A Morte de Eugenie escrita por GabyGraham


Capítulo 2
Pálida à Lâmpada da Luz Sombria




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Eu estava pálida, mais que o costume. Em vida, meu sangue intensificava o tom rubro das bochechas, lábios e por vezes colo do busto. Contudo, sem as palpitações do coração, prevalecia a brancura e gelidez de neve. Sentia-me anestesiada pelas aflições de morte. E "sentir" deveria ser absurdo e incabível se levado em consideração onde me encontrava. Acontece que, nesse contexto de dormência física, as vozes da alma aumentam, e os sentidos internos se tornam nítidos.

Na mesa fria, recebi o toque quente do garoto, que ajeitava-me para começar com os procedimentos. De espírito preso à matéria inanimada, presenciei a respiração do agente. As mãos dele, sem luvas cirúrgicas, percorriam meu corpo, enquanto os olhos admiravam meu estado.

— Você é linda, Eugenie. - ele suspirava. - Eu falei que você seria minha... De um jeito ou de outro. Eu vou fazer a sua beleza prevalecer acima das ações do tempo. E ficaremos juntos pra sempre.

Dito isso, ligou os aparelhos para o embalsamento. Tornou a abrir meu abdômen como os legistas fizeram, desfazendo a sutura com a lâmina do bisturi. Retirou os órgãos, para lavá-los um por um com formol. Abriu também a minha cabeça, serrou o crânio, retirou o cérebro. Juntou-o às demais vísceras em um único saco, que retornou para meu interior. Livrou-me das substâncias de pós-morte.

Injetou o formol aos montes pela artéria carótida, e nas veias fluiu a solução aquosa que arrancou o coagular e impurezas. Finalizado esse método, ele pôde por fim me costurar. E o fez com primor e dedicação. Eu deveria ter ódio de meu assassino, que se assimilava à um jovem açougueiro de mãos sutis, com seu avental ensanguentado. Deveria estar revoltada. Mas em mim nada cabia além de uma profunda tristeza.

Novamente suturada, o rapaz acionou a torneira da mesa e me banhou. Tratou de me deixar com o melhor aspecto possível, como quando viva. Secou-me e penteou-me, era eu a sua manequim. Passou meu corpo para o caixão, que era longo e de madeira nobre, adornado em ouro nas bordas.

Havia delicadeza em cada gesto. E para ele, aquele não seria um velório qualquer. Encheu de algodão em minha traqueia, boca e narinas, e após isso, suturou meus lábios por dentro.

Minha roupa estava guardada num embrulho. Era um vestido branco que eu recebera de presente de meu marido há alguns anos e costumava usar  em ocasiões especiais. Comprido, de tecido leve e comportado, possuía bordados no decote e mangas. O traje perfeito para me enterrar.

Após me vestir, Robbie ornamentou meu cadáver com as flores, brancas e vermelhas, as distribuindo. Eu estava sendo presenteada por seu amor doentio, de quem dá buquês à amada. Em sequência, veio o retoque final, da maquiagem, na qual ele se prestou a realizar com o maior capricho.

Depois de tanto zelo e empenho,  estava pronta para o velório. O agente funerário me admirou por extensos minutos, vez ou outra me acariciando a face. O fascínio dele era notável. Antes de me entregar aos familiares que choravam na capela, Robbie se inclinou sobre o caixão e depositou em meus lábios um beijo. 

— Esse foi meu primeiro beijo, Eugenie.  Vá se despedir de sua família e parentes, receba as lágrimas deles... E espere por mim, que logo te tiro debaixo da terra.

Ele  chamou os ajudantes que esperavam do lado de fora. Os homens levaram o pesado caixão para a igrejinha à porta do cemitério. Ninguém tinha conhecimento da natureza do rapaz, somente o julgavam como um esquisito. Ninguém imaginava que aquele caprichoso agente funerário foi o culpado de minha morte. E durante o velório, encantaram-se com o resultado. "Parece estar dormindo" todos diziam de cílios molhados, pálpebras inchadas e lágrimas escorrendo.

O lamento de meu marido e filho era pesaroso, doía como agulhas no peito. Sempre que eu ouvia o choro contínuo deles, em mim nada sobrava... Só a agonia da incapacidade de abraçá-los. A tragédia paralisou meus músculos, trancou minha garganta e progrediu em meu coração parado, que misturado às outras vísceras, nenhum valor possuía. Só uma carcaça bem maquiada, perdida entre despedidas.

A chuva torrencial veio banhando as terras do vasto cemitério. Em ecos distantes, presenciei as gotas árduas caindo. Minha lápide me esperava. Após horas de velório, fecharam o caixão e eu fui tomada pelo breu. Perdi-me na escuridão, selada para o enterro.

Era noite quando o silêncio predominou. A hora perfeita para eu tomar meu rumo e ter o alívio de partir para as nuvens cor cinza do horizonte. Abandonar a matéria que se transfiguraria. Entretanto, algo me puxou pra permanecer. Era Robbie, que na calada da madrugada, me desenterrava.

A pá tocou a madeira do caixão. Ele arrebentou a porta, e me abraçou. Arrancou-me dali como quem salva um afogado. Logo devolveu a terra ao buraco da cova, disfarçando o crime. 

O poder da juventude corria nas veias de Robbie. O pai dele morreu há pouco tempo, e dessa forma, ele herdou a funerária cedo. Não devia passar dos vinte anos, com uma grande responsabilidade nas costas, cuidar de todos os funerais do vilarejo. De traços excêntricos, possuía expressivos olhos verdes e lábios juvenis com formato pequeno de coração. Mas ser agente funerário e preparar enterros o colocava como alvo de tirações de sarro e maus olhares. Talvez se não fosse por isso, ele teria conhecido uma garota que o amasse sem julgá-lo.

Sorte a dele, se pudesse ter alguém pra retribuir seus abraços e beijos. Uma menina que correspondesse à seus carinhos. No entanto, não era isso o que Robbie queria. O desejo dele era resumido em mim, e foi em minha rejeição que ele encontrou motivos para arruinar nossas vidas.

Carregou-me como uma noiva, através dos jardins do cemitério. A brisa afagava os cabelos cor de avelã do jovem, assim como esvoaçava meu vestido branco. Dois fantasmas vagantes pelas brumas. Me levou para os cômodos aquecidos de sua casa, que ficava aos fundos da funerária.

Subiu as escadas que davam para o quarto. A lareira estava acesa, preenchendo o ambiente escuro de espectros longos e alaranjados. Ele estava repleto de ansiedade e paixão, suas mãos tremiam e transpiravam, e os  olhos brilhavam perante a oportunidade de estar com o seu grande amor. Deitou-me no leito, que estava preparado esperando pela minha presença.

Sentou ao lado. Deslizou, com ternura, os dedos pela minha tez branca, retirando os fios do cabelo negro da testa. Com uma pequena faca, arrancou a sutura do interior de meus lábios, e retirou o algodão que outrora foi colocado em minha boca.

— Esperei muito por esse momento. - ele confessou, e uniu os lábios num beijo que dessa vez não foi só um simples toque. Segurou meu queixo e me fez abrir a boca estática, para assim invadir com a língua a área adormecida. - Você sempre foi tudo o que eu mais quis. E agora você é só minha, Eugenie.

Tornou a se levantar, para retirar o paletó preto. Desfez o nó da gravata, e lentamente desabotoou os botões da camisa, com os olhos pousados sobre mim, numa atenção hipnótica. Abriu o cinto da calça social, e a desceu. Voltou para a cama. Quente e cheio de vida, colocou o corpo cálido no meu, que frio o recebia em contraste de temperaturas. Cobriu-me  com  beijos úmidos, inexperiente e audacioso, enquanto os dedos ágeis me despiam o vestido.

E mais uma vez eu me encontrava nua com meu assassino. Imóvel como uma estátua de mármore, branca e enrijecida. Robbie abriu minhas pernas com paciência, para ter caminho de minha intimidade. Em sua insanidade, não tinha consciência nem a noção do quanto caótica era a mente desvairada, que em carência e solidão só buscava por abrigo nos braços errados. Braços impossibilitados de envolvê-lo.

Robbie posicionou-se sobre mim, entre mim, e fez de mim sua morada, quando invadiu o corpo sem vida.

Em meu repouso, levava saudades. De tudo que havia em meu peito, saudades de meu marido, filho, família. Era vítima da sina de um amor sem fruto. Nem em trevas eu dormiria, pois estava fadada a continuar aprisionada no cadáver. Quando teria paz? Quando reencontraria a luz? No véu de tempestades de sentimentos, Robbie estava cego e a única sombra que enxergava era a de sua obsessão.

Ele agarrava aos lençóis, esticava os braços, e colocava peso no quadril, para penetrar constantemente. Invadia sem pudor, sem medo, agitando o meu corpo inanimado. Seus suspiros e suor me banhavam, e seus olhos flamejavam em verde esmeralda.

— Eug.. Eugenie! - exclamou, dando em mim o sopro que faltava para despertar. 

Abri meus olhos e atendi ao seu chamado. Robbie me encarou. Havia espanto e surpresa em sua face avermelhada. Ele não esperava me acordar. Contudo, estava tão concentrado com as ondas de prazer que não parou o que fazia. O fôlego veio à meus pulmões vazios, e as lágrimas brotaram nas pálpebras inferiores.

— ROBBIE! - gritei,  com a voz rouca ressurgindo quase num uníssono com os gemidos dele.

Me contorci, e segurei o garoto nos ombros, cravando minhas unhas feito uma assombração que se reanima do estado cataléptico. O horror queimou nas órbitas do meu assassino, enquanto ele lançava em meu interior o resultado de seu ápice.  Éramos um, e toda a sua energia, vigor e vitalidade foi sugada com esse contato carnal, alcançando o sobrenatural. Seria aquela a noite do século, onde um vivo desperta uma morta, em seu leito, no estado máximo de prazer? E em um longo suspiro, meu oxigênio findou tão breve quanto veio. 

Meus olhos arregalados voltaram a se fechar, o fôlego terminou sendo expelido até meu peito contrair, e minhas costas relaxaram de volta onde antes estavam: ao colchão, um defunto repousado fora da lápide.

— EUGENIE! - ele me segurou, e me agitou numa tentativa febril de me acordar. - Volta... Eugenie, volta.

Lá eu estava, largada. Em agonia e desejo arquejante, com o desespero de uma fera, Robbie me agarrou em prantos. O coração dele saltava, estava ébrio de pânico por ter me acordado para poucos segundos depois eu voltar a desfalecer. O que acontecia? O que ele fizera? As perguntas eram tão altas em seus pensamentos gritantes que transcendiam o tangível. 

— Me perdoa... - gemia o garoto que acabara de perder a virgindade com a amada morta. -  Foi delírio? Ou foi real? Você acordou mesmo, Eugenie? Me perdoa... - caiu em meu ombro desfeito em soluços. 

E sob os martírios do louco, minha alma aprisionada à carcaça se dava conta que, a chave para eu retornar à vida, à meu marido e à minha família estava ali, no amor de Robbie. 


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