Uma dose violenta de qualquer coisa escrita por Blurryface


Capítulo 15
Não mergulhe tão fundo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/746011/chapter/15

112 dias antes.

Marina acordou sentindo cheiro de sanduíche de queijo e presunto. Se sentou e viu Luana sentada no outro lado da barraca comendo, Rafaela estava entre elas e ainda dormia.

—Bom dia – Luana deu um sorriso escondendo os dentes cheios de comida que fez Marina rir –Pena que você acordou, eu tinha feito planos de comer seu sanduíche e o da Rafa. Mas você sempre tem que estragar tudo, não é, Marina?

—Bom dia pra você também – a loira sorriu e esticou o braço para pegar um dos dois sanduíches restantes –O que vamos fazer hoje?

—Prefiro que seja uma surpresa – Luana comentou engolindo o último pedaço e limpando os farelos das mãos –Algo me diz que tenho surpreendido as pessoas positivamente nos últimos tempos...

—Nos últimos tempos você quer dizer nas últimas vinte e quatro horas, certo? – Luana fuzilou Marina com o olhar que apenas sorriu e abaixou a cabeça –Pelo menos você tem razão, você tem feito surpresas boas...

—Olha só! Marina Duarte elogiando Luana Lima? O que está acontecendo com o mundo hoje? – Luana brincou.

—Talvez as coisas estejam mudando... – Marina respondeu séria o que fez com que Luana lançasse um olhar preocupado pra amiga mas logo emendou:

—Talvez seja bom que as coisas mudem. Talvez a gente não tenha que ter medo de nada.

—É fácil falar isso sendo você.

—O que quer dizer com isso? – Luana se sentia confusa.

—É fácil pra você não ter medo de nada, você não tem o que perder.

—Isso porque eu já perdi tudo, certo? – Luan perguntou um pouco magoada, Marina percebeu e se apressou em consertar as coisas:

—Me desculpa, não foi isso que eu quis dizer – ela suspirou –O que eu quis dizer é que ninguém espera nada de você e isso te torna livre pra fazer o que quer. Mas e quanto a mim? Eu sou a garota perfeita! A garota com pais bons, presidente do Grêmio, com boas notas, fiel ao namorado e se, por um segundo sequer, eu falhar nos meus papéis vou ser julgada até a morte!

—Esse é o problema de ser boa – Luana comentou –Eles esperam que você seja sempre boa. Por isso eu acredito que é melhor começar errado...

Marina sorriu:

—Se as pessoas tivessem metade da inteligência que você tem...

—Dois elogios em um dia! Você está demais hoje, Marina – Luana devolveu o sorriso da amiga –As pessoas não podem ser como eu, simplesmente não nasci no mesmo mundo que todo mundo.

—Isso sempre foi claro pra todos nós – Marina falou.

Rafa se mexeu entre elas e abriu os olhos devagar. Ela estranhou as duas amigas estarem a encarando e perguntou:

—O que aconteceu? – ela se sentou, a cabeça batendo nas laterais da barraca –O que houve?

—Estávamos nos preparando pra deixar você pra trás, Rafa – Luana respondeu com um esboço de sorriso nos lábios –É a punição por ter ido em busca da dose violenta de qualquer coisa sem nós...

—Idiotas! – ela reclamou –Me assustaram... Ei, o que é isso aí?

Luana jogou o sanduíche em direção à Rafaela e saiu da barraca. Rafa sorriu enquanto comia.

***

Luana desmontava a barraca enquanto Marina e Rafaela esperavam sentadas, seus corpos estavam encostados no tronco de uma árvore grande enquanto observavam a manhã começar. O sol ainda estava nascendo e era possível ver uma grande neblina tomar conta dos campos lá embaixo. Rafa passava a mão na grama onde estava sentada. O orvalho molhava sua mão e deixava uma sensação gelada e molhada que era boa.

—Prontas? – Luana perguntou sorrindo enquanto montava na sua bicicleta.

Marina e Rafaela logo a imitaram e as três começaram a pedalar juntas. O ar frio entrava pelos seus pulmões mas, ao contrário do que deveria acontecer, parecia aquecê-las. O sol que já começava a brilhar com intensidade parecia prometer à elas que coisas incríveis estavam para acontecer, que nada de ruim poderia alcança-las agora, que estavam a salvo de todo o mal do mundo.

Elas não pedalaram tanto dessa vez, talvez tenham pedalado por apenas meia hora ou um pouco mais que isso. Luana parou na entrada de uma trilha e saiu da bicicleta. Ela se virou para as amigas e falou:

—A trilha é muito estreita para ir de bicicleta. Vamos ter que caminhar por uns 15 minutos...

Rafa e Marina deixaram suas bicicletas junto da de Luana e a seguiram para dentro do bosque. Era muito escuro e, em alguns momentos, elas tiveram medo de que a amiga não soubesse exatamente para onde as estava levando mas relaxaram assim que chegaram a um lago...

Não era como o lago de Quixote que mais parecia uma piscina grande demais. Elas se encontravam em frente a um lago imenso e de um tom de azul escuro que quase lembrava petróleo. A água se estendia por todas as direções e era cercado por árvores, a vista era impressionante. Elas nunca haviam visto nada que parecesse tão paradisíaco.

—Uau – foi tudo que Marina conseguiu dizer.

—Como nunca vimos isso aqui? – Rafa perguntou baixinho.

Luana caminhou uns passos até chegar na beira do lago e molhou o pé. Ela falou:

—Dizem que é tão fundo que ninguém nunca encontrou o final. Alguns habitantes das redondezas dizem que é amaldiçoado e faz as pessoas que vão muito fundo desaparecer. A polícia e os bombeiros registraram mais de 50 desaparecimentos nessa região nos últimos trinta anos. Os donos de terras que vivem aqui perto são orientados a não deixar ninguém vir até aqui. Como vocês podem ver, não fazem um bom trabalho...

Luana riu e se sentou na grama.

—É aqui que vamos passar o dia, presumo – Marina sorriu encarando a imensidão azul que estava diante de seus olhos.

—Sim – Luana também sorria.

—Aposto que consigo encontrar o fundo – Rafa disse e fez as duas amigas olharem para ela assustadas, ela mesma não sabia porque tinha dito aquilo mas não retirou o que disse. Logo Marina e Luana começaram a rir.

—Claro, você vai – Luana fixou seus olhos cinzentos na amiga –E vai se tornar uma das pessoas desaparecidas.

—Deixa disso, Rafa – Marina pediu e se sentou ao lado de Luana –Senta aqui, bebe um pouco de água. Já faz tempo desde que começamos a pedalar, precisa se hidratar.

Rafaela obedeceu e se sentou com as amigas mas nada parecia diminuir a sensação que ela tinha de que o lago a estava chamando.

***

A noite já tinha chegado há muito tempo e todas as garotas estavam exaustas. Marina já estava inclusive dormindo na barraca. Elas passaram o dia comendo, conversando e andando pelo meio do bosque. Tinha sido simples mas ao mesmo tempo surreal, como se fosse a coisa mais espetacular do mundo.

Luana estava deitada na grama, Rafa estava sentada ao seu lado encarando o lago. Estava escuro demais, as luzes de vaga-lumes iluminavam a noite mas não parecia ser o suficiente para tornar toda aquela água escura diante delas um pouco menos assustadora. Mas Rafa não estava assustada.

—Eu falei sério, eu consigo encontrar o fundo – ela encarou a amiga que cravou os olhos cinzentos nela rapidamente.

—Tenho certeza que as 50 pessoas que desapareceram aqui disseram a mesma coisa... – Luana comentou séria –Deixa isso pra lá, Rafaela.

Rafa não queria deixar pra lá. Ela se levantou e tirou a blusa, sentia o olhar de Luana cravado nas suas costas mas não se virou. Quando começou a tirar o short, ela perguntou:

—Que merda você está fazendo?

Rafa se virou e respondeu:

—Indo encontrar o fundo – Luana a encarava com uma expressão confusa, era um misto de confusão, medo e raiva. Rafa tirou o short e foi até a borda do lago, Luana se levantou rapidamente e seguiu a amiga.

—E como vou saber que você encontrou o fundo, Sra. Inteligência?

—Vou trazer alguma coisa pra provar – Rafa riu para a loira que tinha uma expressão séria no rosto –Talvez uma alga, uma pedra ou o corpo de alguma das 50 pessoas desaparecidas...

—Isso não tem graça, para com isso – Luana tentou pegar no braço da amiga mas Rafa a afastou.

—É só me esperar, não pode ser tão fundo. Eu volto logo – ela deu uma piscadinha e mergulhou.

A primeira coisa que percebeu foi o quanto era claro dentro do lago, diferente do lado de fora. Era como se estivesse nadando em um aquário cheio de luzes. Podia ver todas as coisas exceto o fundo, havia uma grande escuridão abaixo dela que tornava impossível ver qualquer coisa além de dois metros. Rafa se inclinou para baixo e nadou até entrar na escuridão. Sentia-se perdida e atordoada mas ao mesmo tempo relaxada e tranquila. Quanto mais nadava mais escuro ficava, ela já nadava a um tempo mas não conseguia alcançar o fundo e isso começou a incomodá-la. Depois de algum tempo sentiu suas pernas pesarem e já começava a faltar fôlego, talvez Luana tivesse razão, isso foi uma péssima ideia...

Se virou para cima e tentou voltar mas percebeu que era mais difícil subir do que descer. Parecia que havia uma tonelada sobre seus ombros, ela dava braçadas largas mas parecia não sair do lugar e o desespero começou a tomar conta do seu cérebro. A vista de Rafaela começou a ficar embaçada e um zumbido dentro da sua cabeça parecia se tornar cada vez mais forte. Ela conseguia enxergar mais claro agora mas ainda não sabia se estava muito longe do topo. Seu peito doía e, em um esforço para conseguir mais energia, expirou todo o ar nos seus pulmões e aumentou a intensidade das braçadas. De repente sentiu o ar frio da noite bater em seu rosto. Agarrou a grama na beira do lago rapidamente e se puxou para cima tossindo e cuspindo água.

Com a cara na grama, respirou o máximo de ar que conseguia tentando compensar o tempo que ficou sem respirar. Só então olhou para Luana e se assustou com o que viu.

A loira estava com o rosto inchado de tanto chorar. Os olhos cinzentos pareciam aguados, como se estivessem perdendo a cor quanto mais ela chorava.

—Você é idiota?! – a loira berrou se aproximando de Rafaela que ainda tentava recuperar o fôlego –Sabe quanto tempo ficou lá embaixo? Eu quase morri! Achei que você tinha se afogado e eu nunca mais fosse te ver!

Rafa se levantou com dificuldade, ainda um pouco tonta, e perguntou:

—Quanto tempo fiquei lá?

—Quase 3 minutos, Rafaela! 3 minutos! Tem gente que morre com menos de 30 segundos na água e você vai e fica lá embaixo por 3 malditos minutos! – a loira se aproximou da amiga e apontou o dedo na cara dela –O que você estava tentando provar? Que é adulta? Isso não foi coisa de adulta!

—Por que não tenta se acalmar?! – Rafa se irritou com a reação da amiga –Agora você sabe o que eu e Marina sentimos quando você faz as suas merdas...

Luana a olhou furiosa e gritou enquanto empurrava a amiga:

—Sua filha da puta!

Rafa quase caiu pois ainda estava tonta e a amiga era bem mais forte e alta que ela mas conseguiu se manter de pé e agarrou os braços da loira.

—Para com isso!

—Vai dormir, se não juro que eu mesma te afogo! – Luana a soltou e deu as costas. Rafa pegou as roupas, se vestiu e deitou ao lado de Marina na barraca. Ainda estava molhada e sentia muito frio mas se embrulhou nos lençóis e esperou até a sensação passar.

Ela olhava para o teto enquanto se condenava pelo que fizera. O que tinha na cabeça? Não era de fazer essas coisas, então por que fizera? Talvez ela apenas quisesse impressionar Luana e mostrar que podia ser tão corajosa quanto ela mas não esperava deixar a amiga tão aterrorizada. Desejou imensamente poder voltar atrás e desfazer o que fez.

Rafa começou a ficar preocupada com Luana, a loira ainda não entrara na barraca mas ela sabia que era uma péssima ideia ir chama-la. Ela deveria estar morrendo de ódio dela neste momento então a garota simplesmente tentou pegar no sono mas não teve sucesso. Quando finalmente estava quase dormindo, ouviu a loira entrando e deitando ao seu lado.

—Luana, eu...

—Rafa – ela a interrompeu –Me desculpa. Eu fiquei assustada... Não faz mais isso, por favor.

—Não vou, juro – a garota respondeu arrependida.

—Você não precisa provar nada pra ninguém – Rafa se virou e ficou cara a cara com a amiga –Não precisa ser como eu e Marina, você é especial do seu jeito e eu te amo por isso...

Ouvir isso deixou Rafaela feliz, ainda que não fosse do jeito que ela queria que significasse. Ela sorriu e disse:

—Eu também te amo, Luana...

A loira a abraçou e encaixou-se nela. Rafaela conseguia sentir a respiração da amiga no seu pescoço. Estremeceu quando ela falou e seus lábios encostaram levemente na sua pele:

—Não me assusta assim de novo, você é uma das poucas coisas boas que eu ainda tenho...

Rafa não respondeu, apenas caiu no sono sentindo o corpo dela colado ao seu.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Uma dose violenta de qualquer coisa" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.