O Olho do Inferno escrita por Tori Veiga
Escorei Zacariel no bastidor da porta e, usando um guarda-chuva encontrado ali mesmo como arma, adentrei a escuridão. Ao entrar na sala um abajur acendeu, ataquei sem nem olhar para minha vítima. Quando o primeiro baque se deu, minha arma já não estava mais comigo e vi um homem rindo e segurando o guarda-chuva com uma das mãos.
— Vocês demoraram. – sorriu o par de olhos castanhos irreconhecíveis para mim, largando o guarda-chuva no chão. – E estão péssimos.
— Micael? – Zacariel surgiu mancando atrás de mim. – Você deveria estar no inferno.
— Não finja não estar feliz em me ver anjo. – piscou levantando-se. Assim podia vê-lo melhor, estatura média, roupas velhas e cobertas de lama seca, a mesma estava em suas botas de combate, os cabelos curtos, negros e bagunçados caiam sobre um rosto rude com algumas leves cicatrizes pairando em seu queixo e têmpora. – Oh, sinto muito. Você perdeu o posto hoje não foi?! Meus pêsames. – gargalhou.
— Quem é você? – perguntei, quando a única coisa que consegui dizer foi aquilo.
— Então essa é a garota? – caminhou até a cozinha ignorando minha interrogação. – Imaginava ela mais... corajosa. – sorriu irônico. – E garota, deveria colocar mais segurança nessa porta, foi muito fácil abrir. – abriu a geladeira, procurando por algo. – Ah... e cerveja de melhor qualidade, se não for muito incomodo.
— O que está fazendo aqui Micael? O diabo cansou da tua cara? – Zacariel sentou com muita dificuldade no sofá.
— Na verdade ele mandou lembranças à Miguel. – bateu a geladeira e voltou sua atenção aos armários. – Vodca? Pelo menos alguma coisa boa. – procurou por copos enquanto segurava uma garrafa lacrada. – Quer saber da maior Zac? Foi teu irmão que me trouxe. Ele está muito desapontado com sua incompetência.
Olhei para o rapaz ao meu lado que parecia envergonhado. Mas quem diabos eram aqueles dois, e por que eu estava deixando um desconhecido beber R$ 65,00 meus?
— Quem é ele? – sussurrei apontando para o tal Micael.
— Ele é a sua salvação, garotinha. – o dito cujo chegou à sala bebendo e se jogou na poltrona que eu amava tanto.
— Esse é Micael, está morto há 20 anos e estava no inferno até ontem. – respondeu Zacariel parecendo irritado. – Ele costumava fazer o trabalho sujo para quem pagasse mais, quando estava vivo.
— E você, amigo, deveria estar no céu, de fraldas, tocando arpa e deixando o trabalho pesado para quem sabe lidar com isso. – indagou enquanto pingava gotas de bebida em meu sofá. – Ainda mais agora que não tem mais asas. – bebeu um longo gole. – É, eu estava no inferno queridinha, até que era divertido. Torturar almas para que eu não fosse torturado, pelo que me pareceram séculos, era incrível. – aproximou-se de mim, seu olhar fervendo – As lembranças ainda são muito vivas sabia?! Às vezes até sinto o cheiro de pele queimando e ouço gritos de misericórdia.
— Não acredito em vocês. – sorri cética. – Zacariel deve ter levado alguma paulada na cabeça e você claramente abusa do álcool. – Caminhei até um armário próximo, buscando roupas limpas. – Vocês precisam, além de um psiquiatra, sair da minha casa agora. Não quero ter que chamar a polícia.
Hunter soltou uma gargalhada alta e meio rouca. Depois levantou da poltrona e postou-se ao meu lado, bebendo o resto de vodca que havia em seu copo.
— A polícia não vai te ajudar com o que está acontecendo. – riu, mas logo pareceu sério novamente. - Você me chamou de bêbado? - parecia enfurecido e, por vários instantes o temi.
— Exatamente. – respondi em um fio de coragem, pegando meu telefone, discando o 190. – Posso tentar ligar para lá e descobrir se eles podem me ajudar com um fanático religioso e um invasor de residência.
— Sabe Zac, eu até que gosto dessa tal de Anapiel[1]. – sussurrou olhando em meus olhos.
— É Anna. – corrigi incomodada. Eu odiava aquele nome, minha mãe era uma maníaca religiosa e decidiu botar nome de anjo em mim. Ao menos não conheci a doida, apenas recebi essa “linda” herança genética.
Ambos me olharam pasmos, como se algo em meu nome fosse especial e eu não soubesse. Apenas juntei uma muda de roupa no armário, e fui até a cozinha pegar um copo d’água e o kit de primeiros socorros para Zacariel.
— Ah Anapiel, como você é ingênua. – o bêbado me seguiu. – E está fedendo a sangue de demônio... vocês dois estão. – riu.
Eu realmente estava coberta de sangue seco que fedia mais do que tudo, toda manchada de vermelho, era um cenário pós-guerra particular. E a última coisa que eu queria, era lembrar disso.
— Ainda lembra-se das histórias que ouvia quando era pequena? – sussurrou Hunter depois de escorar-se na pequena mesa da cozinha e cruzar os braços, mostrando voluptuosos bíceps manchados de cicatrizes. – Monstros embaixo da cama, fantasmas e demônios? Tudo era verdade. Com exceção do papai noel, da fada do dente e coelhinho da páscoa. Então não adianta mandar cartinha para eles... Anapiel?!
— Já chega disso, ok? Vocês dois são doidos, eu matei duas pessoas hoje, estou pirando. – berrava horrorizada. – Eu preciso de um psiquiatra. – choraminguei arrancando aquele avental vermelho e grudento. – E, com certeza, alguns calmantes para cavalo.
— Calma Anna. – Zacariel levantou.
— É, você está meio doida ein. – Micael me olhava estranho. – Não é tão difícil assim de entender isso tudo, é só abrir a mente. – zombou e voei nele, querendo deixar hematomas no bêbado.
Tentei golpear seu rosto, mas ele desviou rindo e agarrou meus braços o prendendo nas costas.
— Não tão rápido, garotinha. – sussurrou em meu ouvido ao me mobilizar. – Sou mais velho e mais experiente que você, em todos os sentidos. – deu uma mordida em minha orelha. Nojento, imundo, deplorável. Vou mandar você para a cadeia por assédio, seu porco.
— Me solta. – falei entre dentes.
— E as palavras mágicas? – soprou.
— A-G-O-R-A! – puxei meu corpo para outro lado, tentando me soltar.
— Solta ela! – Zacariel finalmente se pronunciou e o bêbado nojento obedeceu. – Você está aqui para ajudar ou não?! Cresça e não cometa mais os erros do passado. – quando dito isso, vi Micael murchar.
— Por que vocês não me explicam claramente o que está acontecendo aqui? - sussurrei esfregando os pulsos marcados em vermelho. – Eu não conheço vocês dois, não sei o que aconteceu hoje a tarde e o que infernos vocês precisam fazer para me manter em segurança, porque eu nunca precisei de guarda costas e nem posso pagar por isso. – fingi confiança.
— Quem aqui falou em guarda costas? Estamos falando de apocalipse, o fim dos tempos. – respondeu o “anjo” ferido. – Já leu a bíblia?
— Bíblia? – não pude conter o riso. – Eu por acaso tenho cara de quem lê a bíblia?
O bêbado que servia outro copo de vodca levantou o braço sorrindo sarcástico.
— Essa eu respondo. – pausa dramática. – Nenhum pouco. Na verdade você tem cara de uma criança que cresceu em orfanatos, torcendo para que fosse logo adotada e vendo a cada dia sua esperança diminuir, pois você era a criança estranha, que tomava remédios e desenhava pessoas mortas. E quando chegou a idade adulta foi obrigada a seguir sem ninguém em seu encalço para um ombro amigo caso nada funcionasse, acompanhada somente de seus calmantes e pesadelos horríveis. – bebeu em um gole o copo cheio.
Por mais que eu o odiasse e quisesse que estivesse errado, não estava. Minha vida foi tal e qual ele narrou zombando. Então apenas baixei minha cabeça e sussurrei.
— Você não me conhece.
— Tem razão, mas não estou nenhum pouco interessado em conhecer, o mundo tem pessoas muito mais interessantes do que uma garçonete fácil de um bar nojento. – respondeu despreocupado esticando as pernas sobre a mesa de centro.
Eu estava fervendo de raiva daquele homem, porém tudo o que dizia tinha sinceridade, tudo tinha um fundo verdadeiro. Eu era só mais uma garota, sabia que era bonita, mas o que, além disso, eu tinha a oferecer? Nada.
— Anna, você é a única chance para sobrevivência humana. – Zacariel sussurrou quebrando o silêncio constrangedor. – Você é nossa arma mais poderosa.
Antes mesmo que eu pudesse digerir o que havia sido dito, ouvi um estouro e a porta da frente do meu apartamento explodiu em mil pedaços.
[1] Nome de um anjo, cujo significa é "ramo de Deus".
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