Uma dose violenta de qualquer coisa escrita por Blurryface


Capítulo 29
Estou aqui por vocês




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70 dias antes.

—Que tal eu chamar Rafaela e nós três irmos dar uma passada no lago? – Luana perguntou ao telefone, escutou o silêncio de Marina por alguns segundos antes de continuar –Vamos, eu poso sentir você a ponto de explodir com todo o estresse que tem passado. Olha, sem bebida, sem garotos, sem festa, sem problema... Só nós três e um pouco de conversa terapêutica, juro que não quero aprontar nada, preciso de um pouco de paz também.

—Sabe – Marina começou pausadamente, quase como se estivesse ponderando os prós e contras –Acho que está tudo ok por aqui, tudo estável. Talvez eu possa perguntar do meu pai se ela deixa eu passar um tempo com vocês amanhã...

—É assim que se fala! – Luana deu um pulo na sua cama, sentia-se genuinamente feliz, quase derrubou o telefone mas logo segurou o aparelho e deu um sorriso mesmo sabendo que a amiga não poderia ver –Nos vemos amanhã então.

—Ok – Marina fez uma pausa mas logo continuou –Não se esqueça do que você disse: sem bebida, sem confusão, sem coisas de Luana...

—Sem coisas de Luana – a loira repetiu com um sorriso no rosto.

***

69 dias antes.

Rafaela tentava em vão ler um livro, sua mente parecia estar em uma outra realidade, em um outro mundo. Desde a conversa que tivera com Eli, tinha uma sensação estranha no peito... Sentia muito por ele estar naquela situação, sofrendo por amar alguém que provavelmente não o amava de volta mas sentiu-se ainda pior ao fazer uma comparação com sua própria vida.

Ainda que Marina tivesse um namorado, um dia ela e Guilherme poderiam terminar e quem sabe Eli teria a sua chance mas Rafa sabia que o seu caso era diferente. Era apaixonada por outra garota, não teria uma oportunidade nunca, ainda mais com uma garota como Luana que podia ter o cara que quisesse.

“Não deveria pensar desse jeito, ela é minha amiga e confia em mim. Eu não deveria ter esses sentimentos por Luana, isso parece desleal, não?”, a garota largou o livro, enfiou o rosto no travesseiro e suspirou. As coisas não vinham dado muito certo pra ela e parecia que isso não mudaria tão cedo.

Rafa foi tirada da sua sessão de autopiedade quando escutou um leve barulho na janela, era como se estivessem jogando algum objeto pequeno. Ela sentou na cama para ver melhor no exato momento em que uma pedrinha acertou o vidro.

“Pensando nela...”, suspirou mais uma vez e se dirigiu até a janela. Levantou o vidro e viu Luana lá embaixo sorrindo. A loira estava montada em uma bicicleta e tinha outra jogada logo atrás dela no gramado. Rafaela se perguntou como a amiga conseguira levar duas bicicletas até ali mas decidiu dar voz às questões mais importantes:

—O que você está fazendo?

—Jogando pedras na janela do amor da minha vida na esperança de que ela desça e fuja comigo pra casarmos, o que me diz? – ela tinha aquele sorriso brincalhão de sempre no rosto, Rafa conteve-se e tentou parecer o mais séria possível mas algo dentro dela fazia um eco.

“Amor da sua vida? Se soubesse o quanto suas palavras me machucam...”, inclinou-se mais e respondeu:

—Acho que vai ter que fazer melhor do que isso – Luana riu e Rafa não conseguiu controlar os lábios dessa vez que formaram um sorriso tímido –Sério, o que houve? Você nunca aparece a não ser que esteja aprontando ou tenha aprontado alguma coisa...

—Dessa vez, eu quero ser uma boa amiga e oferecer assistência para os dois seres humanos que mais adoro nesse planeta – ela relaxou no assento da bicicleta e se apoiou no guidão –Levando em conta que essas duas pessoas me aturam desde sempre e estão passando por momentos difíceis...

—Não estaria falando de mim e de Marina, certo? – a garota brincou –Não achei que gostasse de verdade da gente, achei que só nos aturasse. Estou até me sentindo meio especial agora!

—É esse o objetivo – Luana começou a apertar os freios da bicicleta impacientemente –Então... Vai descer ou quer continuar jogando conversa fora? Marina está indo para o lago e ela não vai gostar nada de ter que ficar lá nos esperando.

Rafaela apenas riu e voltou para dentro do quarto. Pegou o que julgou necessário para passar o dia com as amigas e desceu apressadamente.

***

Mal saíram da trilha que levava até o lago e já conseguiram avistar o carro da mãe de Marina. A loira estava deitada no banco do motorista com o assento bem inclinado para trás, ela logo se virou ao escutar os barulhos das bicicletas e sorriu timidamente.

—Demoraram, como sempre... – comentou.

—E você vai nos perdoar, como sempre... – Luana devolveu. Ela desmontou da bicicleta e a deixou jogada na grama de qualquer jeito enquanto subia no capô do carro e deitava com o rosto virado para o sol.

Rafaela deixou sua bicicleta apoiada na traseira do carro e deitou no banco de trás. O dia estava quente para uma cidade do sul mas nada que fosse desagradável, era um calor bem vindo visto o frio que fazia nos últimos tempos. Ao contrário das duas amigas, Rafa sempre preferiu o calor. Não sabia explicar exatamente mas achava que passava uma ideia de alegria e diversão ao contrário do frio que era sempre tão melancólico e triste. Já tinham coisas tristes demais em sua vida, não precisava de mais uma...

—Acho que eu e Guilherme vamos terminar – Marina quebrou o silêncio, a três ficaram quietas por um instante sem saber ao certo o que deveria ser dito mas a loira acabou continuando –Ele já me ligou mais de dez vezes hoje e não atendi nenhuma ligação. Acho que não quero mais ver ele depois de tudo que aconteceu, sempre achei que o Gui fosse o cara certo pra mim mas é como se eu não o conhecesse mais. Entendem o que eu quero dizer?

Luana suspirou, era óbvio que entendia. Podia dar vários exemplos de pessoas assim na sua vida: a mãe que a abandonara depois dos problemas que teve, o pai que parecia estar contra ela mais vezes do que era costume ultimamente, até ela mesma por estar escondendo da Marina o que sabia de Guilherme. Só não se sentiu mais culpada porque a amiga estava falando em terminar com ele, se ela fizesse isso por conta própria ficaria tudo certo, não é? Quer dizer, eles terminariam e a loira não precisaria falar nada sobre aquela noite na boate.

—Totalmente – Rafa olhava através da janela enquanto sentia o cheiro suave do couro nos bancos, o carro da mãe de Marina já tinha quase seis anos de uso mas ainda tinha cheiro de novo –Não quero te falar o que fazer, só quero que você que saiba que, independente de terminar ou não com ele, estamos aqui. Eu e Luana.

Luana sacudiu a cabeça concordando e olhando para Marina através do vidro que as separava, torcia para que a outra loira não fosse capaz de perceber que ela escondia algo. Felizmente, nada pareceu ser notado.

—Só temos que seguir o plano, não é? – Rafa se endireitou no banco de trás para poder olhar Marina enquanto a amiga falava, Luana manteve o olhar na outra loira –Temos que nos formar e ir embora dessa cidade, ir pra São Paulo como planejamos, arranjar uma dose violenta de qualquer coisa...

—Sim, é esse o plano, sempre foi – Luana a interrompeu –Não dá pra ser feliz em um lugar como esse. As pessoas daqui não entendem nada, parece que elas pararam no tempo.

Rafa enterrou os dedos no couro do assento e tentou controlar a língua mas não se conteve:

—E se nada mudar?

Marina e Luana olharam confusas para a garota, ela se arrependeu da pergunta no momento em que a fez mas sabia que, agora que tinha começado, deveria terminar o que dizia:

—E se nós estivermos alimentando a ilusão de que tem alguma coisa melhor lá e na verdade São Paulo vai ser igual a Quixote? Cheia de pessoas intolerantes e falsas.

—Isso pode acontecer – Luana respondeu –Torço para que não aconteça mas é uma possibilidade. Quer saber, foda-se se vai ser ou não igual a esse lugar! O que importa é que vamos estar juntas e isso é o suficiente pra mim, dez milhões de pessoas naquela cidade e ainda assim eu não conseguiria achar ninguém como vocês duas...

—Você é quase fofa quando fala assim – Marina riu, Luana fez uma cara de deboche como resposta.

—O que eu quero dizer... – Rafa recomeçou hesitante, a atenção das outras duas se concentrou nela novamente –É que eu não sei se somos maduras o suficiente para ir pra lá... Somos só três garotas de uma cidade pequena!

—Ei! – Luana se levantou sorrindo, ficando em pé no capô do carro com o sol batendo nas suas costas e fazendo Marina e Rafaela vê-la brilhar –Hoje somos garotas, mas prometo que sairemos daqui como mulheres.

—E como você tem certeza disso, Luana? – Marina ergueu uma sobrancelha.

—Porque – a loira fez uma pausa e se inclinou para frente, o nariz quase colado no vidro –Vamos achar nossa dose de qualquer coisa e vai ser tudo aquilo que esperamos...

Rafaela e Marina se olharam sorrindo, não tinha como não acreditar nas palavras de Luana, era tão sincero e ela parecia acreditar tanto nisso. Mas seria o suficiente? Colocar todas suas apostas em algo que elas ainda nem sabiam o que era?

Luana deu as costas e saltou para a grama. A loira começou a caminhar lentamente até a beira do lago, os quadris indo de um lado para o outro como se fosse uma dança ensaiada até a exaustão. Rafa olhava os movimentos da amiga distraidamente quando Marina sussurrou:

—Deus nos ajude se essa “dose” não nos faça amadurecer, a gente não sobreviveria uma semana naquela cidade.

Rafaela não teve resposta pra isso, apenas voltou sua atenção para Luana e o pedaço de galho que ela pagara do chão. A loira girou o punho algumas vezes e jogou o galho o mais longe que pôde nas águas. Rafaela viu a madeira girar e girar e girar...

Até bater com força no lago e afundar sem deixar vestígios de que já existira.

***

Marina virava a esquina da sua casa quando avistara um garoto sentado no meio feio em frente à sua garagem. Reconheceu Guilherme imediatamente, não conseguiu decifrar sua expressão à distância. Ele poderia estar furioso ou muito triste, não tinha certeza. Marina suspirou e preparou-se mentalmente para o que viria a seguir. Estacionou o carro perto dele e saiu tranquilamente.

O garoto se levantou na hora, limpando as mãos na parte de trás do jeans azul claro. Ele parecia preocupado mas havia algo mais na expressão dele que a loira não conseguiu notar. Culpa? Talvez. Medo? Quem sabe...

—Eu te liguei o dia todo e você não atendeu – ele começou se aproximando devagar –Então liguei para o seu pai e ele disse que você tinha saído com a Rafa e a Luana – Guilherme deixou transparecer um leve desgosto quando disse o último nome mas logo desapareceu –Fui em todos os lugares atrás de você, achei que podia ter acontecido alguma coisa. Pelo menos é o que acontece quando você fica com a Lu...

Marina reprimiu a raiva, era sempre a mesma coisa. As mesmas reclamações das mesmas pessoas, o que ele queria com aquilo? Ela não pararia de falar com Eli ou Luana se ele ficasse reclamando deles...

—Eu estava pensando... – a loira o interrompeu, os olhos dele finalmente encontraram os dela. Marina tentou buscar alguma coisa ali, algum resquício de sentimento, algum sinal de que ele era o mesmo garoto que ela amara por mais de três anos mas não havia nada naqueles olhos. Eram olhos vazios, quando foi que eles ficaram vazios? Eles costumavam ter vida, costumavam ser quentes e convidativos...

—Oh – ele deixou escapar a surpresa –Pensando sobre o que?

Guilherme mordeu o lábio levemente, era algo que ele fazia quando não sabia o que falar. Marina encarou aqueles lábios que beijaram tantos lugares e falaram coisas tão lindas, que deram sorrisos tão sinceros e por onde escapava aquela risada divertida que apenas ele conseguia dar. Há alguns meses, o simples vislumbre daqueles lábios a fazia sentir vontade de beijá-lo a qualquer hora pelo tempo que fosse possível. Não mais... Aqueles lábios haviam dito palavras duras, daqueles lábios saíram as palavras que a magoaram tanto.

—Sobre nós dois – ela encarou os próprios pés mas logo levantou a cabeça novamente e decidiu que não iria mais enrolar, era melhor arrancar o curativo de uma vez –Acho que devemos terminar, não vejo mais sentido em continuarmos juntos depois de tudo que aconteceu...

Ela viu o choque atingir o rosto dele e deixá-lo em silêncio, pôde enxergar as palavras se atropelando na garganta mas por fim a única coisa que ele perguntou foi:

—A Luana te disse alguma coisa?

De novo, colocando a culpa nos outros.

—Não, Guilherme – ela revirou os olhos –Eu tomei essa decisão sozinha, ninguém me influenciou nisso. Não estamos bem há muito tempo e você sabe.

—Mas podemos resolver – Guilherme se aproximou devagar. Em outros tempos, a loira teria ficado encantada se ele se aproximasse devagar e falasse com o tom de voz doce que ele estava falando agora mas não mais, ela sentia apenas indiferença –Podemos resolver tudo, nós nos amamos e é isso que importa. Sei que eu errei mas...

—Eu não te amo mais – as palavras saíram sem que ela pudesse controlar, Marina não sabia com certeza se ainda o amava ou não mas as palavras soaram tão certas e saíram tão facilmente que ficou convencida de que essa era a verdade.

O rosto dele estampava o orgulho ferido. Ela pôde ver ele se controlando pra não citar Eli mas o nome estava lá, suspenso entre os dois.

—Então é isso? Terminamos assim? Por causa de algumas semanas? Ou por causa de alguém que conheceu em algumas semanas?

Marina usou todas as suas forças para manter a expressão mais determinada do mundo no rosto.

—Terminamos por causa de mim e porque eu não preciso ficar em um relacionamento que não me faz feliz. Já me senti a garota mais feliz do mundo com você, Guilherme, mas nós mudamos e já não damos mais certo juntos.

Ele balançou a cabeça e olhou em volta como se esperasse que algo surgisse e revertesse o que estava acontecendo naquele momento.

—Tudo bem – Guilherme disse por fim, a voz dele carregava frieza e raiva –Só espero que você seja feliz com o que tem...

—Vou ser, e muito! – Marina respondeu enquanto ele virava as costas e ia embora.

Assim que ele sumiu de vista, sentiu todas as suas forças se esgotarem.


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