Uma dose violenta de qualquer coisa escrita por Blurryface


Capítulo 19
Você vai ficar bem?




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104 dias antes.

Rafaela demorou alguns segundos para conseguir abrir os olhos, a cabeça doía como se tivesse sido jogada contra uma parede de tijolos. Quando enfim conseguiu ignorar a dor e seus olhos se acostumaram com a claridade, percebeu que estava no quarto de Marina e não havia sinal de nenhuma das amigas. A garota se levantou e desceu as escadas relutante, conseguia ouvir barulhos na cozinha mas tinha medo que fosse o pai da amiga e ela não gostaria de ser obrigada a fingir que não estava morrendo de ressaca. Sentiu um alívio quando viu a loira de cabelos lisos tomando café.

—Ei... – Rafa disse chamando a atenção da amiga, pareciam estar sozinhas na casa.

—Oi – Marina respondeu com um olhar distante.

Rafa se sentou sem saber o que falar, não lembrava muita coisa da noite passada mas parecia que algo havia acontecido. Não sabia se era muito ruim...

—Você não lembra de nada, não é? – a loira perguntou, Rafa apenas balançou a cabeça concordando –Pois é, ontem foi uma confusão...

—O que houve? – a garota perguntou baixinho.

Marina continuou tomando seu café em silêncio por alguns minutos até continuar:

—Recebi uma ligação ontem, enquanto estávamos naquele lugar. Minha mãe teve algum tipo de colapso mental e meu pai queria que eu estivesse com eles no hospital, claro que eu disse que ia na hora. Mas Luana disse que não, que era nossa noite, que tínhamos que continuar e começou a falar um monte de coisa sem sentido e eu fiquei com raiva, muita raiva. Estávamos bêbadas, Luana muito mais do que eu, e começamos a brigar feio então você começou a passar mal e vomitar, Luana simplesmente sumiu depois que eu fui te ajudar. Eli me levou até o hospital e me ajudou a parecer sóbria o suficiente, falei com meu pai e disse que você estava passando mal então ele disse para nós ficarmos aqui. Eli nos deixou e foi embora depois, até agora não tive nenhuma notícia da Luana...

Um arrepio pareceu subir pela espinha de Rafaela, odiava quando a amiga desaparecia e ela fazia isso mais do que era saudável. Tanto Rafa quanto Marina ficavam extremamente preocupadas quando isso acontecia apesar de nada muito grave já ter acontecido. Mas sempre havia essa sensação de que um desastre aconteceria um dia com uma das três e elas não conseguiriam evitar...

—Uau – a castanha disse baixinho –Sinto muito por ter feito você se preocupar comigo enquanto sua mãe estava mal...

—Tudo bem – a loira sorriu entre os goles de café que tomava mas Rafa pôde perceber a tristeza que esse sorriso carregava –Não é como se você fizesse de propósito...

—Luana também não faz... – ela comentou.

—Ah, claro – Marina riu ironicamente –Ela não faz nada de errado, é só o universo sendo sarcasticamente malvado com ela e a obrigando a fazer coisas.

—Pode ser – Rafa disse com um pouco de raiva na voz e chamou a atenção de Marina –Quem sabe o que acontece com ela quando não estamos por perto? Quem sabe o que se passa na cabeça dela? Ela foi abandonada tantas vezes, ficou sozinha por tanto tempo, quem sabe isso não tenha a mudado de tal jeito que ela nem consegue se lembrar de como é ser uma pessoa de verdade?

Marina ficou calada assimilando o que amiga disse e sentiu-se extremamente culpada por ter dito aquelas palavras duras. Às vezes ela tinha medo de ser exigente demais com Luana mas tudo que fazia era pra tentar protege-la, isso é o mínimo que uma amiga de verdade deveria fazer.

—Sinto muito, Rafa – ela baixou os olhos envergonhada e ficou encarando a mesa –Não quis dizer isso, é a raiva falando. Sabe que ela é como uma irmã pra mim...

—E você também é uma pra ela – ela respondeu mais suavemente –Pode acreditar, tenho tanto medo de tudo que ela faz quanto você mas as pessoas são livres e não temos o direito de interferir nas escolhas dela...

—Só torço para que ela faça o que é certo, no final das contas...

—Eu também – Rafaela completou com um aperto no peito.

***

Rafaela gostaria de ter ficado com Marina o dia inteiro para ajuda-la com toda essa situação da mãe dela mas sabia que deveria voltar para casa, Luciana deveria estar louca. Nunca antes ela ficara tanto tempo fora de casa sem dar satisfação.

Assim que abriu a porta sentiu que estava com sérios problemas pois Luciana a esperava sentada no sofá com uma expressão severa.

—O que aconteceu? – ela perguntou com uma voz calma mas que entregava toda a raiva contida, a mãe adotiva não era do tipo de ter explosões de raiva ou mudanças de humor mas isso não a fazia ser menos séria do que qualquer outra mãe.

—Sinto muito, mãe – ela começou a se desculpar desejando que tudo ficasse bem logo –Eu perdi a noção do tempo e achei melhor dormir na casa da Marina...

—Ah é? – Luciana a interrompeu –Então por que, quando liguei pro pai da Marina, ele me disse que a filha dele estava te levando pra casa dela já que você estava passando mal?

“Droga”, pensou. É como se Rafaela não conseguisse encontrar palavras pra falar então se limitou a ficar em silêncio. Luciana suspirou e se levantou ficando de frente para a filha:

—Olha, você nunca fez isso antes, Rafa. Nunca foi do tipo rebelde, por que começar isso agora? Sabe que nunca te proibi de fazer nada, não tem motivos pra mentir pra mim... – a garota abaixou a cabeça envergonhada –Mas tudo bem, não quero saber o que você fez, acho que é melhor eu não saber ou vou ter que fazer alguma coisa com você. Por enquanto, quero apenas que você vá pro seu quarto e fique lá. E que nunca mais faça algo do tipo de novo...

Rafaela ia balançar a cabeça concordando quando pareceu se lembrar de algo. “Luana ainda está desaparecida e Marina está ocupada com a mãe dela, eu sou a única que pode ir atrás dela”, pensou mas não teve coragem de abrir a boca, a mãe estava irritada demais com ela para ouvir o que tinha a dizer e corria o risco de ter que explicar a história toda o que não podia fazer em hipótese nenhuma.

—Certo? – Luciana perguntou quando viu a expressão confusa da filha.

—Certo... – Rafa concordou finalmente enquanto subia as escadas em direção ao seu quarto. “Sinto muito, Lu, você está por conta própria dessa vez...”

***

Marina encarava o teto branco entediada. A loira sabia que o branco supostamente tinha um efeito calmamente sobre o cérebro humano mas havia algo extremamente desconcertante em toda aquela claridade, imaginou que as pessoas deviam ficar mais loucas se tivessem que ficar nesse hospital por muito tempo. Se perguntou se seria isso o que aconteceria com sua mãe...

O pai estava em algum lugar conversando com o médico e a mãe estava dormindo um sono induzido por calmantes no quarto do final do corredor, Marina apenas decidira ficar no corredor por não aguentar ver a mãe dopada e amarrada.

Sim, amarrada. Depois de entrar naquele lugar, ela tivera várias crises e atacara alguns funcionários. A única pessoa que parecia acalmá-la era seu pai, toda vez que ela punha os olhos nele por mais do que alguns segundos ela parecia recuperar a calma por tempo suficiente para que os médicos e enfermeiras pudessem injetar o medicamento nela. Marina o via tentando ser feliz e otimista perto dela mas era perceptível o quanto ele estava exausto. Ela admirava muito o pai por isso, por não abandonar sua mãe, esperava encontrar alguém que a amasse assim algum dia...

—Já está ficando escuro – seu pai sentou ao seu lado e estendeu um copo de suco para ela enquanto tomava café –Posso te levar em casa, sua mãe ainda vai ficar muito tempo desacordada...

—Você deveria ficar com ela, sabe que se acontecer alguma coisa você é o único que ela vai querer por perto... – a loira comentou enquanto aceitava o suco.

—Ela também te quer por perto.

—Eu não faço nada de bom ficando perto dela – ela rebateu –Eu deveria fazer mais, não? Deveria ser capaz de fazê-la rir, se sentir orgulhosa, coisas que os filhos bons fazem os pais sentirem...

Seu pai se mexeu inquieto no banco, os olhos fixos na filha. Ele disse:

—Não consigo imaginar nada melhor do que você e aposto sua mãe também não...

—Talvez o filho que vocês perderam poderia ser melhor que eu...

Ela se arrependeu das palavras no momento em que as disse. Olhou para seu pai e viu seu maxilar se contrair como sempre acontecia quando ele era pego de surpresa. Enquanto ajeitava os óculos, o homem questionou:

—Então é sobre isso? Foi uma fatalidade, Nina...

—Uma fatalidade que destruiu a cabeça da minha mãe – ela desejava poder parar de falar sobre isso mas parecia que as palavras se acumulavam como fogo em sua língua e a queimariam se ela não as soltasse de uma vez –Vocês esqueceram de uma coisa durante todos esses meses, pai: vocês podem ter perdido um filho mas eu também perdi um irmão e pareço perder minha mãe a cada dia que passa... Esqueceram que eu também estava sofrendo, esqueceram que eu ajudei a escolher o berço, esqueceram que eu planejei o quarto do bebê com vocês, esqueceram que eu pensei nos brinquedos que compraríamos, esqueceram que eu ajudei a escolher o nome, esqueceram que vocês ainda tinham uma filha!

—Nina... – ele pareceu não saber o que falar e isso a fez se sentir triste. Seu pai nunca travava no tribunal quando tinha que representar seus clientes mas não era capaz de encontrar as palavras para amenizar a dor de sua filha, não conseguia encontrar palavras para fazer tudo ficar bem de novo.

—Tudo bem, pai – ela disse se levantando e jogando o resto do suco no lixo –Vou pra casa e volto depois. É só mau humor, vou estar melhor amanhã...

E ela foi embora antes dele ter a chance de falar algo.

***

Marina estava deitada no sofá, pensando em todas as coisas que aconteceram nas últimas 24 horas quando escutou o barulho do carro e ouviu alguém descendo. Esperou que batessem à porta antes de atender.

—Marina? – a voz de Eli chegou até seus ouvidos e a tranquilizou, ela ligara para ele logo depois de sair do hospital e nem começou a contar o que tinha acontecido quando ele a interrompeu e disse que estaria na frente da casa dela em poucos minutos.

—Estou indo! – ela respondeu. A loira abriu a porta e o frio ar da noite fez sua pele se arrepiar junto com a visão de Eli parado à sua frente.

Bastou olhar para aqueles cabelos brancos e olhos escuros que tudo pareceu cair sobre ela novamente, todas as palavras que dissera ao pai e as milhões de coisas que pareciam girar dentro da sua cabeça o tempo todo. Ela sentiu as lágrimas encherem seus olhos e deu as costas ao garoto.

—Marina – ele disse suavemente enquanto fechava a porta e entrava na casa –Você precisa ter calma...

—Calma? – a loira o interrompeu –Você não sabe de nada, Eli, não sabe o que aconteceu, não sabe o que eu disse. Acha que um pouco de calma vai resolver tudo? Acha que eu não tenho tido calma, não tenho sido paciente?!

Ela começou a soluçar nesse ponto enquanto Eli a olhava com uma expressão indecifrável, talvez ela não devesse ter ligado pra ele. “Droga!”, ela pensou, “Nem contei pro Guilherme que minha mãe está no hospital, se ele descobrir que preferi chamar Eli a ele vai ficar louco!”. O pânico já começava a tomar conta dela quando ele perguntou:

—Sabe como consegui a cicatriz no meu pescoço?

A garota, lutando contra os soluços, respondeu:

—Em uma briga, você já contou. Alguém disse uma coisa que você não gostou e você revidou.

—Sabe o que eles disseram?

Marina fez que não. Ele continuou:

—Que eu era um viadinho como meu irmão. Ele se matou um pouco depois de se assumir publicamente, meu pai não o aceitou e queria que ou ele se “arrumasse” ou saísse de casa. Eu o amava independente de quem ele era ou de quem ele gostava e o defendi em todas as oportunidades que tive – Marina o encarou confusa, ele nunca tinha dado a mínima pista de que tinha um irmão morto.

Eli se sentou no sofá e continuou enquanto Marina o encarava sem falar uma palavra:

—Lembro do último dia em que meu irmão me acompanhou até em casa depois da escola, alguns garotos da sala dele estavam escondidos o esperando se distanciar da vista de alguém. Quando ficamos longe o bastante, eles começaram a falar um monte de coisas horríveis. Então eu quebrei a cara de todos, exceto de um... Ele puxou um canivete do bolso e passou fundo no meu pescoço, achei que eu iria morrer ali mesmo.

As lágrimas continuaram descendo pelo rosto de Marina mas não eram mais lagrimas de dor, eram lagrimas de compaixão por Eli.

—Lembro do meu pai entrando no quarto do hospital assim que terminaram de suturar o corte. Quando ele viu que eu havia defendido o meu irmão, deu um murro tão forte no meu rosto que alguns pontos se abriram. Depois se virou para o meu irmão e disse que se eu quisesse viver essa vida era problema dele mas não deveria me arrastar junto. Quatro dias depois ele foi encontrado enforcado no banheiro de um bar de uma cidade vizinha.

Marina secou as lágrimas e sentou-se ao lado dele no sofá. Nesse momento ela entendeu tudo, entendeu porque ele não falava da família, porque ninguém sabia nada sobre ele.

—O que eu quero dizer, é que precisamos ter calma. Meu irmão não precisava ter se desesperado desse jeito – ele se virou para encarar a garota, ficou alguns segundos em silêncio –Nada que você fale ou faça pode ser desfeito mas nunca é tarde pra mudar. Quero que você me prometa que a partir de agora, vai ter calma e pensar antes de fazer as coisas.

Ela deslizou suas mãos até alcançar as dele e segurou-as firmemente. Balançou a cabeça sem saber o que dizer, apenas concordando.

—Eu prometo – ela disse enfim.

—Ótimo – ele manteve as mãos de Marina entre as suas –Então vai ficar tudo bem agora.

E ela realmente acreditou nele.


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