A Morte de Eugenie escrita por GabyGraham


Capítulo 4
Último Soneto




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Parei de afundar as unhas na terra, e permaneci ajoelhada à minha sepultura.

Tudo parecia vacilar em torno de mim, como imagens tremidas de um filme antigo. No quadro noturno dos céus; cruzes, árvores e lápides se fundiam em cores turvas na minha visão nublada. E quanto mais meu assassino se aproximava, mais o cenário se distanciava, feito uma pintura em aquarela borrada.

— Eugenie... - ele gemeu com medo, e se jogou de joelhos ao meu lado. Envolveu-me com os braços, num abraço apertado que proferia sua insegurança, seu temor de me perder. - O que está fazendo? Me abandonando? Não seja cruel comigo, não me deixe sozinho...

Quis lutar contra suas garras, e tentei me debater contra a tortura da prisão de seu amor obsessivo. De nada adiantava, ele não me largou, decidido a me condicionar nessa desgraça doentia. Forcei minha voz para expor as palavras que me engasgavam, mas não conseguia falar, afogada em sentimentos perdidos. Grunhi em queixas incompreensíveis.

Robbie me encarou, e me acariciou no rosto descarnado.

— Não fuja de mim. Entenda a minha dor. Desde a primeira vez que eu te conheci, eu tive a certeza de que seria minha. Eu era só um menino... um menino bobo apaixonado pela vizinha bonita.  Mas você me fez descobrir o que é sentir desejo, amor, devoção... - ruía em seus desabafos, de quem tem amargura demais pra guardar somente pra si. -  Eu sempre fui um  incapaz. Sempre me odiei. Então eu me isolava de todos. Ficava sozinho, porque é melhor assim. Não é? É melhor estar sozinho do que cercado de almas mortas em corpos vivos. Você é diferente, Eugenie... Você é uma alma viva.  - declarou, com as fervorosas íris verdes musgo queimando sobre mim.

Não desistente, abri a boca novamente e impeli minha voz. Entre ruídos agonizantes, por fim pude me expressar.

— Robbie... - sussurrei, com dificuldade. Ele arregalou os olhos, atencioso. - Posso ser uma alma viva... mas estou em corpo morto.

— Não. Não para mim. - teimou, dando-me seu sorriso mais triste. - A morte não vai te separar de mim.

Fechei os olhos e me rendi, não havia solução. Não havia saída. Ele estava perdido, tão perdido quanto eu. Voltou a me abraçar. Se ergueu, me levantando em seu colo. Essa carcaça foi conduzida, encolhida e nua, pra dentro da casa. Ele subiu as escadas e me recolou na cama. E nessa hora... Exatamente nessa hora, ele despertou.

Abriu os olhos e se virou na cama, confuso. Olhou-me assustado, como quem acorda de um pesadelo.

— Eugenie... - murmurou, deitando a cabeça em meu peito. - Tive um sonho horrível... Você estava nele. Tentando fugir. Tentando voltar para a cova. Você jamais faria isso, não é? - indagou apreensivo sobre meu cadáver estático.

Delírios,   pesadelos, ilusões. Onde eu estava? O que eu era? A insanidade dele se refletia na minha, um labirinto de conexões que excedem a barreira de vida e de morte. Sonho e realidade. Como eu seria capaz de me reerguer, de me levantar? Se eu nada mais era que um defunto? Como sairia em busca de fuga? Que utopia era essa que eu mergulhava? Suja por esperanças nulas, resquícios de uma fé doentia de que eu seria apta a levantar-me para distante de meu assassino.

Largada ao leito do agente funerário,  perguntava-me oprimida... Meus despertares foram alucinação? E se o foram, por que havia terra sob minhas unhas fragmentadas?

O dia que se sucedeu foi como os anteriores. O garoto me recolocou na câmara fria da funerária, entre outros corpos, na gaveta trancada. As horas seguiam, o tempo passava. Encarcerada à temperaturas baixas, fui mantida escondida.

Neste dia, Robbie recebeu uma visita. Eu não tive como ouvir o diálogo, mas o som de vozes se rastejava pelo silêncio dominador.  Óbvio que era raro o menino ter visitas. As pessoas do vilarejo o evitavam, ele era mal visto, e não havia alguém em sã consciência que desejasse ter sua amizade. Contudo, algo naquela presença importunou o coração acostumado com isolamento. Esse desagradável infortúnio foi sentido em meu espírito, como se os desagrados dele estivessem interligados com os meus.

Por sorte, ou não, a pessoa misteriosa apenas queria conversar. Assim que partiu, Robbie veio até mim, com pavor.

— Eugenie... - ele disse trêmulo, puxando a gaveta que me acomodava na geladeira funérea. - Aconteceu uma tragédia, Eugenie! O investigador da cidade... ele veio até mim... Ele está procurando por provas, ele quer descobrir quem te matou... eu sou um suspeito, e... - sua fala foi interrompida. As pálpebras arroxeadas por olheiras arregalaram-se expondo as órbitas dos olhos cheias de horror. - O que....  O que é você...? - perguntou quase sem ar, recuando alguns passos. Por fim, ele conseguiu enxergar-me como eu verdadeiramente era.

Ah, a dor da lucidez. Que momento fatal e lamentável é esse em que o baque de realidade nos coloca consciente frente às loucuras cometidas. Feito um anormal que comete crime passional, e logo encara as mãos sujas de sangue. Ali estava Robbie, pasmo em constatar minha destruição  pela morte e pela decomposição, sobre a gaveta fria do alumínio.

A presença do investigador, que não passava de uma simples visita, trouxe o agente à razão. Como uma luz que se acende,  Robbie viu. Ele viu o cadáver que dizia amar, já desbotada pela podridão. Eu não era mais aquela estátua alva de outrora, de faces macias e colo de neve como ele idealizava. Eu era um corpo apodrecido, de miserável destino.

Robbie testemunhou a verdade. Apavorado, como quem vê uma assombração, largou-me sozinha e correu pra fora da câmara,  trancando com a chave.

Não havia mais o que ser feito... Nem o que ser explicado.  Ele merecia piedade? Lágrimas? Não mais. Que dormisse com as lembranças negras. Naquela noite, ele retornou. Se possível, pior que antes. A doença o corrompia, emagrecia e enfermava. Bêbado, não encontrava conforto nessa vida desprezível.

Sem dizer uma palavra, pegou-me no colo, cambaleante e cheirando à vinho. Tinha uma garrafa em mãos, onde embargava suas neuras imorais. A cólera de um assassino. O que ele faria? Levaria-me ao quarto? Não... A confirmação de que eu não era a musa que ele imaginava fora dolorosa como um balde de água gelada. Um choque de adrenalina no cérebro adormecido. Ele não me desejava mais. Não me queria mais.

— Confesse-me seus medos, Eugenie. - ele balbuciou ébrio, ácido. - E eu te confesso os meus...

Atravessou a funerária me levando, chegou às portas do fundo e me conduziu para o cemitério.

Aquele maldito cemitério... Mais uma madrugada de névoa outonal e cores foscas. A claridade da Lua era fraca para a vastidão do cenário. O agente tropeçou entre as pedras de lápides e sepulturas. Não sei como, naquelas condições precárias, ele encontrou minha tumba. O lugar onde eu deveria estar protegida, enterrada. O leito onde eu deveria descansar.

Jogou-me na terra macia, e quase despencou junto.

— Aqui estão meus destroços. - fez ele, com um timbre de raiva entonando à voz carregada. Levantou a garrafa, enquanto me observava com olhar de desgosto e tristeza. Pupilas dilatadas de bêbado desiludido.  - O inverno de sua alma me congelou pra sempre.

Dito isso, virou o que restava da bebida em grandes goles. Largou a garrafa, fazendo o vidro estilhaçar em uma lápide qualquer. Limpou os lábios juvenis com o braço, e apanhou a pá que estava caída à um canto. Começou a cavar o meu sepulcro.

Em meu esmorecimento, pela ansiedade mesclada à desistência, eu esperei. Aguardei com expectativa de voltar ao tão almejado repouso.

O ferro da pá tocou o caixão vazio. Na calada do cemitério, ele puxou a urna escura e a abriu. Manteve a porta escancarada. Puxou-me com cuidado e colocou-me dentro. Lágrimas brotaram nos olhos vermelhos do jovem, que não suportou a separação. Ele me entregava ao inevitável caminho. Por medo, talvez, de ser perseguido e descoberto pelo investigador. Por desespero, também, por despertar do pesadelo.

Não existiam meios de me conservar, nem de me amar. Eu me desfazia entre parasitas, e a punição da veracidade convertia os neurônios antes obscurecidos pelo delírio.

— Não queria... - chorou com soluços, feito uma criança. - Eu não queria te enterrar. Mas preciso... Eu estava louco em não perceber seu estado. É horrível ver o crime que cometi. Meu trabalho está acabado e eu não deixo nada.  E se eu não posso te juntar à mim em vida. Então me junto à você... Em morte.

Preso ao cinto ele tinha um punhal. Puxou-o e o exibiu frente à minha face pútrida.

— Veja... - sussurrou, em prantos. - Eu te matei com essa faca. E é com essa faca que eu vou me matar. - anunciou, pondo a lâmina no pescoço. Fechou os olhos, expressivamente angustiado, e fraquejou. O punhal escorregou das mãos. Ele não tinha forças, nem coragem. - Não consigo... - lamuriou, renunciando ao medo. - Não consigo.

— Eu te ajudo. - eu disse, sorrindo.

O menino parou de chorar e me encarou. Nossos olhares se encontraram, e ele sorriu para o cadáver ao caixão. Eu me sentei com lentidão, e toquei a face do agente embriagado. Cobertos por ondas de êxtase e loucura, seja alucinação ou não, eu quis ajudá-lo, e assim o fiz. Apanhei o punhal pelo cabo e apreciei a chance de minha vingança.  Descansar, mas levar comigo o causador de minha desgraça.

— Não chore, criança... Não se assuste. - consolei, colocando a faca unida à sua garganta de pele bonita e lisa, repousada próxima do elevado pomo-de-adão. -  Não chore mais.

— Você fica comigo em morte? - ele indagou, sem piscar, submergindo sem receios numa confiança impossível.

Eu assenti, me apegando à possibilidade de encontrar trégua na sua companhia.  Concordamos em silêncio, sem quebrar o enlace visual, que se ele tirou-me a vida, então era a minha vez de causar-lhe a morte.

Fiz o corte. A lâmina riscou um fio profundo no pescoço, e o sangue da jugular veio à luz da Lua, prateado e intenso. Abandonados os desejos de voltar pra casa, para meu marido e filho, eu me rendia ao irremediável. Estar eternamente em parceria do meu assassino. 

Ele se sobressaltou, e me atacou com um beijo. Vislumbrei febril a vida que evaporava nos seus lábios, enquanto as pálpebras se fechavam. O sangue escorria, nos banhava. E aos meus braços, Robbie Kay encontrou o fim. Naquela noite, éramos somente dois vultos ao solo do cemitério,  cercados por sombras que tremiam ao ondear do vento. As brisas soluçaram os soluços de dois amantes, que se deleitavam ao próprio desfecho.

O corpo dele tombou no meu, de volta para o caixão. Mortos. O punhal, na mão esquerda dele. Havia se suicidado... ou havia se entregado? Não importava. Ao menos naquela hora, éramos dois cadáveres abraçados. Duas almas que se deparavam com  a conclusão decisiva. Juntos, e enfim, em paz.

"Quando dreno meu fôlego, e o brilho preenche meus olhos, beijo-a, ainda. Pois ela nunca mais se erguerá. Em meu escasso corpo, descansa a tua moribunda mão. Através dos prados Celestes onde corremos. Como um ladrão à noite, o vento sopra tão suave, isto guerreia com minhas lágrimas. Que não secarão por muitos anos.  Dourada seta do amor.... Dela deveria ter fugido. E não ao ébano dardo mortal, abatê-la mortalmente."— My Dying Bride, For My Fallen Angel.

Fim

 


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Notas finais do capítulo

Notas finais
Espero que tenham gostado s2 não deixem de comentar pra eu saber o que acharam.