A Morte de Eugenie escrita por GabyGraham


Capítulo 3
Solidão




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As lágrimas pesadas de Robbie continuavam a correr, sobre minha pele e sobre os lençóis. Ele drenava o fôlego e se perdia em lamúrias que ninguém em vida compreenderia, ninguém seria capaz de curar a doença ou salvar o espírito perturbado. Era um perdido em sentimentos corrosivos que o consumiam numa tormenta de solidão.

Juro que, participando de sua  dor, eu tive pena do meu assassino. Parecia inofensivo e desesperado com  soluços de criança que precisa de ajuda.  Uma ajuda que eu jamais poderia dar. Tirou minha vida, afinal, e meu instinto materno era o de protegê-lo de si mesmo. Mas como? Eu nunca mais me reergueria, por sua culpa.  E ele chorou até adormecer em meu seio.

O Sol nasceu agraciando os cenários de Bilburi, iluminando as relvas e campinas do vilarejo. Ouvia distantes o canto das aves que mergulhavam nas nuvens brancas, acompanhado do ruído  suave dos riachos . 

O agente despertou com olheiras profundas. Abatido, tornou a me trajar com o vestido branco, e me carregou pelos corredores compridos de sua casa de paredes de pedras lapidadas e telhados triangulares. 

Alcançou a funerária, e abriu a câmara fria, que trata-se de um cômodo pequeno de temperatura baixa feito um frigorífico, que preservava alguns corpos. Colocou-me numa das gavetas,  bem escondida e fechada com trinco. Se retirou para trabalhar e prosseguir com sua vida, manter as aparências para os moradores e conhecidos. 

De ossos congelados, músculos retesados e pele estirada, permaneci  no cubículo, longe do calor da alvorada, longe da proteção do abraço de meu marido,  e longe do riso doce de meu filho. Confinada em meu estado moribundo, lembrava-me de como eu era quando viva. Nunca tive medo da morte, essa dúvida que afana a existência. Diziam os poetas que a morte é a cessação de todos os sonhos, de todas as palpitações do peito, de todas as esperanças. Então o que acontecia comigo? Por que ainda me restavam tantas sensações? Que maldição era essa em que fui colocada? 

O Sol se foi, e  veio a noite. O expediente do agente terminou. E ele não me retirou. Talvez o susto de me ver acordar tenha o despertado também, para a terrível realidade que cometia. Com a constatação do absurdo,  abandonou-me por dias. E embora estivesse quieta e em silêncio, era como se houvesse uma mão cobrindo minha boca e roubando minha respiração. Eu almejava a liberdade, almejava seguir meu rumo para o descanso eterno, encontrar a paz que todos os espíritos vagantes desejam.

Impossível. Dentro da câmara da funerária e vítima da loucura de um jovem, continuava em meu cárcere, tomada por trevas e frio.

Então certa madrugada, muito tempo após, a luz se acendeu. Era Robbie, que me retirou de minha quietude. Seu semblante era deplorável, adoecido. As bochechas tornaram-se magras e os olhos fundos. Ele iria me enterrar? Naquela hora, ansiei pela chance de voltar para a tumba e por fim encontrar  trégua.

Porém, ele me levou, com seus braços de adolescente, para o leito no quarto. Repetiu o ritual da outra vez, me despiu, e permitiu que calidez da lareira amolecesse o que restava de minha matéria desfalecida. 

— Senti sua falta, Eugenie... Tirei sua vida, para te fazer minha. Mas fui assombrado pela concepção do quão delirante estava sendo. Ou talvez tivesse com medo. Simplesmente isso, medo de você acordar de novo e definitivamente, para se vingar, se voltar contra mim, me odiar, ou me abandonar. - explicou, segurando minha mão. -  Me desculpe te deixar tanto tempo guardada. Já passou o susto, e agora quero te amar como se deve, porque não aguento mais de saudades. 

Declarou e me encheu de beijos como o marido que cuida da esposa no final de um dia de trabalho. Possuiu-me com uma ânsia maior, em seu ato profano, sobrecarregado de loucura e paixão, seus olhos verdes brilhavam em prazer.

Entre minhas pernas, a cada brusco encontro do quadril de Robbie contra o meu, eu recebia o tranco de suas investidas ágeis. Os gemidos roucos e baixos do jovem ecoavam pelo dormitório, e o calor dele retirava qualquer vestígio de minha frieza. Ele distribuía carícias por meus seios e derramava em mim seus toques febris.  Toques esses que pareciam reabastecer minha dependência por vitalidade. 

Após se fartar e acabar com suas doentias saudades, em meus bustos deitou como um filho que precisa de abrigo, pondo o rosto pequeno entre meu ombro e pescoço, para passar o nariz pela orelha e ali conceder sussurros com seus lábios. E quanto mais ele me amava, mais eu sugava desse amor para alimentar a necessidade de reagir, de fugir, de despertar e voltar pra casa, ou pro além.

— Minha Eugenie... - falava sem fôlego, respirando o cheiro de meus cabelos cor de ébano. - Já falei o quanto te acho bonita? Sou sozinho e incompreendido, mas com você me sinto em casa. Você é a família que eu nunca tive, divina como nenhum outro. Se eu pudesse seguraria firme em sua alma e a abraçaria pra se unir à minha...  e todas as minhas esperanças acabariam dentro de você. 

Feito seus  depoimentos de apreço, me conduzindo nesse relacionamento impossível, ele adormeceu. 

As horas passaram. O suor esfriava no dorso dele a medida que descansava e recuperava as energias.  

Naquela noite, eu despertei. O oxigênio veio para meu pulmão como no nosso primeiro contato. Coloquei-me sentada, nua e desamparada.  Acordei, de fato, do lodo? Fitei meu assassino, que dormia como um anjo, e me perguntei se era um sonho? Presa, dessa vez, num pesadelo de Robbie? Olhei ao redor, e o ambiente se formava etéreo.

Me ergui para caminhar pela casa. Precisava fugir. Encontrar meu filho... Quase ouvia seu choro miúdo, chamando por mim.

"Não se preocupe, bebê. Mamãe estará em casa, logo." , eu pensava. 

Lenta e vagamente,  arrastei-me pelo escuro. Segurava nas paredes, e tentava erguer meus olhos  de pálpebras pesadas para os caminhos que se materializavam feito vultos lampejando. No caminho, coloquei-me na presença de meu reflexo em um pequeno espelho que se estendia numa mobília na sala de estar. 

Quis gritar, espantada com a assombração que me encarava de volta. Mas, de minha garganta encarniçada, nenhum som se sobressaiu, por maior que fosse meu horror. Minha nudez que já foi de formas níveas, naquele momento estava em carne exposta, num dos estágios da decomposição.

Mesmo após tempos na gaveta, o vigor da vida já se esvaia, e a minha estrutura física não suportava as reações de pós-morte.  

Me aproximei com os olhos arregalados na imagem refletida. Nas órbitas afundadas, os tons de branco anêmico se misturavam embaçados nas íris que um dia foram reluzentes. 

Eu percebi que não existiriam palavras pra explicar ou exprimir  a ilusão que Robbie sofria.  Em sua inocência desconexa, o garoto me via como uma musa eterna.  Mas o pobre estava enganado. Afinal, eu deteriorava em meu tormento, e no odor pútrido da carne, as larvas e vermes não demorariam pra fazer de minhas entranhas sua casa. E somente o agente funerário não enxergava o quanto eu estava dilacerada. 

Eu chorava tocando meu rosto,  o osso do maxilar surgindo sob rastros de sangue seco e coagulado. Os cabelos longos e quebradiços se esticavam e se emaranhavam como teias de fios pretos pelos meus ombros magros e costas. 

De matéria desgastada e desbotada, macilenta e murcha, fui assolada pelo senso que se decaía em mim. Eu jamais poderia voltar pra casa. Jamais poderia abraçar meu filho, nem meu marido.

Desistia. À mim só restava o sepulcro, voltar para minha tumba e ali permanecer. 

Quanto tempo havia passado? Quão doente estava meu assassino? Até que ponto isso chegaria? Não dava pra suportar. Desviei os olhos abalados e prossegui para onde eu deveria ir... Para o cemitério que me aguardava nos jardins da casa.

A madrugada reinava com seus vapores, rosais borrifados de orvalhos, nuvens aveludadas de intenso azul marinho. A Lua se estendia grande e perolada, clareando as lápides e cruzes. Rumei entre elas, até encontrar o meu túmulo vazio, coberto de buquês de flores mirradas deixadas por familiares e amigos. 

Cai de joelhos, fraca, e afundei minhas mãos cadavéricas na terra macia.  Comecei a cavar, entre lágrimas. Cavei em busca de meu caixão, o local onde eu finalmente me deitaria e descansaria, para aliviar as dores e pânico. Porém, algo me interrompeu.

Folhas que sussurravam ao roçar de um passo misterioso. Levantei a cabeça e logo o vi, se aproximando entre as brumas. Era Robbie.  Em frenesi reconheci as expressivas sobrancelhas de lamento, daquele que não me deixaria partir. E eu sabia que não era amor o que ele sentia, e sim, uma fatalidade infernal. 


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