqueou as sobrancelhas, vislumbrando os pedacinhos de papéis disformes, dobrados de qualquer jeito quando os jogo de volta ali, depois de usar. Alguns estavam amassados, outros estavam amarelados ou sujos, embora a maioria destes estivesse abaixo dos atuais.

— Cartinhas de colégio? — chutou, mas eu dei de ombros, observando-o.

Caleb pousou a caixa na minha cama e pegou um dos papéis em mãos, erguendo os belíssimos olhos verdes para mim, como se para checar se estava tudo bem que o abrisse. Relutei um pouco, me sentindo mais exposto do que pensei que me sentiria, mas assenti positivamente. 

Ah, foda-se!

— Não são cartinhas — revelei, ao passo que Caleb o abria. — São argumentos.

— Argumentos? — murmurou Caleb, distraído, ao passo que lia o que dizia no papel. Franziu o cenho, e eu sorri para isto, ouvindo-o reler em voz alta em um tom questionador: — "Menti pra Alicia sobre o Charles. Sei o que ela teria feito se eu não mentisse e não queria que isto acontecesse"?

Ri da careta confusa do Caleb.

Aquele não era muito importante, mas como todos, eu me lembro perfeitamente de quando escrevi.

— Era um exercício que a professora nos deu no colégio quando eu tinha uns onze anos — contei, sorrindo. — Quando a gente fizesse algo que soubéssemos que era errado, devia escrever o motivo de haver feito aquilo. — Caleb inclinou o rosto, confuso. — Qual era a nossa motivação de haver aprontado? Qual a justificativa de fazer algo errado sabendo que é errado? Qual argumento tínhamos a nosso favor? — Encenei, rindo em seguida.

Caleb releu o papel, um vislumbre de compreensão passando por seu rosto.

— No final do ano, depois de muito pensar naquilo, devíamos reler o papel e reconsiderar se aquele argumento ainda era válido ou se tornou-se bobo — expliquei, relembrando da época. — Se eu me arrependesse do que fiz, teria que rasgar ou queimar o papel, como um ritual de perdão próprio. E se o que fiz de errado foi com ou para alguém, eu teria que pedir desculpas para a pessoa. 

Caleb assentiu, voltando os olhos para a caixa tomada de papéis intactos. 

— E se não tivesse se arrependido? — apontou, voltando os olhos para mim, como se já soubesse.

Assenti, rindo.

— Se eu ainda achasse que tinha razão em estar “errado” e meu argumento ainda fosse válido para mim, devia guardar por mais um ano e tentar outra vez — contei, lembrando das regras dadas pela professora.

— Então... Todos esses argumentos — tentou a palavra, estranhando — são de coisas erradas que você fez desde os onze anos e não se arrependeu?

— Sim — concordei, cínico, e Caleb soltou um riso pelo nariz. — Quase ninguém fez, porque o exercício não valia nota e aquela mesma professora deixou o colégio, tipo, um ano depois — relembrei, pensativo. — Mas eu gostei e continuei fazendo até hoje, às vezes sem escrever o argumento, só escrevendo o que eu fiz. Por isto você pode ver que tem uns bilhetes mais antigos e outros mais atuais. 

Caleb assentiu.

— Eu ‘tô vendo — riu, sem graça, mexendo por cima dos papéis, voltando ao que ele deixou na cama. — E o que foi que você mentiu para a... — checou — Alicia?

Relembrei do rosto oval de Alicia, os cabelos castanhos e os olhos claros, bem como aquela irritante mania de morder os lábios cinquenta por cento do tempo. E de Charles: os cabelos pretos estupidamente lambidos, o sorriso de canto e as calças coladas.

Sinceramente, quanto mais me recordo dele e de Alicia, mais penso que os dois combinam perfeitamente. Não me surpreenderia se estiverem casados daqui uns anos. 

— Charles era um garoto que eu odiava e que me odiava — contei, lembrando das nossas desavenças. — Na verdade, eu tinha uma quedinha por ele — revelei, porque Caleb já sabia de tudo mesmo — e eu o odiava por isto, já que era errado — enfatizei, revirando os olhos. — Ele também era um otário, só que essa minha amiga gostava dele, então eu inventei sobre um rumor que ele espalhou dela pra que ela desencanasse dele — contei, dando de ombros. Caleb parecia não saber se ria ou se me repreendia. — Eu sei — concordei, dando de ombros. — Horrível da minha parte, mas não me arrependo. Ele era um otário e também alguém que eu gostava, e ela era minha amiga. 

Caleb piscou algumas vezes.

— Nossa — riu, achando graça.

— O que foi? — reclamei, cruzando os braços. — Até parece que você é um santo, né, Caleb?

Ele revirou os olhos antes de pousá-los em mim, ainda com um sorriso de canto. — Eu nunca faria isto — argumentou, simplesmente.

— Ah, é? — questionei, atiçado. — Se um amigo seu gostasse da mesma pessoa que você, e esta pessoa fosse conhecida por ferrar com todas as garotas que ficava, você não ia impedir que ficassem juntos?

Caleb se demorou com os olhos verdes nos meus, pensativo.

Balançou a cabeça, saindo do devaneio próprio que eu daria um fígado para saber qual era.

— Por que insiste que ele era um cretino? — perguntou, e quando eu abri a boca, ele finalizou: — Você não deixou que ficassem juntos porque gostava dele e não porque era um cretino — deduziu, mas eu neguei.

— Tá errado — apontei, sorrindo. — Eu menti por causa das duas coisas. Não teria mentido se fosse só porque gostava dele e também não teria mentido só pela fama de cretino. 

Caleb assentiu, desistindo da discussão, ao passar as pontas dos dedos pelos outros papéis. Juntou um mais amarelado e amassado, enquanto eu engolia em seco mais uma vez. 

— Posso? — perguntou mais uma vez, com medo de estar invadindo minha privacidade.

Apesar da sensação de exposição, já que sabia que nem todos os bilhetes eram desimportantes como esse - aliás, poucos eram -, por algum motivo eu não me importava que Caleb me desnudasse. 

— Desde que não leia em voz alta — pedi, procurando seus olhos com os meus.

Caleb assentiu, seguindo em frente enquanto eu espiava, ao seu lado, qual era o papel irregular que ele abriria. Se fosse um dos atuais, ao menos eu podia impedi-lo. 

Não era.  

”roubei as fotos da agatha pra mim e escondi. tava com medo de esquecer dela e que a mamãe jogasse fora”

Engoli em seco, reconhecendo minha letra infantil, e o vi morder o lábio inferior, subitamente desconfortável. Optou, para o meu alívio, não comentar sobre este, e abriu outro com rapidez, já que não obteve nenhum protesto da minha parte. 

“empurrei a professora e levei adiv advertência. foi ela que começou. disse pra eu esquecer minha irmã”

Caleb pulou o argumento mais uma vez, enquanto eu sentia o gosto amargo na boca ao lembrar daquela cena.

Eu havia a empurrado várias vezes enquanto gritava com ela, diante de toda a classe, e quando as lágrimas começaram a cair, eu saí correndo. Meus pais me encontraram na rua naquele dia, porque eu havia pulado o portão do colégio, e me passaram sermão.

Que tipo de professora diz algo assim para um garoto de onze anos traumatizado?

Caleb abriu outro. 

”fui suspenso da escola. não quis estudar nem fazer nada. ODEIO aquele lugar!!”

E mais outro.

”hoje eu menti sete vezes. tô nem aí. a boca é minha e eu que decido o que falo ou não”

E mais um.

”roubei uma foto do armário do charles. porque-”

Soltei um som pelo nariz com esta, observando o rabisco que quase rasgou a folha após o “porque”, chamando a atenção do Caleb. 

— Estava escrito “porque eu sou nojento” — esclareci, as orbes verdes em mim. — Mas eu mudei de ideia quanto a isto, embora ainda não me arrependa de ter roubado a foto dele na época — acrescentei, rindo.

Caleb forçou um sorriso, desconfortável, e eu franzi o cenho, curioso.

— Alex — tentou, cauteloso, ao largar o papel na caixa —, eu acho que eu não devia mais ler. Toma. É pessoal — disse, empurrando a caixa para o meu lado. 

Observei-o bem, ponderando se era desta vez.

Desta vez eu teria o afastado mesmo?

— Eu não me incomodo — garanti, sério, quase em uma súplica de que continuasse a descobrir mais sobre mim.

Talvez se descobrisse o suficiente, saberia quem eu sou de verdade e se afastaria de vez. Ainda assim, prefiro que o faça logo do que demore anos para perceber e, quando eu tiver completamente apegado a ele, ele se vá. E eu tinha uma estranha certeza de que isto aconteceria um dia. 

Mas Caleb negou veemente. — Não quero mais ler.

E eu entendia.

Aquilo havia, na verdade, se tornado uma espécie de despejo emocional para mim. Eu sempre me sentia um pouco mais aliviado quando anotava, como se parte do tormento - o que geralmente era o caso - ficasse grudado no papel.

Às vezes eram coisas bobas, apesar de eu realmente sentir que não tinha por que me arrepender delas, mas geralmente eram coisas erradas movidas por sentimentos errados. Coisas que haviam me incomodado, me perturbado, me doído. 

Eu podia recordar quase perfeitamente da ordem dos meus argumentos, e o do momento de cada um.

O primeiro ainda me causava um reboliço no estômago.

não consegui me despedir dela. não consegui pedir desculpas. porque não quero ir naquele lugar horrível”

A caixinha, cinco anos atrás, era uma pequenina de madeira, antes que eu precisasse de mais espaço. Apenas os argumentos daquele primeiro ano couberam lá, e agora aquela mesma caixinha era esconderijo de cigarros e maconha. 

Me recordava dos demais argumentos daquele mesmo ano também.

“dei um soco no charles. ele disse que eu me acho”

“queimei as fotos de família e levei castigo. não gosto mais da família”

“chamei a caroline de palerma e de feia. só porque ela tava de mãos dadas com o charles e disse que eles eram namorados. não gostei”

“quebrei a cama dos meus pais e levei uma surra. porque tava pulando em cima como pulava com a agatha”

“queria estar morto. porque se tivesse não sentiria dor no peito. talvez encontrasse a agatha”

Confesso que odiava abrir estes, porque odeio aquela versão mais frágil de mim. Era como se eu literalmente pudesse sentir a ferida abrir novamente só de abrir os papéis para ler. 

O argumento do empurrão na professora e o das fotos da Agatha, abertos por Caleb, também pertenciam a esta pilha amaldiçoada. O restante já havia sido transferido para o espaço maior, junto das outras as quais eu também não poderia esquecer. 

“fingi que gostava de esportes só pra ficar longe de casa por mais tempo. odeio aquele lugar!!”

“eu ODEIO o charles!!!”

Nota-se que eu tinha muito ódio no coração, motivo pelo qual eu não era apenas a ovelha deslocada da família - isto desde que nasci, na realidade -, eu era a ovelha deslocada do colégio.

Os professores me odiavam pelos ataques de raiva constantes, a falta de interesse nas aulas e meu jeito desbocado de ser. Eu ainda levei muito tempo para conseguir controlar minha raiva e interagir com os meus colegas.

Foram três anos desde a morte dela e mais um ano despejando argumentos em uma caixinha até que eu pudesse começar a me interessar por fazer amizades e seguir minha vida miserável como se nada tivesse acontecido. No total, foram quatro anos desde a morte dela antes que eu percebesse que eu não devia insistir em superar, porque não superaria nunca. Foram quatro anos para que eu aprendesse que eu tinha que suportar, e tinha que suportar do meu jeito, já que eu só podia depender de mim. 

— Eu não me importo — repeti, mais uma vez, ao sentar na cama, a caixa de papelão entre mim e Caleb. — É bom poder compartilhar isso com alguém. 

Caleb franziu o cenho.

— É, mas agora todos os seus amigos já sabem sobre você — lembrou, se referindo à parte dos segredos que compartilhei com ele não ser mais um segredo.

Sorri, mais para mim mesmo do que para ele.

— Caleb, saber sobre minha sexualidade nada tem a ver com saber sobre mim. Você sabe sobre mim — falei, puxando o cordão e enrolando nos meus dedos. — E sabe mais do que eu falo — deduzi, incerto, antes de focar os olhos nos dele. — Não sabe? 

Observei-o engolir em seco, os olhos mais alargados que o normal, mas não os desviou dos meus.

Eu tinha essa impressão, que talvez fosse boba, de que Caleb consegue ver minha alma apodrecida só de me olhar. E eu tinha quase certeza que essa impressão se dava por causa dos olhos, como os da minha irmã. 

Agatha me enxergava e Caleb me enxerga também.

Eu sentia como se os dois fossem como duas peças de um mesmo quebra-cabeças, o da minha vida, e que eu não conseguia montar. Não conseguia pôr em ordem, não conseguia pôr cada peça em seu lugar. 

Toda vez que o Caleb me olha daquela mesma forma, é como se eu tivesse a resposta para tudo na ponta da língua, como se o quebra-cabeças estivesse prestes a se encaixar novamete, mas a resposta e a conclusão nunca vinham. Era uma sensação dolorosamente boa, mas também desesperadora por eu não conseguir resolvê-la. 

E aqui estou, do mesmo jeito. O quebra-cabeças continua bagunçado, fora de ordem, entorpecido, e está cada vez mais longe de um conserto. E quanto mais longe, mais cansado eu fico e menores as chances de resolver. 

Eu sequer sabia se havia um conserto, ou se a vida era assim mesmo: estar constantemente correndo atrás de uma solução, de uma explicação, de um encaixe de peças, e jamais conseguir alcançá-la, como se estivéssemos em uma esteira. 

Qual o sentido de viver sem saber o sentido da vida?

Qual o sentido de continuar existindo se a tua existência não faz sentido algum? 

— Não sei o que quer dizer — murmurou, aquiescido.

Mas ele me olha daquele jeito e eu sinto como se eu não precisasse fazer sentido algum, como se eu só precisasse existir. 

Balancei a cabeça, com uma careta, coçando o pescoço.

— Nem eu sei, Caleb — concluí, com um suspiro, sem olhá-lo nos olhos.

Como se para fugir do silêncio desconfortável, Caleb puxou a caixinha para ele, sentando na cama com as pernas cruzadas como um índio. Apenas quando abriu mais um papel, olhei para ele novamente, percebendo que havia acatado meu pedido sem sentido. 

Quis deixar com que os lesse sem supervisão, mas então recordei-me dos papéis atuais, nos quais ele não podia pôr as mãos de jeito nenhum. Arrastei-me até parar ao seu lado, apertados na cama de solteiro para que nenhum dos dois caísse de um dos lados.

“fui suspenso do colégio mais uma vez. briguei porque todo mundo é uma droga!”

Caleb sorriu para este, soltando um som pelo nariz, e o imitei, dando de ombros. Eu sabia bem a sequência de coisas de “garoto mau” que viria depois dessa, certo de que foi isso que o fez sorrir. 

Ponderei se ele abriria mais alguma delas:

“peguei várias vezes as bebidas do pai. porque a sensação é boa”

“hoje eu desejei coisas que não devia”

“fugi do colégio com o pessoal mais velho. foi bom”

“fui suspenso do colégio. quarta vez”

“bebo todos os dias agora porque faz bem. consigo esquecer daquele dia”

“cuspi no meu pai. não importa o motivo, porque ele me bateu e agora desejo ter cuspido mil vezes. porque ele merece”

Desejei que Caleb não encontrasse este bilhete, recordando-me dele, enquanto o observava vasculhar a caixa em busca de outro, sem saber exatamente o porquê. 

Eu lembrava vividamente daquilo. 

Ele havia percebido que as garrafas caríssimas dele haviam sumido aos poucos, e soube que eu era o culpado. Talvez nem soubesse, na verdade. Não tinha provas, não perguntou, não me xingou, só entrou no meu quarto, me puxou da cama e tirou a cinta para me dar uma surra. Cuspi na cara hipócrita dele, então ele só parou de me bater com os gritos da minha mãe. 

Eu tinha doze, talvez treze anos, e nunca mais esqueci. 

Bisbilhotei o próximo que ele abrira, aliviado:

“pichei o muro do colégio e assinei com o nome do seth. ele foi suspenso. odeio aquele cara!” 

Caleb arqueeou as sobrancelhas.

— Por que odeia o Seth? — brincou, querendo descontrair.

Sorri. — Ele era uma versão mais velha do Bruce — optei por dizer, referindo-me ao garoto que gosta de atazanar o Mason.

Não há colégio no mundo em que não haja, ao menos, um valentão.

Caleb assentiu, então, como se também aprovasse a minha atitude ruim. Ponderei se ele também deixaria aquele bilhete ali para sempre. Mais ainda, ponderei que tipo de argumentos Caleb escreveria para justificar as atitudes erradas de sua vida.

Penso que não há nenhuma, ao contrário de mim. 

“fumei cigarro e não gostei, mas fumei outro. porque queria que eles gostassem de mim”

“puxei briga com meu pai hoje. apanhei de novo e não me arrependo”

“fui numa festa que não podia entrar com identidade falsa que a galera conseguiu pra mim”

“hoje fingi ser outra pessoa. não gosto de mim”

“fui transferido de colégio. FINALMENTE”

“beijei um garoto. beijei um garoto. BEIJEI UM GAROTO!!!”

Foi justamente este último, que reconheci antes que ele abrisse, que Caleb escolheu em seguida. 

Eu não sei porque ainda guardo este papel, sinceramente, já que agora sei que não foi errado. Mas não quis me livrar dele. É um dos meus preferidos. Um dos únicos papéis coloridos em meio a tanto preto e branco.

Caleb pareceu hesitar antes de fechá-lo, e então olhou para mim.

— Dean? — chutou, na mosca.

Pigarreei, desconfortável, desviando o olhar.

Levou um tempo, mas eu percebi que já não gosto de falar dele com o Caleb. Sentia como se estivesse traindo os dois, um com o outro.

Cala a boca, Alex! Caleb é uma criança e vocês não têm nada. E nem nunca vão ter. Nunca. Mete isso na sua cabeça de uma vez por todas!

— S-sim, mas... — Tentei pensar ao calar os meus pensamentos, o que foi algo sem noção da minha parte. Pigarreei novamente. — Eu guardo porque foi algo importante pra mim. Não foi por causa dele, eu mal o conhecia, foi por causa do beijo.

Caleb continuou a me encarar, e não pude decifrá-lo.

— Pensei que não fosse necessário beijar pra saber.

Arqueei as sobrancelhas, surpreso que ele lembrava do que eu havia dito. Surpreso que eu lembrasse que eu havia dito aquilo, já que ainda estava bêbado quando disse.

— É, mas talvez seja necessário beijar pra admitir pra si mesmo.

Caleb voltou os olhos para a caixa, quieto, antes de assentir positivamente, sabendo que eu o observava. 

— Talvez — murmurou, parecendo a contragosto, antes de dobrar o papel de qualquer jeito e abrir outro. 

Retesei o corpo inteiro com este, pela primeira vez ponderando se foi uma boa ideia de compartilhar os argumentos com o Caleb, sabendo que havia muita coisa vergonhosa ali. 

“chorei quando ele me bateu no rosto. me arrependo do choro e não do que eu disse. porque meu pai é um monstro e devia morrer

Limpei a garganta, puxando o papel com um pouco de delizadeza de suas mãos, o dobrei e coloquei de volta na caixa.

— Talvez alguns você não precise ler — falei, desconfortável.

Mas Caleb é um anjo e apenas assentiu, concordando.

Sorri para isto, relembrando dos seguintes ao ponderar se algum deles chegaria às mãos do Caleb antes que esta brincadeira de abrir os meus mais patéticos argumentos acabasse: 

“hoje eu fui covarde”

“menti que tava apaixonado por ela e agora a gente namora. e agora eu minto todo dia.”

“beijei o mesmo garoto. tenho namorada. não me importo”

“quebrei os santos ridículos da minha mãe de propósito. ela ficou furiosa. não me arrependo”

“fingi ser alguém que não sou. de novo. e de novo. e de novo. e de novo...”

“puxei briga com alguém que não merecia, mas dean cuidou dos meus machucados depois. sou egoista e não me arrependo”

“fiz minha mãe chorar hoje. de novo. sou cruel e não me arrependo. ela é tão ruim quanto ele. os dois deviam morrer!!

“beijei o charles a força na frente de todos. sou ruim e não me arrependo. (mas doeu quando ele me empurrou)”

“eu odeio todas as religiões e quero que a da minha mãe se EXPLODA junto com ela!”

“hoje me escondi igual um covarde”

De todos estes, Caleb, para a minha completa humilhação, abriu o mais constrangedor de todos, aquele que eu sequer me recordava antes que ele o deixasse à vista:

“quero fazer coisas com ele que minha mãe iria desmaiar se soubesse. e isso me faz querer MAIS ainda”

Caleb piscou algumas vezes, e mal terminou de ler antes de fechá-lo, atrapalhado, enquanto eu deixava uma careta se aprofundar na minha cara.

Abriu outro feito um vulto, e eu agradeci mentalmente. 

“eu odeio a caroline ALICIA! caroline é um anjo disfarçado de demônio. demônia é a alicia”

Ajeitei-me ao seu lado, observando sua reação.

Ele arqueou uma das sobrancelhas, debochado.

— Alicia? — questionou, me encarando de canto. — Aquela que você fez o sacrifício de afastar do Charlie porque sua amizade com ela era tão importante?

Ri, batendo o ombro no dele.

— Debochado — acusei, puxando o bilhete para mim. — Em primeiro lugar, aquilo aconteceu antes que eu soubesse que Alicia falava mal de mim para o colégio todo e para o colégio que eu fui transferido também, colocando a culpa na Caroline — falei, estreitando os olhos. — Em segundo lugar, o nome era Charles e não Charlie.

Caleb estalou a língua. — Que seja. — Mas percebi que sorriu de canto.

Agradeci que o próximo que Caleb abriu não fosse, de fato, o próximo bilhete na ordem cronológica, e nem nenhum da série de argumentos relacionados ao Dean que o seguiriam:

“transei com ele. e esse papel vai ficar aqui pra sempre”

“beijei outra pessoa e odiei. não vou mais fazer isto. menti pro dean e não me arrependo. ele não precisa saber que não sou como ele”

“tem vezes que não gosto do dean.”

“hoje fiquei o dia todo com o dean e esqueci o dia todo da agatha. eu sou a pior pessoa do mundo, mas não me arrependo do tempo com o dean. como ela pode me perdoar se eu nem me arrependo?”

“afastei o stephen do dean com mentiras. agora eles se odeiam e não vão mais ficar. não me arrependo”

Ao invés disto, Caleb abriu um que o fez reler várias vezes antes de balançar o papel na minha cara, curioso até a medula, enquanto arrumava-se ao meu lado:

— De quem você está falando aqui? — questionou, os olhos arregalados. — Do seu pai?

Peguei o bilhete que ele havia praticamente enfiado na minha cara, e o li, temeroso de que fosse um atual. 

“cavei meu próprio buraco e não me arrependo. me fodi por minha culpa. mas o único que me arrependo foi de ter conseguido que ele fosse transferido e não demitido.”

— Ah —  murmurei, assentindo. — Sim.

— Você causou a tranferência do seu pai pra cá? — insistiu. — Você só tá aqui por causa disso? — Balançou o pedaço de papel mais uma vez.

Soltei um riso, sorrindo de canto, sem achar muita graça.

— Ridículo, não é?

Eu só queria ferrar com meu pai, na verdade, quando aprontei uma série de coisas sem que ele soubesse.

Primeiro, havia queimado uns papéis importantes da empresa, o que causou uma comoção e a culpa foi toda para ele. Então, mandei pornografia como forma de spam para todos os destinatários do e-mail dele. Pornografia gay, é claro, para dar um toque especial. E por último e não menos importante, entrei no escritório dele na empresa de tecnologias e sumi com o pendrive de uma apresentação importante com patrocinadores.

Tenho tanto orgulho!

Para não o demitirem, transferiram para outro estabelecimento, e ele escolheu Hybridfield, embora eu não ache que tenha a ver com meus tios. Minha tia, irmã dele, nunca se deu bem com ele. São falsamente cordiais. E o marido dela até que tem uma relação boa com meu pai, mas acho que é forçada por causa do Ian, que sempre gostou de mim como gostei dele.

De qualquer forma, aqui estamos. 

Aqui estou, encarando os olhos verdes. 

— Mas não tão ruim também... Ou sim? — perguntei, sorrindo de canto.

Sequer consigo imaginar minha vida sem o Caleb, ou sem qualquer um dos pestinhas. Também jamais teria encontrado aquele grupinho maravilhoso e nem o meu homem mexicano. Minha mãe diria que deus trabalha de formas misteriosas, o famoso "deus escreve certo por linhas tortas", e apenas em casos assim, eu ponderava se ela estava certa. 

Caleb sorriu de volta, mas desviou o olhar com uma rapidez absurda, antes de jogar o papel de volta na caixa. 

Os demais argumentos, os quais me recordo, já não mais se passam em Mallow Coast, e sim, em Hybridfield. E o primeiro diz respeito à minha primeira preocupação com relação a morar aqui.  

“queria ter o dean só pra mim. sou egoísta e não me arrependo”

“não sei se eu amo meus pais e não me importo com a resposta”

“ele tem os olhos dela. não sei o que houve ou que fiz mas não me arrependo”

Caleb.

O primeiríssimo argumento referente a ele, e o escrevi no dia em que o conheci. No dia em pus os olhos nele pela primeira vez.

Não sei de onde havia vindo o sentimento de culpa que me assolou pelo simples fato de conhecer Caleb. Talvez antes mesmo que meu consciente soubesse, meu corpo já tinha noção que eu ia passar dos limites com o garoto. Os limites que eu tanto queria ultrapassar.

Mas havia algo a mais.

Aquela sensação de que eu o conhecia, e que ele conhecia a mim. E era pior do que isso. É como se no primeiro olhar, ele já houvesse obtido todas as informações que precisava ao meu respeito, como um robô, um mais eficiente que o sistema operacional curioso do Mason. 

Mais tarde, eu agradeceria por Caleb não ter aberto este, já que ele saberia que estava falando dele, porque eu já havia deixado escapar sobre a semelhança de seus olhos com os de Agatha.

O próximo argumento era um que ele já ele conhecia.

Pela metade.

“meu pai trai a minha mãe. ameacei ele. não me arrependo.”

— Foi esse o podre que sabia sobre o seu pai? — questionou, os olhos arregalados. — Foi essa a ameaça que usou pra ir pro nosso colégio?

Dei de ombros. 

— Eu sei já faz um tempo, mas agora ele tem uma amante constante — contei, sem dar bola sobre a “privacidade” do meu pai. Ele não se importa com a privacidade de ninguém. — Ela é da empresa dele. Eu descobri e usei isso. O que você precisa entender, Caleb, é que uma informação dessas nunca deve ficar intocada. Se você pode usar, use — expliquei, como uma aula de mau comportamento.

Caleb estalou a língua, sorrindo, mas então o perdeu.

— Sua mãe sabe? — sussurrou, preocupado.

Dei de ombros. — Sobre essa? — questionei, ponderando. — Não tenho ideia. Sobre amantes em um geral, ela sabe sim. Ela não parece se importar, tá ocupada amando Jesus. 

Caleb hesitou devido ao meu último comentário, mas assentiu, aquiescido novamente. 

Remexi-me no lugar, certo de que já era o suficiente. Observei a caixa, desconfortável, e ponderei sobre como eu devia pedir para que parasse de abrir os papéis. Quanto mais tempo passava, maiores as chances de abrir um atual. 

Talvez Caleb conhecesse o contexto dos próximos, mas alguns deles ele não devia conhecer. 

“odeio que ian tenha uma irmã e eu não mais”

“eu quis alguém que não fosse o dean. queria me arrepender, mas não consigo”

“traí o dean e foi bom demais”

“roubei da minha mãe. não importa, o dinheiro ia pra porra do padre mesmo. eu sou mais importante. ou devia ser.

“voltei a fingir ser quem não sou. algum dia cheguei a parar?”

“sinto que to traindo o dean, mas continuo fazendo. agora eu entendo”

“hoje eu fui covarde de novo.”

Caleb pegou a primogênita desta última, com uma ruga entre as sobrancelhas, antes que eu tivesse a chance de pedir para que fizéssemos outra coisa. 

— O que é isto? — questionou, vendo os rabiscos ao lado, além de anotações que mal davam para ser lidas debaixo destes.

Espiei, vendo que alguns números ainda podiam ser lidos.

“hoje eu fui covarde. 6 7 30 45 78 90 99 113 134 156”

— O número de vezes que eu fui covarde sem me arrepender — contei, dando de ombros, ao passo que ele alargava os olhos em pavor. Expliquei, por fim: — Eu ia rabiscando, pra não fazer outros iguais.

Ele me encarou com incredulidade.

— 156 vezes?

Sorri, lembrando de outros dos meus argumentos que tinham rabiscos parecidos mas que, por um acaso, não haviam parado nas mãos curiosas dele.

— Não me olha assim — pedi, gracioso. — Tem mais. Eu só não continuei nesse aí porque não sobrou espaço — expliquei, segurando o riso, antes de bisbilhotar na caixa até encontrar o atual. — Tem um de agora, deve estar aqui em cima. Aqui.

Empurrei o papel para ele, aquele em que eu acabei de substituir o 26 pelo 27, antes que Caleb batesse na minha porta, e ainda antes que eu estivesse fumando na varanda, referindo ao almoço em que me acovardei mais uma vez.  

“hoje eu fui covarde de novo. 3 5 8 16 19 27”

— Nossa, Alex! — murmurou, chocado, antes de rir. — Por que isso? — perguntou, perdendo um pouco do sorriso. — Não te acho covarde. Pelo contrário — acrescentou, em tom baixo.

Desviei o olhar, forçando um sorriso, antes de dar de ombros.

— Às vezes as pessoas são covardes aqui dentro — falei, colocando a mão no peito, antes de focar nos olhos verdes —, mesmo que por fora façam coisas corajosas. 

Caleb me encarou por um tempo, com um carinho que eu não saberia medir. Ou acreditar que era destinado a mim. 

Talvez fosse coisa da minha imaginação, não?

Eu jamais o mereceria. 

— Acho que você é corajoso por dentro também — optou por dizer, mesmo assim. — Só não sabe ainda.

Fechei os olhos, balançando a cabeça, como se tivesse levado um tiro no peito. 

Está errado. 

— Talvez eu não seja e você não saiba ainda — retruquei, abrindo-os mas olhando para longe.

Caleb ficou em silêncio por alguns instantes antes de eu ouvir o barulho de papel novamente. Ainda assim, no entanto, ele finalizou: — É mais fácil o contrário, porque ainda não me enganei vez alguma sobre você — retrucou também, abrindo outro papel como quem não quer nada.

Isso me fez sorrir, e o encarei com carinho.

A conversa me desconcentrou tanto que Caleb já havia aberto alguns sem que eu visse e os fechado, e então, para a minha agonia, encontrou não só um argumento atual comprometedor, mas um argumento atual comprometedor sobre ele

Sobre ele!

“provoquei e não me arrependo. tão sujo.”

Caleb franziu o cenho, confuso, enquanto eu quase me engasgava com a minha própria saliva, tentando pensar em uma saída. 

— O que isto quer dizer? — questionou, genuinamente confuso, e eu pisquei, olhando para longe.

Pigarreei, nervoso, sob os olhos atentos. 

— Hum, não lembro. Eu devia estar bêbado — brinquei, rindo de nervoso.

Caleb estranhou, mas nada disse, ocupado em abrir outro, já semi-aberto, que possuía a mesma estrutura de número do último, antes que eu agisse rápido para acabar com a diversão da caixinha. 

— É melhor a gente...

“hoje eu quis beijar ele. 2 8 10 17 22”

Arregalei os olhos, sentindo todo o sangue esvair do meu rosto, paralisado.

Puta merda. 

Vi que Caleb também alargou os olhos dele, girando o rosto para mim com uma rapidez surpreendente. Sei disso porque eu tive que fazer uma cara de paisagem com uma rapidez surpreendente.

— Este é atual — disse, quase como uma acusação, ao girar a folha de caderno nas mãos, se referindo à ela. Ou à minha letra. Vá saber como ele soube que era atual! — Tá falando sobre o Jillian? — questionou, sem se aguentar.

No mesmo segundo, toda a minha tensão se esvaiu. E não por ele não desconfiar que eu falasse dele, mas pelo tom chateado em sua voz ao pronunciar com nojo o nome do loiro. E não era a primeira vez.

Que fixação com o Jillian!

Sorri, olhando para longe para que ele não me lesse.

— Eu não sinto culpa por ficar com o Jillian, Caleb — esclareci, tentando não sorrir demais. — Você não vai encontrá-lo nos meus argumentos.

Só que ele mal parecia me ouvir, disparando outra em seguida: — Sente culpa por querer ficar com alguém? — sussurrou, para o meu desespero. — Por quê?

Engoli em seco.

Por tantos motivos. 

Porque ele é mais novo e ingênuo e não quero corromper nenhuma parte bonita dele. Porque ele é meu amigo, e amigo do meu primo. Porque ele me ouve, me vê, e se importa comigo.

Mas, principalmente...

— Porque não sou bom pra ele — murmurei de volta, focando os olhos no rosto curioso que me encarava de perto. 

De tão, tão, tão perto! 

— E é bom para os outros? — perguntou, franzindo levemento o cenho, sem sair do transe que parecia entrar, com o olhar pesado.

Observei os cabelos castanho-escuros emoldurando o rosto que parecia ser pálido por natureza, e os olhos verdes destacados, senão por algo, então por eles próprios. O nariz, já não mais tão redondinho, com pequenas e quase transparentes sardas nele, e a boca entreaberta. 

E ali estava novamente.

A vontade de tomá-lo para mim.

E eu não podia.

Céus, por que eu não podia?

Soltei um som rápido pelo nariz, fechando os olhos para quebrar a conexão, recordando da resposta para a pergunta dele e dando-me conta de que era a mesma resposta para a minha.

— Não — murmurei, abrindo-os com melancolia —, mas eu não me importo com os outros.

Mais uma vez, no automático, como se meu corpo se recusasse a assinar embaixo das ideias exaustivas da minha mente, levei uma mão para o seu rosto. Acariciei sua pele, vendo que ele piscava demasiadas vezes em surpresa e, talvez, em nervosismo. Então, percebi que nem mesmo minha mente queria concordar com ela própria, quando finalizei: — Com os outros, não — repeti, em um sussurro, com um sorriso terno, encantado demais pelo garoto dos olhos verdes.

Observei-o engolir em seco, sem uma única vez desviar os olhos dos meus, como se me estudasse. E eu a ele.

O grito da minha mãe no andar de baixo nos despertou, e vi Caleb se afastar tanto de mim que quase caiu da cama, como se fugisse da morte. 

— Alex! Tem uns amigos seus subindo! — avisou, ao passo que eu ouvia os sons abafados, provavelmente da escada.

Engoli em seco com o afastamento de Caleb, que enfiava os papéis que caíram para dentro da caixa com rapidez para o lugar, sem me olhar uma segunda vez. Eu senti isso, mas também me senti aliviado pela interrupção, porque já podia perceber que nem sempre posso confiar em mim mesmo.

Como poderia?

Eu me traio.

— Ok! — gritei de volta, levantando-me com desnorteio, mas antes que o fizesse, Caleb já enfiava a caixinha de argumentos embaixo da cama sem que eu pedisse. 

Sorri em agradecimento. 

Mais tarde, eu agradeceria profundamente que Caleb não tivesse encontrado os outros três argumentos referentes a ele, desde antes de querer beijá-lo pela primeira vez até depois de querer fazer muito pior. 

“desejei algo que não posso ter. não me arrependo de desejar. me arrependo de não poder ter.”

A primeira vez que, profundamente, desejei mesmo que eu pudesse avançar no pobre coitado do Caleb.

“hoje eu quase cruzei uma linha. e não quis parar. 2”

A vez em que o cerquei atrás do ginásio e a vez em que o beijei no pescoço.

“hoje eu sonhei com ele. tão tão tão sujo. 3 4 9 12 13 17”

As vezes em que não pude controlar absolutamente nada por estar inconsciente. Mesmo assim, a culpa me assolava - como se eu tivesse consciente -, mas não o arrependimento. Nunca o arrependimento.

Exatamente por isto que, quando todos fossem embora à noite, e eu fosse deixado sozinho comigo mesmo e com as centenas de demônios com os quais convivo, eu iria pegar a minha caixinha de argumentos mais uma vez. Eu lembraria de sua voz, de seus olhos, de sua curiosidade acerca de mim e de tudo o que me envolve, e lembraria da mesma frase que eu encarava nas mãos, saídas da boca dele. Lembraria da urgência em realizar o que sua voz declamara em alto e bom som. 

Com um meio sorriso, eu riscaria o número 22 e o substituiria por um 23, ponderando por um instante que número alto esse pedaço de papel chegaria a retratar.

Não importaria.

Eu precisarei de outro mesmo.


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Notas finais do capítulo

Inicialmente, era um número próximo de 23, mas troquei pra 23 pra fazer um trocadilho com o número (de contagem) do capítulo (embora seja o capítulo @realoficial 17). 2bj.

Gente, eu não faço ideia de onde tirei isto de caixinha de argumentos e do exercício escolar. É literalmente um WTF, mas eu amei o resultado e até me atrevo a dizer que podia ser útil aahahahha. Eu mesma se penso um tempo depois sobre algo errado que fiz ou disse e meus motivos, percebo que eram bestas. Dá pra aprender um pouco consigo mesma com isto.

Sobre o Alex:
Eu sei que ele parece duas pessoas diferentes entre os capítulos, mas é que quando eu coloco pra ele narrar, é a chance de vocês conhecerem mais dele, por isto que tem que ser nos momentos mais deprês e reflexivos. HAHAHAHAHAH. Não adianta pôr ele pra narrar em momentos como o do capítulo passado, porque ele não vai estar pensando nele mesmo ou no seu passado, sabe?

FIC NOVA:
Tô escrevendo uma drabble para o Desafio de Outubro do Nyah. Pra quem não sabe o que é, drabbles são fics com 100 palavras apenas cada capítulo, e o Desafio de Outubro é postar 1 capítulo por dia (escrevendo no dia), com a palavra-chave do dia (postada todo dia uma nova no grupo do Face) inserida no capítulo.
NUNCA escrevi drabbles, vocês sabem que meu menor capítulo deve ter tido mil palavras HAHAHAHHAHA, mas quis participar por quase do tema polêmico: proibidão do Nyah.
Eu trouxe um universitário, um PM e um prefeito pra fic, e se passa no Brasil, no país do Tabu. LGBTQ+, óbvio, e polêmico, óbvio também. HAHAHHA. Se quiserem ler, eu deixo aqui o link:

https://fanfiction.com.br/historia/782758/Intocavel/

Amem, odeiem, mas me digam o que acharam! ♥
Att: 06/2021.



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