Hecatombe escrita por Bella Burckhardt


Capítulo 9
Ascensão e queda


Notas iniciais do capítulo

Olá, amores!
Eis o capítulo nove, espero que gostem ;)



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 Adrian tinha essas explosões de raiva. Elas não exigiam muito para acontecerem, podiam aparecer por algo gigantesco ou minúsculo, e sempre o faziam faiscar como o próprio demônio. Seus olhos escureciam, o corpo se retesava, respirar lhe parecia difícil e geralmente não sobrava ninguém muito perto. Foi exatamente assim que aconteceu naquela manhã na floresta, quando partiu para cima de Fletcher e o derrubou, socando seu rosto amiúde, cego pelo ódio.

 O ruído do punho se chocando contra os ossos ressoava pelo círculo ao redor dos dois, ninguém disposto o suficiente para intervir, nem mesmo Carson e seu senso de justiça, ela apenas encarava atônita o sangue espirrar e mesmo tanto sangue não refreava o impulso de Adrian. Foram alguns minutos disso até Frank chegar confuso e se enfiar na roda, puxando o líder para longe do irmão quase inconsciente. Valentine se desvencilhou atordoado, olhou ofegante para o homem caído e caminhou para longe, puxando o ar com força para se acalmar, depois para perto outra vez, empurrando o gêmeo e apontando o dedo em seu rosto.

— Nunca mais se meta nos meus assuntos. Entendeu? – Vociferou e lhe deu as costas, puxando uma flanela do cinto e secando o sangue das mãos – Matt, Calf, venham comigo, os outros continuem o que estavam fazendo.

 Jogou a flanela no chão e se afastou com os dois homens. O círculo se desfez, Angie se abaixou com Frank ao lado de Fletcher, Carson notou Tony encarando distante e quando encarou de volta ele desviou o olhar, voltando a desarmar sua barraca. A mulher caminhou para ele, carregando uma suspeita.

— Oi – agachou ao seu lado e ele murmurou alguma coisa em resposta. A loira olhou em volta, disfarçando ao ajudar com a barraca, antes de perguntar – você...

— O que é isso? – A interrompeu segurando seu braço e fixando os olhos na marca roxa perto do ombro, no formato de uma mão.

— Um hematoma – respondeu o óbvio, puxando a manga da camisa para cobrir.

— Foi de..? – Insinuou a noite anterior, quando interceptou seu plano e ela afirmou – sinto muito.

— Sente mesmo? – Rebateu sardônica, se referindo a muito mais do que a mancha.

— Sim, eu sinto. Não sou o carrasco por aqui, achei que isso estava claro – o moreno desviou o olhar para o homem desfigurado a alguns metros, negando com a cabeça e se voltando para a barraca, irritado. – Pelo menos não era minha intenção.

 A última parte saiu como um sussurro, um resmungo para si mesmo, mas ela ouviu. E quando Carson processou suas palavras, sua ideia fez ainda mais sentido.

— Foi você? – Indagou voltando os olhos para ele, que não se deu ao trabalho de encarar de volta.

— Não sei do que está falando – os segundos de hesitação antes da resposta contradiziam a mesma.

— Foi você! – Surpresa, uma risada breve lhe escapou – quais as chances de terem se soltado sozinhos? Foi você, ninguém mais teria feito.

— Fale baixo, garota! – Ele rosnou puxando-a para perto, olhou ao redor e para ela de novo, que lhe encarava chocada. Tony rolou os olhos, confessando – se alguém descobrir, eu estou morto, então mantenha a boca fechada ou te levo junto.

 Carson ignorou a ameaça e sorriu, acenando positivamente e terminando de recolher as peças. Sua satisfação, porém, foi prematura.

— Muito bem, coloquem tudo nos carros – o acampamento já estava no chão quando Valentine voltou, com fogo nos olhos e a pose imponente restituída. – Não interessa se os filhos da mãe foram avisados, os números deles continuam os mesmos, nossas armas continuam as mesmas, já estamos aqui e eu não tenho a mínima intenção de perder a viagem! Pelo menos agora vai ser uma luta justa. Ou quase.

 Dito isso, começou a proferir as novas coordenadas, mudando o plano enquanto Tony lutava para engolir sua indignação, Adrian teria sangue frio o suficiente para se jogar no fogo por um pedaço de terra. Mas assim como Carson, ele sempre soube que a única chance daquelas pessoas seria fugir e mantiveram essa esperança até a hora do ataque, quando constataram que de fato haviam se arriscado para absolutamente nada.

 De certa forma era justificável terem ficado, eles tinham a quem proteger, não abririam mão de sua única garantia, por isso se limitaram a mandar as crianças e alguns poucos para longe do conflito. Tanta bravura, porém, não lhes serviu de nenhuma forma; dizer que o confronto durou meia hora seria exagero. Valentine dividiu seus homens e criou uma distração pela frente, Calf e Gavin cuidaram para o que o utilitário preto arrebentasse a porteira, desgovernado, atraindo a atenção dos guardas e uma chuva de balas para si. Até perceberem que estava vazio, o outro grupo já havia tomado a parte alta, como planejado anteriormente.

 Um por um, os moradores da fazenda caíram. Muitos sem sequer ver de onde vinham os tiros.

 E ao final, Adrian só sabia rir, sem acreditar que havia dado tanto crédito a “um bando de caipiras”, se deixando enfurecer pela vantagem que tiveram. As explosões dele realmente não tinham muito critério. Mas com certeza algo muito pior do que esses distúrbios de raiva devia atormentar a mente do homem que gargalhava desviando dos cadáveres, Carson imaginava, assistindo-o caminhar sem nenhum remorso para a casa grande.

 Entre os mortos estava Matt, a única perda do lado invasor e nem por ele Valentine lamentava. Levaram a pilha de vítimas para queimar ao anoitecer, bem longe da fazenda, para evitar chamar ainda mais atenção, menos de um dia de trabalho e ninguém diria que tanta gente morreu naquele lugar. Em algumas horas colocaram tudo em ordem outra vez.

— Quanto mais cedo acabar a chacina, mais cedo podem aproveitar a casa nova – Carson repetiu para si o que pensava mais cedo, no mesmo tom de sarcasmo, mas agora com muito mais pesar.

 Ela encarava o casarão branco de janelas vermelhas, apenas a luz da cozinha acesa. Os outros estavam jantando, mas ela não conseguia ficar lá dentro. Suspirou dando as costas à varanda e mais uma vez encontrou Tony observando de longe, ele tragava um cigarro, sentado sob uma árvore na encosta do monte, e mais uma vez Carson foi até ele.

 Acima dos dois, não muito afastado, Ramirez andava de um lado ao outro com sua arma em punho, policiando os arredores e a porteira quebrada.

— Não devia estar vigiando também? – Ela se sentou ao seu lado desanimada.

— Devia – foi tudo o que homem respondeu, com os olhos castanhos perdidos à frente. – Não participei disso, se quer saber, parei quando chegamos lá em cima e não consegui avançar. Acho que ele pensou que eu estava dando cobertura.

 Se referiu a Adrian. Carson acenou com a cabeça, não viu quase nada – Fletcher ficou para trás, mantendo-a longe da briga e principalmente de Leah –, mas sabia que ele não conseguiria, não depois de ter tentado ajudar.

— Tem mais um? – Ela apontou o cigarro e Tony arqueou a sobrancelha, surpreso, mas puxou o maço e o isqueiro do bolso, entregando a ela.

 Não disseram mais nada, apenas continuaram ali pela noite, ouvindo as cigarras e o farfalhar das árvores no campo. E podiam afirmar com certeza, jamais uma horda de reanimados seria tão sinistra quanto a energia que pairava sobre aquele lugar.

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 Por três dias inteiros, Will não conseguiu se manter acordado. Ia e vinha do sono causado pela medicação, sem entender bem o que estava ao seu redor, soltando uma frase ou outra e não muito mais do que isso continuava em sua memória quando realmente despertou. Estava em uma maca, coberto por um lençol fino e com uma agulha no braço. Não reconheceu aquela sala branca ou as cortinas aos lados.

 Era dia, percebeu pelas janelas perto do teto, as únicas fontes de iluminação, sua boca estava seca e a cabeça latejava um pouco quando se sentou apoiado nos travesseiros. Por um instante pensou que fosse um hospital, mas a lembrança da última semana logo veio à tona, não haviam mais hospitais. A dor de cabeça aumentou e ele apertou os olhos, levando uma mão até ela.

— William! – Ouviu e ergueu o olhar para a mulher que surgiu à sua frente – bem-vindo de volta.

 Sorriu para ele, que franziu a testa confuso. Ela usava um jaleco, óculos e um estetoscópio em volta do pescoço, o cabelo âmbar preso em um rabo de cavalo. Quem era aquela e por que cargas d’água sabia seu nome? Estava prestes a perguntar quando ela respondeu por si só.

— Ah, minha nossa, você não faz ideia de quem eu sou, meu nome é Gen, venho tratando de você desde que chegou – se aproximou e estendeu a mão para ele, que apertou meio desconfiado.

— Parece que você já sabe quem eu sou.

— Sim, sua carteira estava na jaqueta, me desculpe.

— Entendi... – a fitou por alguns segundos antes de perguntar – E será que poderia me dizer que lugar é esse e como eu vim parar aqui?

— Não se lembra de nada? – Ela estreitou os olhos preocupada – tipo, dos zumbis e... nada?

— Zumbis?

— Meu Deus – fez uma careta e pigarreou, puxando o ar antes de sua explicação. – Bom, pode parecer loucura, mas eu tenho certeza de que você deve se lembrar em breve, é que nas últimas semanas uma doença bizarra apareceu e as pessoas começaram a...

— Voltar da morte? – a interrompeu – é, dessa parte eu sei. Como foi que eu cheguei aqui?

— Ufa, ainda bem, seria bem estranho ter que contar isso – se aliviou. – Enfim, zumbis é como estão chamando as criaturas. E estamos em Charlotesville, em um abrigo, você chegou aqui há alguns dias, meio apagado por causa da infecção, Jordan te trouxe da estrada. Quase amputaram seu pé achando que era um arranhão, sabia?

 As coisas começaram a fazer sentido, o corte no pé, o mal-estar na estrada, a cidade e... espere.

— Tinha alguém comigo, uma garota, sabe se ela está bem, se está aqui?

— Megan? Claro que está bem, é por causa dela que você está aqui, na verdade. Ouvi falar que o valor foi alto – finalizou distraída, posicionando o estetoscópio nos ouvidos e chegando ainda mais perto. – Vou só fazer uns testes e já chamo ela para te ver, agora respire fundo. 

 Não entendeu o que ela disse sobre valores, mas apenas obedeceu, inspirando e expirando algumas vezes enquanto Gen ouvia seus batimentos. Em seguida ela checou sua temperatura e pressão, anotando tudo em uma prancheta ao lado da maca.

— Tudo em ordem, está bem melhor do que ontem, mais um dia de repouso e já pode ir.

— Obrigado – Will leu o nome bordado no jaleco –, dra. Olson.

— Só Gen, por favor, William – sorriu outra vez.

— Então, só Will, por favor – ele meneou a cabeça, William sempre o fazia lembrar seu pai.

 A médica abriu as cortinas e deixou o quarto em busca de Megan, agora ele podia ver outras macas vazias ao seu redor, assim como alguns armários e um grande portal à sua direita, pelo qual elas passaram algum tempo depois.

— Oi! – Megan sorriu ao vê-lo acordado e veio em sua direção, retirando as luvas de borracha que usava e guardando no bolso do avental cáqui – achei que tinha desistido de acordar.

— Acho que não vou sentir sono tão cedo – respondeu quando ela se sentou aos pés da cama. – Eu disse que te levaria até a fábrica, mas parece que foi o contrário.

— Pelo menos nos consegui uma carona – ela deu de ombros rindo. – Depois que desmaiou, voltei até a cidade e encontrei um grupo daqui, foi assim que chegamos.

— Jordan ajudou, pelo que ela disse – apontou a doutora. – Me lembre de agradecer a ele quando o encontrar.

— É ela e não sei se devia, não é a pessoa mais sociável – Megan cruzou os braços e trocou um olhar cúmplice com Gen. – Mas como está se sentindo?

— Bem, só a cabeça ainda dói.

— Gen cortou um analgésico ontem, era ele que te deixava sonolento, deve ser isso.

— Vou pegar o outro remédio para dor, acho que vi um no estoque – Olson disse e acenou, saindo outra vez, só quando ela desapareceu Will voltou a falar.

— E então, o que achou do lugar? É mesmo confiável?

— Sim, é seguro e a maioria das pessoas parecem boas, estão aflitas, porém tentando fazer funcionar. Lance distribuiu funções, para fazer tudo girar e também para manterem a cabeça ocupada, longe do pânico – explicou.

— Quem é Lance?

— O dono e o cara “no comando”. É melhor evitar ele também.

— Por que? – Achou estranho e ela suspirou, balançando a cabeça.

— Depois eu explico, não pense nisso agora.

 Por hora, ele não insistiu. Depois do remédio se sentiu melhor, comeu alguma coisa e removeram o soro, mas só saiu dali no dia seguinte. Pelo que contaram, o que o derrubou foi uma infecção, provavelmente adquirida após aquele banho de água suja e a ferida no tornozelo – que continuava meio inchado –, e se já não mancava da perna machucada, o corte lhe fez andar desajeitado por mais um ou dois dias.

 O lugar realmente era bom, geradores, muros bem altos, seguranças muito bem armados. Will não demorou a descobrir que eles eram a parte das pessoas que não era boa. Gente suspeita, os abrigados diziam, a maioria ali já se conhecia de antes e também conhecia o famigerado Lance, com o qual não teve o prazer de cruzar durante os primeiros dias. O homem vivia enfurnado no segundo bloco, o melhor conservado, antes da administração e agora reservado para ele e os guardas.

 Mais do que de alta, ao fim da primeira semana Will já se sentia incomodado por não ter o que fazer, Megan ajudava na cozinha e ele passava os dias vagando sem uma função oficial, remoendo a visão do amigo morto e o sumiço de Gwen. Por isso acordou decidido a procurar Lance e falar sobre sua pretensão de encontrá-la, contudo, foi o homem que veio até ele.

— Sr. McDermont – apareceu ao seu lado na mesa do refeitório, pousando uma mão em seu ombro –, finalmente nos encontramos.

 Will se apressou a engolir o que mastigava e ficar de pé, chacoalhando a mão que o homem lhe estendeu.

— Lance Weaver, mas é claro que já sabe disso – o mais velho riu.

— Como vai, sr. Weaver? – Perguntou casualmente, como se o mundo não desabasse lá fora. Weaver não demonstrava ligar para isso realmente, com sua calça social, camisa de zebra e o enorme relógio de ouro, parecia ter caído de paraquedas no apocalipse, direto de um cassino em Las Vegas.

— Bem, assim como você, pelo que Olson me disse – eles se acomodaram no banco compartilhado –, é por isso que estou aqui.

 O outro uniu as sobrancelhas e ele continuou.

— Como já deve ter percebido, vez ou outra um grupo sai da fábrica, eles vão atrás de mantimentos, informações, qualquer coisa que seja útil. Tem sido assim nas últimas semanas, desde que montei o lugar – ele fez uma pequena pausa. – Mas não posso contar com qualquer um para isso. Já perdemos pessoas lá fora e isso me deixa reduzido a um time muito pequeno, cinco ou seis de confiança, os únicos que funcionaram até então.

— E por que está me dizendo isso?

— Porque mesmo assim não desisti de tentar, e você é minha próxima aposta. Parece bem capaz para mim, é claro que chegou aqui meio quebrado, mas sobreviveu até chegar, o que enfrentou lá fora não foi pouca merda comparando à maioria aqui – Lance gesticulava bastante e não tirava os olhos dos dele –, o prédio, a tempestade, o estádio...

 Will estreitou os olhos frente às suas palavras.

— Megan te contou essas coisas?

 Ele sabia que não, a garota evitava qualquer contato com Lance e insistia para que Will fizesse o mesmo. Obviamente Lance não era um exemplo de caráter e Will tentou algumas vezes descobrir qual a ligação de Megan com ele, assim como sobre o que Gen comentou da circunstância de sua entrada ali, todavia ela sempre desviava o assunto. Era muito boa nisso.

— Não, mas ouvi falar, que tipo de líder não procura conhecer quem está abrigando? – Alegou em tom de obviedade, com uma breve risada – enfim, esse não ponto. O que quero saber é se aceita ou não ser parte do grupo, ir lá fora, ajudar a manter essas pessoas a salvo fazendo o que elas não podem. Hm?

 Os olhos negros do rapaz o observaram por um minuto, Will não levou muito mais pensando na ideia, uma coincidência dessas não era fácil de conseguir.

— Acredite ou não, eu tinha uma proposta muito parecida para te fazer – respondeu, vendo um sorriso nascer no rosto de seu interlocutor. – Quero achar uma pessoa, se me der o que preciso para isso, ajudar nas buscas vai ser o menor dos problemas.

— Pois bem, vamos juntar o útil ao agradável – abriu os braços em um gesto amplo. – Pegue um carro e quem quiser ir com você, desde que não prejudique o grupo, também não vejo nenhum problema.

— Fechado, então.

— Fechado – apertaram as mãos outra vez e Lance se levantou, já se afastando. – Sabia que não me decepcionaria, herói.

 Infelizmente, Will não sabia o que Lance Weaver pensava sobre heróis. E porque preferia arriscá-los nas ruas. Assim sendo, já no dia seguinte havia combinado tudo com Jordan, a imediata de Lance, e se jogou novamente na estrada, com outra moto, um rádio e a direção de pelo menos três acampamentos próximos.

 Seria difícil checar todos de uma vez só, dessa forma, por três vezes Will voltou decepcionado para casa. E muitas outras vezes depois dessas. Passava de uma a duas noites fora dos muros, se esgueirando entre os mortos, às vezes procurando entre eles um rosto conhecido, esmagando ainda mais cabeças, e aos poucos seus alvos foram se tornando escassos. Faltava pouco para completarem um mês na fábrica quando um senhor lhe deu a localização de um último abrigo, no qual ainda não havia procurado.

— Vai sair de novo?  

 Era cedo e estava no pátio quando Megan se aproximou, Quinn em seu encalço, como sempre.

— Explorar, Jordan quer voltar à Lynchburg, ver se os zumbis já se dispersaram – respondeu guardando uma mochila na minivan. – Depois devo checar um lugar lá perto, Lucas vai comigo.

— Mais um? Achei que já tinha vasculhado o estado inteiro – Quinn riu, cruzando os braços.

 Apesar da moça de gorro e cabelos curtos ser alguns anos mais velha, ela e Megan se tornaram inseparáveis desde que chegaram ali. Seu imbatível senso de humor conseguiu por vezes desafogar a ruiva da melancolia e aflição que pairavam ao seu redor, agora ela parecia mais tranquila, no entanto nunca revelou o que a fez ficar assim. Nunca revelava nada sobre si, aliás.

— Acho que ele não vai parar enquanto não revirar o país.

— Não, esse é o último, pelo menos por agora – claramente não estava feliz com a própria decisão.

— Nada sobre seu pai, também?

 A de cabelo escuro indagou e ele negou com a cabeça, o suspiro revelou sua frustração, quase nenhuma esperança lhe restava, sobre ninguém. Logo nos primeiros dias foi até a casa onde morava com o velho e depois a cada esquina onde já havia o encontrado bêbado, insistia consigo mesmo que não se importava, que ele ficaria bem, porém não conseguia não se preocupar. Terry podia ser um grande imbecil, mas ainda significava alguma coisa para o filho.

— Sinto muito.

— Tudo bem – respondeu sem muita verdade.

 O resto do grupo se aproximou, tomando seus lugares e Quinn se despediu, caminhando para o refeitório no terceiro bloco. Megan continuou ali mais um pouco, olhando curiosa quando ele guardou uma arma no coldre.

— Onde aprendeu a usar isso? – Questionou – não saem por aí distribuindo elas e te deram uma logo no início, mas não precisaram ensinar.

— É uma longa história. Não precisa saber – meneou a cabeça e Megan ergueu uma sobrancelha. – O que? É isso que responde para tudo que pergunto.

— É diferente – revirou os olhos –, só quero saber onde aprendeu.

— Não é, não. Viva com seu próprio veneno.

 Subiu na van e fechou a porta rindo de sua cara. Passaram pelos portões com o jipe logo atrás, Will se acomodou melhor no banco traseiro e suspirou, aquela era mesmo uma longa história, da qual ele não se orgulhava em nada.

 Em todas as vezes que saíram nada parecia ter melhorado, nenhuma notícia vinha de lugar nenhum, a capital também estava acabada e dois dos abrigos próximos à fábrica haviam caído. Um deles era a caminho de Lynchburg e por isso a suspeita da horda ter se dissipado. Deram a volta na cidade para evitar o estádio, pegando a mesma entrada que Will usou ao chegar ali e pararam em um supermercado, numa rua deserta.

— Acho que está limpo – Lucas olhava pelas portas de vidro –, não é muito grande e parece intacto.

— Vamos entrar, mais três venham comigo, o resto fica, não se separem e se aparecer alguma coisa – Jordan interrompeu sua frase clássica olhando ao redor –, tentem não atirar, pensando melhor.

 Will alertou a eles sobre o barulho dos disparos logo na primeira saída, mas só aprenderam a lição quando sentiram na pele pouco depois. A mulher entrou e dessa vez ele ficou de fora, andando de lá para cá até saírem do estabelecimento com as mochilas cheias, fizeram isso algumas vezes e quando trouxeram tudo, passaram para os carros abandonados, costumavam achar mais gasolina assim do que nos postos.

 Quando passaram para a próxima rua, se depararam com um logo na esquina. Parada entre as duas faixas e coberta de sangue e tripas, a picape azul devia ter atropelado algum zumbi, Will pensou dando a volta no veículo. No banco do motorista, uma reanimada arranhava a janela para tentar alcançá-lo.

— Peguem as malas na traseira, podem ter alguma coisa – Jordan ordenou aos outros e no minuto em que viu a mulher seus olhos saltaram. – Cacete!

— O que foi? – Ele questionou, sendo ignorado.

— Lucas – sinalizou para o homem, que se aproximou dos dois. – Eu estou louca ou essa daqui é a infeliz da...

— Diane Morrisen! – Completou boquiaberto, rindo descrente – quais as malditas chances disso acontecer?!

 Jordan sacodiu a cabeça sem desviar o olhar dela.

— As mesmas daquela garota ter dito a verdade, me parece – se inclinou e analisou melhor a morta-viva, suas roupas estavam manchadas de sangue, assim como os bancos, o volante e o painel. – Se afastem.

 Pediu e abriu a porta da picape, a criatura desabou para a frente e ela a acertou na cabeça, puxando o cadáver de volta para o banco em seguida.

— Ela disse que ficaram cercadas, a porta do passageiro está entreaberta, mas ainda assim, nenhuma mordida. O sangue está vindo desse corte no peito – Jordan disse após checar rapidamente o corpo e seus olhos recaíram sobre uma faca suja entre os dois assentos. Pegou o objeto e se ergueu, girando nas mãos e sorrindo ao mostrar a Lucas – acho que Lance vai gostar de saber disso.

 Will observava a cena sem entender nada. Quem era aquela, afinal? A líder se afastou e ele a seguiu.

— Lance conhecia essa Diane? – Perguntou e a viu arquear as sobrancelhas.

— Sim. Já você, não chegou a ter a honra, não é?

— E por que eu teria? – Franziu a testa e ela o encarou, parando de caminhar um instante.

— Era tia da sua amiguinha e pela história que ela inventou, algo me diz que a relação das duas não acabou muito bem – levantou a faca com um olhar sugestivo e guardou-a na mochila, retomando seus passos.

 A última tentativa de Will falhou como todas as outras, a escola primária onde organizaram o acampamento estava destruída, não acharam que entrar valeria o risco. Por hora, aqueles fantasmas teriam que esperar, mas um outro ainda lhe intrigava e durante a viagem de volta questionou Lucas sobre Diane. Ele não sabia muita coisa, até Megan aparecer não fazia ideia de que a mulher tinha família, toda via lhe esclareceu algo – que, Will não fazia ideia, mas, poderia ter descoberto perguntando a qualquer outra pessoa na fábrica –, o lugar que ele ocupava fora comprado. E deveria ser de Diane.

 Lance era um mercenário vendendo sobrevivência, não era Megan quem tinha uma história com ele, mas a tia. E isso não era razão suficiente para não tê-la citado em nenhum momento. Will sabia que as aparências podiam enganar, mas era estranho pensar o quanto a conclusão de Jordan fazia mais sentido agora.

 Chegaram não muito depois do grupo, era hora do almoço e o pátio estava vazio quando estacionaram, todos se reuniam para comer.

— Ei, esperem – iam se juntar aos outros quando Paul e Janet se aproximaram, com suas facas em punho. – Aquelas coisas estão agitadas hoje, estão se aglomerando na rua de trás, precisamos de ajuda para limpar.

— Muitos? – Will perguntou.

— O bastante – a mulher respondeu.

­— Se me der um instante, eu já vou até lá, só preciso resolver uma coisa.

— Eu vou – Lucas se ofereceu –, não estou com fome.

— Encontro vocês – disse, recebendo um aceno de Paul. Os três foram para o segundo pátio, atrás do prédio da administração, onde ficava outra saída.

 Will correu os olhos entre as mesas redondas e na cozinha atrás do balcão sem encontrar quem procurava. Talvez estivesse no dormitório, pensou e foi para o primeiro bloco, onde estavam os quatro salões de colchonetes enfileirados em que dormiam. Subiu para o segundo andar e parou antes de alcançar a porta do último salão, ouvindo a voz dela ecoar, seguida de uma outra.

— Eu sabia que tinha algo errado, nunca se deram bem, por que estaria triste daquele jeito? – Era Lance e estava irritado.

— Por que eu não estaria? Ela era implicante, mas era minha tia.

— Eles viram o carro, Megan!

— Eu disse que estávamos cercadas, você nunca perguntou onde foi – se explicou.

— Pelo jeito que contou parecia que ela tinha sido estraçalhada, que não havia saída. Mas Jordan disse que ela estava presa no carro, intacta, exceto pela ferida no peito.

 Um segundo de silêncio, depois ela voltou a falar, mais branda.

— Fomos atacadas, antes dos zumbis, foi isso. Um homem veio, queria levar o carro e o resto, acertou ela e fugiu quando os viu chegar.

— E por que não contou quando te perguntei?

— Estava nervosa, cansada.

— Durante semanas?! – De novo, silêncio – essa porra não faz o menor sentido, Megan. Está mentindo para mim, sabe que eu odeio isso.

— Eu...

— Está mentindo para mim! – Dessa vez ele gritou, depois riu sozinho – meu Deus, Diane sempre disse que você não prestava, que era uma delinquente.

— Diane não prestava – replicou firme.

— Bom, foi você quem enfiou essa faca no coração dela. O que me faz pensar se o herói era mesmo um desconhecido ou se você matou sua própria tia e roubou o dinheiro dela para abrigá-lo aqui – se alterou. – Admita, garota!

— Quer saber? Você está certo, eu enfiei essa maldita na faca no coração dela! – Disparou no mesmo tom exasperado, mas se abateu em seguida – eu a matei e peguei o dinheiro para me abrigar aqui, e mesmo que eu quisesse muito fazer isso, acredite, não foi intencional. Mas por que, diabos, você se importa? Eu te paguei, não foi? Nunca ligou para a fonte do dinheiro desde que caísse no seu bolso e aí ele está, pode gastar à vontade com os mortos caminhando lá fora!

— Sabe com que eu me importo? Deslealdade, ingratidão, mentira! Eu banquei a mudança de vocês quando sua mãe morreu, ajudei todas as vezes que ela pediu, para te proteger. Ela cuidou de você!

— Para proteger a si mesma! – Agora parecia prestes a chorar – Diane nunca cuidou de ninguém além de si, achei que fosse esperto o suficiente para não cair nas histórias dela.

— Mas que menininha petulante você se tornou! – Houve uma movimentação, seguida de um queixume quase inaudível – quero você fora daqui até amanhã, porque mais do que tudo isso, me importa ter uma assassina debaixo do meu teto!

— E o que sua equipe faz aqui, então?

Will despontou no dormitório. Lance a segurava pelos cabelos e puxou com mais força, na outra mão, tinha a faca que encontraram na picape.

— Fora daqui, escutou?!

— Ei! – Interveio, atraindo a atenção dos dois.

 Logo que o fez um grito ressoou por perto, depois outro e mais um, e de repente tiros. Weaver soltou a garota e os três se apressaram para baixo. A multidão deixou o refeitório para ver, os disparos vinham da parte de trás e alguém berrava que o portão havia cedido.

— Os zumbis – Will se lembrou do que Paul disse –, se juntaram demais.

— O que?

 Megan perguntou ao seu lado, Lance já havia desaparecido. Alguns tentavam atravancar as passagens entre os pátios usando mesas e bancos.

— Não, de novo não! – Uma versão menos bem-sucedida do cerco ao edifício dos Hartley se repetia em sua frente, mas dessa vez, ele não pretendia ficar preso. Começou a retroceder – temos que ir.

— Não, temos que ajudar a bloquear! – Ela contestou.

— Eles vão nos cercar, temos que ir agora.

— A Quinn estava lá – apontou o outro prédio –, precisamos achá-la!

 Os zumbis começavam a transpor a barricada incompleta, escalando e caindo sobre os mais próximos.

— Pode ficar aqui e morrer com ela, ou sair e torcer para que tenha sido esperta o suficiente para fazer o mesmo, e você sabe que ela é! – Respondeu vendo as pessoas correrem para dentro – as chances são melhores lá fora.

 Megan hesitou, mas acabou lhe seguindo. Os dormitórios foram trancados pelos desesperados, pegar suas coisas estava fora de cogitação e voltaram para fora, a tempo de verem uma Mercedes cruzar o portão principal, com Lance sentado no banco de trás. Outros faziam o mesmo e Will se lembrou da chave do jipe em seu bolso, correndo para ele.

— Megan! Will– Gen vinha em sua direção de mãos dadas com uma família, os pais e quatro crianças.

— Saiam daqui! – Não pensou duas vezes antes de dar para a doutora a chave e apontar o carro, não caberiam todos eles.

 Ouviu um obrigado antes de se dividirem e olhou em volta procurando uma carona. Escutou alguém chamá-lo, se surpreendendo ao ver Janet a alguns metros, conduzindo a minivan lotada. Dado o lugar onde estava, Will achou que ela já teria morrido.

— Sabe onde está – disse e jogou outra chave pela janela, acelerando para fora. Era dela a moto que Will pegava emprestada em suas saídas.

 Pegou o chaveiro amarelo do chão e foram direto até a vaga no canto esquerdo, subiram e a garota segurou firme enquanto deixavam a fábrica a toda velocidade, ultrapassando até não haver mais ninguém à frente. E pela primeira vez desde que os mortos se levantaram, Will simplesmente não tinha um destino.


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Notas finais do capítulo

Kisses ♥



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