Hecatombe escrita por Bella Burckhardt


Capítulo 10
Todos odeiam cerejas


Notas iniciais do capítulo

Olááá, pessoinhas,
Demorei a superar o bloqueio criativo, mas eis o capítulo 10!
Muito obrigada a todos que favoritaram e/ou estão acompanhando a história, vocês são demais ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/745927/chapter/10

 Em cinco horas de espera, estática foi tudo o que conseguiram do rádio comunicador. Will expirou, apoiando a testa nos braços cruzados sobre a janela, de pé fora da minivan enquanto Janet tentava outra vez lá dentro.

— Esquece, ninguém vai responder – sua voz saiu abafada, não a via, mas sabia que ela revirava os olhos.

— Perder a esperança é aceitar que morreram. E eu não vou aceitar isso.

— Ficar aqui mais um pouco é aceitar que nós vamos morrer. Está escurecendo, Janet, temos que achar um lugar seguro, já esperamos demais.

— Mas eles...

— Se estiverem vivos, não vão arriscar viajar à noite – se aprumou, lançando a ela um olhar complacente, mas precisava ser franco ou nunca sairiam dali. – Precisamos ir agora, essas pessoas não sabem se defender, estavam entre aqueles muros desde o início. Ainda vamos ter o rádio, não vamos nos afastar tanto, a possibilidade de nos encontrarem será a mesma.

 Janet se calou um minuto pensando no que fazer, sabia que ele estava certo, mas o marido não estava com eles e por mais forte que fosse, a ideia de perder alguém amado afetaria qualquer um. Suspirou, resignada, deixando o rádio de lado.

— Eles estão vivos – corrigiu antes de sair e caminhar até o grupo.

 Will deu alguns passos na mesma direção, porém se manteve distante, observando as dezesseis almas que restaram. Outros quatro chegaram até ali com eles, mesmo que desconhecidos, mesmo que um número pequeno comparado a todos na fábrica, Will sentia o peso das mortes, cada um ali sentia.

 Gen Olson fazia o possível pelo ferido deitado à beira da pista, o homem teve o braço decepado na altura do cotovelo, logo acima de uma mordida. A infecção foi contida, mas não sabiam se sobreviveria à amputação rudimentar, não tinham como tratá-lo. A maioria das pessoas estava banhada em sangue, como tudo naquele novo mundo. Janet os reunia para dar o aviso e entre os rostos, Will deu falta de um.

 Olhou em volta procurando Megan, a garota passou as últimas horas dividida entre se sentar isolada e fitar ansiosa a direção de que vieram, esperando que Quinn aparecesse. A pegou lhe encarando algumas vezes, aflita, triste, Will não saberia dizer, ela sempre desviava os olhos depressa. Não pararam para conversar sobre o que ele ouviu. Franziu o cenho ao localizá-la fora da estrada, caminhando sozinha para a floresta que os cercava.

— O que ela está fazendo? – Murmurou e foi atrás quando a viu se embrenhar na mata.

 A seguiu de longe sem ser notado e depois de quase correr por bons metros ela parou, apoiando o braço em uma árvore. De cabeça baixa, puxou o ar algumas vezes antes de começar a chorar, muito mais em desespero do que qualquer outra coisa.

— Megan?

 Ela se virou espantada na direção da voz, contudo não conseguiu se recompor, apenas fechou os olhos e se sentou de costas para o tronco.

— O que você quer?

— Não é boa ideia sair sozinha assim, se eu fosse um zumbi, já estaria morta – parou dando a ela algum espaço. Megan tentava secar as lágrimas sem sucesso.

— Você ouviu, me ouviu falando com o Lance.

— Ouvi – não foi uma pergunta, mas ele confirmou –, também vi sua tia na cidade. Fui até você para saber por quê não falou dela.

— Não é coisa que se diga ao conhecer alguém – percebeu a ironia na voz embargada, junto de alguma irritação.

— Passamos quase um mês naquela fábrica, te perguntei mil vezes se tinha algo errado e nunca respondeu. Nunca contou sobre nada, Lance, como se conheciam, o dinheiro...

— E por que isso importa? É o fim do mundo, dinheiro só importa na cabeça estúpida do Lance. Não precisa devolver, se é isso que te preocupa – Megan não o encarava, inclinou a cabeça para trás, fixando o olhar nas folhas lá em cima.

— Definitivamente não é isso que me preocupa – sentiu uma pontada de indignação, que tipo de pessoa achava que ele era?

— Acha que sou um perigo para o grupo então, como Lance, que não mereço estar aqui? – Questionou em um sorriso amarelo – se for isso, podem seguir viagem, Quinn não está aqui, não acho que ninguém vá sentir minha falta.

 Will não acreditava que a garota que encontrou gritando em uma banheira representasse perigo para qualquer um. Mas acreditava que toda história tinha dois lados e o que ouviu no dormitório mais cedo não foi nada esclarecedor. Respirou fundo procurando o que dizer, não queria soar acusatório, só queria entender aquilo tudo.

— Megan, eu não sou o Lance, eu sei que não me conhece a tanto tempo, mas achei que pelo menos você isso teria percebido depois de tudo – se aproximou e Megan o olhou de relance. – Não vou te deixar para trás ou fazer qualquer coisa, só que não dá para ignorar essa história, preciso que seja honesta comigo.

 Se sentou como ela, que engoliu em seco antes de afirmar com a cabeça, fitando agora as próprias mãos sobre os joelhos.

— A Diane era irmã da minha mãe, ficou comigo quando ela morreu, ao contrário do que o Lance pensava, por puro interesse. Eu não queria ir para fábrica, foi ideia dela, viajamos por dias e em uma das paradas ela resolveu encher a cara, era insuportável quando bebia – as palavras saiam carregadas de mágoa, por trás delas um mundo de lembranças, não das melhores, ele imaginava. – Quando entramos em Lynchburgh eu fiz uma pergunta, a resposta foi bem pior do que eu esperava. Era sobre a minha mãe, algo que ela nunca me contou. Ela parou o carro, nós discutimos e eles começaram a aparecer, eu... eu não queria fazer aquilo, mas perdi a cabeça, foi ela que pegou a faca, eu só tentei afastá-la.

 Ela fez uma pausa, outro soluço escapou apesar do esforço que fazia para conter o choro. Antes de prosseguir, fechou os olhos e encheu os pulmões, soltando lentamente em seguida.

— Eu comecei, mas de repente ela estava sobre mim com aquela faca e eu a empurrei. Você viu o que aconteceu. Os zumbis estavam nos cercando, não queria ter feito aquilo, mas eu estava com tanta raiva que só deixei ela ali, peguei o dinheiro do Lance e fui embora. Foi na noite em que você me encontrou.

— Por isso tanto sangue – pensou alto e ela afirmou. Ele tentava encaixar as peças em sua cabeça, nem tudo fazia sentido ainda e só deixou que ela continuasse.

— Sabe, na hora, quando eu a deixei lá, eu me senti livre, aliviada de um jeito que me perturba. Eu não devia sentir isso e agora, depois de criticá-la por tudo que fez, eu só consigo me sentir igual a ela, tão ruim quanto. Prova disso é que sem ela aqui eu absolutamente não sei o que fazer, porque era sempre ela quem dizia e eu tinha que seguir, nunca desobedecia, por pior que fosse o plano, sempre ia atrás dela. Eu menti por ela mais vezes do que consigo lembrar, mesmo sabendo que ela estava errada, que podia prejudicar alguém. E eu mentia para mim mesma dizendo que não tinha outro jeito, mas tenho certeza de que se me esforçasse mais teria achado. Como na fábrica, seja lá qual fosse a situação em que ela nos metesse, eu tentava me acostumar, ver o lado bom, porque de algum jeito, não importava a merda em que eu estivesse, ela fazia parecer necessário agradecê-la por ter me tirado da anterior.

 Ele não disse nada de imediato, era coisa demais para uma garota de dezesseis anos e Will tinha a impressão que era a primeira vez que ela falava sobre aquilo. Não sobre o acidente, sobre como se sentia. De certa forma, ela o fazia lembrar de si mesmo quando tinha sua idade.

— Você não é igual a ela, Megan. Não foi sua culpa – enfim se expressou, atraindo sua atenção. – Eu não sei como foi o tempo que passou com ela, não sei o quão ruim foram as coisas, mas consigo ter uma ideia, e sei bem o que a raiva pode fazer, ela já me fez errar muito. Mas eu consegui ver além dela e é isso o que importa, isso é o que te faz diferente da Diane. E não tem nada de errado em se sentir bem por ter se livrado da porcaria de vida que você tinha, não deixa o Lance ou o que ela dizia entrarem na sua cabeça.

— Acho que já entrou.

 Sorriu melancólica. Will ficou de pé, foi até ela e lhe estendeu a mão, não achava dez minutos de conversa suficientes para que ela superasse aquilo tudo, contudo, não dispunham de muito mais do que isso no momento. Foi um acidente, era tudo o que ele precisava saber.

— Vamos tirar, então – levou alguns segundos, mas Megan segurou sua mão e ele a ergueu. – Eu sei que isso tudo acontecendo é demais para processar, que não tem nada melhorando, e tudo bem chorar às vezes, se sentir sozinha, perdida... se serve de consolo, nenhum de nós sabe bem para onde ir ou o que fazer, estamos todos no mesmo maldito barco – ela concordou secando o rosto. – Vem, não podemos ficar aqui.

— Então, acredita em mim?

— Entre você e o Lance, por tudo o que eu já vi das duas partes, prefiro confiar em você. Mas tem que ser uma via de mão dupla, se vamos passar por essa coisa juntos, como parece, temos que confiar um nos outros ou não vai funcionar. E precisamos fazer funcionar, todos nós.

 Megan afirmou com a cabeça, ele tocou seu braço e voltaram lado a lado. O grupo já estava pronto para partir quando chegaram, apenas Janet e a doutora os esperavam fora dos carros, a segunda soltou o ar aliviada quando os viu, com certeza teria sorrido se a situação fosse outra.

— Meu Deus, quase me matam de preocupação, onde estavam? – Questionou e olhou confusa para Megan, qualquer um diria que estava chorando – está tudo bem?

— Sim, eu só precisava dar uma volta, me acalmar um pouco. Desculpe – respondeu sem encará-la, de certo estranhando a preocupação, Will pensou. “Ninguém daria falta”, como ela pôde achar isso? 

— Decidiram para onde vamos? – Mudou de assunto, algumas sugestões haviam surgido mais cedo.

— Aquelas casas que o Kyle comentou, seguindo a rodovia, é a opção mais próxima e ficam fora da área urbana, acho melhor assim – Janet respondeu, girando aflita a aliança no anelar esquerdo. Will conhecia aquele sentimento, esperava que Janet tivesse mais sorte que ele.

— Kyle pegou o jipe, ele vai na frente, preciso ficar de olho no Ian – Gen comunicou, seu rosto entregava a situação do ferido.

— Tudo bem, é melhor irmos de uma vez – os quatro se dividiram. Will e Megan voltavam para a moto quando ele a fitou mais uma vez – ei, não esquece o que eu disse sobre a Quinn. Ela não é idiota, tenho certeza que conseguiu sair.

 Queria dizer que a encontrariam, mas não era o tipo de promessa que ele conseguia cumprir, já estava claro àquela altura. Ela apenas fez que sim sem muita convicção, subiram e esperaram Kyle tomar a frente.

 Bem antes de alcançarem a próxima cidade as casas surgiram, quatro modestas construções, consideravelmente distantes entre si. Pararam na terceira, sem garagem ou varanda, apenas um andar e paredes de madeira já não tão brancas, apenas Will e Janet estavam armados, os dois caminharam com Kyle até a porta.

— Minha tia morava aqui, colocou a venda quando o marido morreu – ele apontou a placa da corretora. – Logo depois essa loucura começou, não acho que alguém tenha comprado.

 Brincou, mas tinha o semblante triste. E quem ali não tinha? Will meneou a cabeça e sinalizou para Janet, os dois circundaram a casa para conferir, todas as janelas estavam trancadas e cobertas por cortinas, a porta dos fundos inteira, nenhum zumbi por perto. Voltaram para a frente, onde Kyle erguia uma pequena tábua solta do último degrau de entrada, retirando de lá uma chave.

— Para emergências – justificou e girou a chave na fechadura, o rangido da aporta se abrindo ecoou e esperaram um instante ali, atentos ao interior. Kyle deu um passo para dentro, mas Janet o impediu de continuar.

— Espere aqui – o tom imperativo o convenceu, não que precisasse de muito esforço, como quase todo o resto, o rapaz não estava disposto a se arriscar.

 Uma sala pequena, quarto, cozinha e banheiro, quase sem nenhuma mobília e livre de mortos vivos. Teria que servir, pelo menos por enquanto. Pararam os carros sobre o gramado seco e colocaram todos para dentro, a única cama ficou para Ian e os dois sofás para as crianças. Cinco no total, uma delas havia acabado de perder o pai, uma menininha que dormia no colo da mãe, Lisa, sem muita noção do mundo ao redor.

 A noite caiu depressa, a única luz vinha de fora e não permitia ver mais do que silhuetas. Janet estava no quarto com Ian e a doutora Olson, montando guarda em uma janela e chamando no rádio de hora em hora. Will ficou com a janela da sala e os murmúrios que vez ou outra quebravam o silêncio sepulcral estabelecido entre os sobreviventes, que se espalhavam até a cozinha. O cheiro da casa era uma mistura fétida de mofo, suor e sangue.

 Só o que tinham eram dois galões de gasolina no porta-malas, nada de comida ou água, não podiam ficar ali muito tempo, a horda se espalhou por Charlottesville, nada impedia que viesse naquela direção. Dos acampamentos que Will visitou, o mais próximo ficava há duas horas dali, estava cheio, mas podiam tentar, se o grupo não aceitasse precisariam sair pela manhã e procurar suprimentos. Will suspirou cansado, Jordan já havia limpado todas as cidades da região, não tinha mais nada ali, tudo estava na fábrica, pilhas de comida protegidas por um exército de mortos.

— Não podemos ir embora, eles devem estar por perto! – Assim que amanheceu Will expôs sua ideia, Janet foi a primeira a refutar – eu te disse que não vou desistir.

— Nem eu, meus irmãos ficaram para trás, ainda existe uma chance – June insistia ao lado da mais velha, não eram as únicas que queriam ficar.

— Seus irmãos devem estar mortos à essa altura, meus filhos não estão, não vou arriscar a vida deles! – Disse Aaron, o pai da família de seis que Gen ajudou, com o filho mais novo nos braços.

— Pois nos faça um favor e vá embora de uma vez! Serão menos bocas para alimentar.

— Ninguém vai ir embora! – Will interferiu na discussão, correndo os olhos por todos ao redor da mesa de jantar, onde um mapa estava aberto – não vamos dividir o grupo, vocês nunca estiveram aqui fora, não têm ideia de como é, juntos temos mais chances.

— E quem foi que te nomeou líder? – Miles, um dos contras, se pronunciou.

— Ninguém falou sobre liderança, precisamos chegar a um consenso. Eu sei que estão preocupados, que deixaram pessoas, eu já estive nesse mesmo lugar – deixou de fitá-los um instante, o que diria a seguir era tudo o que podiam fazer por hora, mesmo assim dentro dele ainda soava como traição –, mas não vale a pena. Se quiserem sobreviver, têm que fazer uma escolha, é assim agora. E eu escolho os que estão aqui, vivos, diante de mim.

 Se aquietaram, refletindo sobre aquelas palavras. Ele interpretou as trocas de olhares e o silêncio prolongado como concordância, ou algo perto disso.

— Vamos ficar até amanhã, procurar comida nas outras casas, esperar por mais alguém. É só o que podemos fazer, não dá para voltar lá. Temos que seguir em frente – terminou com o olhar sobre Megan, para ela isso tinha mais de um sentido.

 A garota também se opunha, por Quinn, entretanto não disse mais nada, apenas caminhou para a sala de cabeça baixa, tomando o lugar de Will na janela enquanto decidiam o resto. Só duas pessoas estavam armadas, Will não achava boa ideia deixar Janet sair, ela tinha coisas demais na cabeça para se colocar em risco, então ele iria com os três que se ofereceram. Ian não estava nada melhor, mal se mantinha acordado, a ferida começava a infeccionar.

— Gente, tem um carro vindo ali! – Megan chamou se pondo de pé e em um piscar de olhos todos se juntaram a ela.

— Esperem, ainda não – Will pediu aos que abriam a porta, podiam ser desconhecidos. – Janet, o rádio.

 Ela correu para o aparelho e voltou a chamar, Will Fixou os olhos no horizonte, tentando reconhecer o ponto preto se aproximando e antes da voz chiada responder, ele já sabia de quem se tratava. O primeiro carro a deixar a fábrica diminuiu a velocidade ao avistar a casa. Lance foi o primeiro a descer.

— É claro que ele sobreviveu – Megan bufou e saiu do seu lado, ele não viu para onde, apenas cruzou a porta com os outros e observou a cena que se seguiu.

 Enquanto Lance, com um sorriso de orelha a orelha, abraçava um casal, Jordan e um outro homem também desceram. Ninguém o conhecia, chegou na noite antes da queda e naquele momento não conseguia esconder sua irritação, assim como Jordan, ele estava sujo e machucado, bem diferente do líder carismático.

— Lance! – Janet atravessou o círculo que se formava e chegou a ele.

— Janet, que alívio ver que está bem! – A segurou pelos ombros antes de abraçá-la também, que correspondeu sem muita escolha e se soltou depressa – onde está o Hough?

— Era o que eu pretendia perguntar – sua expressão murchou instantaneamente. – Ele foi até o bloco A quando o portão começou a fraquejar, para te avisar, achei que estivesse com você.

— Meu Deus, Janet, eu sinto muito. Eu não cheguei a encontrá-lo – o tom melancólico era convincente. Quando ele passou a se dirigir ao grupo todo, Will não teria percebido a farsa se não tivesse presenciado o que aconteceu – não encontrei o Hough, mas assim que vi o que acontecia algo se ascendeu em mim, o medo de perder vocês, a segurança que construí para vocês. Eu corri, mobilizei meus homens, dei as ordens para barricada, lutei com eles para proteger aquele lugar, contudo, não foi o suficiente. Eu não pude impedir o que aconteceu, não pude impedir que nossos amigos morressem. Não espero que me perdoem, não acho que eu mesmo vou conseguir, mas mesmo assim eu peço. De todo o coração.

 Discursava em gestos amplos, olhando nos olhos de um por um, com lágrimas nos seus. Will se mantinha atrás do resto, ainda não tinha sido notado por Weaver e antes que ele continuasse o drama, se colocou em seu campo de visão. Por um segundo, a face arrependida de Lance se transformou em surpresa.

— É verdade, assim que viu o que acontecia ele correu. Correu para fora de lá! Ele não viu os mortos chegando, não estava nem aí para nada disso, estava comigo quando aconteceu e quando invadiram foi o primeiro a ir embora, sem hesitar ou tentar ajudar nenhum de vocês, nenhum dos que confiaram no que ele prometeu. A barricada já estava lá e se tem algo que você não fez foi lutar, basta olhar para você para saber disso. Megan estava lá também, podem perguntar a ela.

— Ou a mim, se quiserem – o desconhecido se pronunciou, vindo até eles. – O lugar nem era meu, mas acabei com mais zumbis do que esse covarde, depois saímos juntos e adivinhem? Ele não moveu uma palha até chegarmos aqui.

— Ora, Gavin o que está dizendo? – Lance sorriu sem graça, limpou a garganta e retomou a postura imperativa – vamos entrar e acalmar os ânimos, foi um momento traumático, é difícil entender o vemos nessas situações. Venham, não é seguro aqui fora.

— Fique à vontade, Lance, eu vou embora – Gavin informou e Lance o encarou com uma ruga na testa. – Vim aqui para pedir ajuda, mas estão piores que nós.

— E o que conversamos? Eu disse, é questão de tempo até nos reestabelecermos, pouco tempo.

— Pouco tempo? Pelo que eu vi era mesmo um ótimo lugar, porém foram idiotas o bastante para perder, agora já era. Não vão conseguir voltar para lá.

— Não seja tão pessimista, Gavin, sabem que eu sempre consigo o que quero – riu escondendo as mãos nos bolsos, no fundo Weaver sabia que ele estava certo e isso o deixava nervoso.

— Conseguia, quando sua grana ainda valia alguma coisa, isso não vai passar, Lance.

— Não é o que seu chefe acha, já que te mandou vir aqui negociar – se estressou, caminhando para ele. Foi a vez de Gavin rir.

— Valentine pensa como eu, ele só me mandou porque sabia que você seria estúpido o bastante para acreditar que seria pago pela ajuda. Mas agora não tem mais o que negociar, então boa sorte. Se importa se eu levar um desse?

  Apontou os carros e já ia se virar quando Lance, furioso, sinalizou para Jordan, que o pôs em sua mira. Rapidamente Gavin desfez o movimento, também retirando uma arma de sob a blusa e a erguendo na direção de Weaver.

— Nem tente – avisou para seus olhos arregalados, o grupo recuou espantado, alguns correram para dentro, Will continuou ali, mas achou melhor não tomar parte –, não vai querer confusão com o Adrian nessas condições.

— Atire em mim e ela te mata, dane-se o Adrian! – Rebateu sem muita convicção.

— Será? – Gavin estendeu a outra mão para Jordan – a chave, devagar.

 Ela revirou os olhos, mas atirou a chave da Mercedes para ele, que foi de costas até o carro e só deixou de apontar a arma quando se colocou em movimento.

— Filho da mãe – Lance balançou a cabeça o assistindo partir, por fim suspirou e se voltou para a casa outra vez, com mais um sorriso falso. – O show acabou, amigos, está tudo bem!

— Não tem nada bem, Lance, ele está certo – Aaron deu um passo a frente, indicando Will –, nós confiamos em você, disse que aquele lugar nunca cairia e olhe só onde estamos! E você nem se dignou a olhar para trás.

— E quem é Valentine, do que esse homem estava falando? – A preocupação de Janet se espalhou pelos outros, todas as vozes se ergueram ao mesmo tempo, chovendo perguntas sobre Weaver.

— Se acalmem! – Ele gritou quando um zumbi despontou na lateral da casa.

  Aquele único vagante foi o necessário para assustá-los e mesmo assim queriam esperar mais tempo nas ruas, Will fez o caminho contrário do resto, puxando sua faca da cintura. Se desvencilhou dos braços ávidos do zumbi, um senhor de longos cabelos brancos que provavelmente esteve perdido na mata desde o início, nada nele indicava já ter feito sua primeira refeição pós-morte. Um golpe na têmpora e ele estava no chão.

 – É melhor entrarmos, podem ter mais deles por perto.

 Voltaram para dentro e bloquearam a porta outra vez, Lance olhou em volta, claramente incomodado com a simplicidade do lugar. Colocou uma das crianças de lado para se sentar no sofá, acomodando-se como um rei.

— Agora responda – Will deixou passar a atitude para focar no que importava, não queria mais desgaste –, o que foi aquilo lá fora?

 Cruzou os braços, Lance estava de costas para ele e vez ou outra virava a cabeça para enxergá-lo.

— Aquilo foi uma negociação malsucedida. Gavin tem um grupo, com um líder obcecado e excêntrico, que precisa de abrigo, mas não vai dar – respondia com tranquilidade. Líder excêntrico, obcecado e desabrigado, desde quando Lance tem um irmão perdido? Will Guardou o pensamento para si.  

— De onde eles são? O que menos precisamos agora é de um conflito.

— Carolina do Sul, estavam na capital para algum plano idiota do Valentine. Eles não serão um problema.

 Colúmbia, ele se lembrou do caos que viu naquele lugar, do que passou com aquelas pessoas. Martha os resgatando do prédio, a morte de Joe, o choque de Carson e dos outros que chegaram ao galpão. Além deles, enquanto saia da cidade, Will não cruzou com nenhum outro sobrevivente, Gavin e seu grupo tiveram sorte.

— Vocês viram mais alguém no caminho para cá? – June questionou.

— Fomos para o outro lado da cidade, só que eles estão por toda parte, passamos a noite em uma loja vazia e esperamos até se dispersarem para irmos. Tentamos outro caminho antes desse, mais perto da fábrica, mas ainda está muito ruim. Não encontramos ninguém além de vocês.

 Will se recostou outra vez na janela, o grupo pronto para voltar aquele estado pensativo e silencioso, quando Gen apareceu na sala acompanhada de Megan.

— Meu Deus, não posso acreditar na minha falta de sorte – imediatamente Lance se pôs de pé. Não via seu rosto, mas sentiu o desprezo na voz dele –, pensei que o carma teria lhe jogado direto na boca de um zumbi.

  — Como chegou aqui? – Megan o fitava com o mesmo desdém.

— Do mesmo jeito que todos, mas o que importa é que eu vou ficar e você vai embora agora mesmo – Lance ia lento até ela, roubando a atenção de todos. – O lugar mudou, porém minha opinião continua a mesma, não vou te tolerar no meu grupo.

— Do que está falando, Lance? – Gen interferiu ao lado dela.

— Meggy fez uma coisa errada e me deu nos nervos, doutora, é isso. E agora ela está de partida.

— Não vamos mandar alguém embora a cada vez que se irritar – Will se aproximou deles quando mais uma vez ficaram cara a cara.

— Como disse, essas pessoas confiaram em mim para protegê-las, William, e é o que estou fazendo. Você parece não se importar com o que aconteceu, mas será que eles...

— Já chega! – Ele puxou Weaver para longe da menina, atraindo um olhar furioso – ela não vai a lugar nenhum. Não estamos mais na fábrica, esse não é mais o seu grupo, não tem direito de expulsar ou falar assim com ninguém.

— É isso o que você acha? Eles me escolheram para liderar, garoto!

— Eles não te escolheram, escolheram os muros da fábrica, fizeram um negócio e como Gavin falou, você não tem mais nada a oferecer. Acabou, a partir de agora é só mais um sobrevivente igual a todo mundo aqui.

 Ele mantinha a voz e os olhos firmes, ninguém discordou do que disse, nem mesmo Jordan, que permanecia alerta, mas distante. Lance umedeceu os lábios e respirou profundamente, controlando a raiva.

— Tudo bem – forçou um sorriso de lado e o fitou, erguendo as mãos –, sem problemas. Eu só queria que soubessem a verdade.

— A verdade é que se irritou por ela te desafiar, criou uma história na sua cabeça e a colocaria para fora só para reafirmar sua força, não tem nada além para saberem, isso não é sobre eles, é sobre seu ego. Se continuar agindo assim, talvez seja melhor que você saia.

 Lance não replicou, olhou em volta para as expressões de desaprovação e soube que não valia a pena comprar briga. Não tentou mais nada, apenas se isolou em um canto na cozinha.

— E eu achando que vocês tinham ficado amiguinhos – Megan arqueou uma sobrancelha, os olhares se dispersaram, toda via ela continuava tensa com o quase escândalo.

— Só trocamos favores, me avisou para não confiar nele. E depois de ontem está bem claro quem ele é – fitou o líder deposto um instante.

— Mesmo assim, obrigada, não precisava ter feito isso.

— Não precisamos de mais drama aqui – disse. Lance se juntar a eles foi a cereja do bolo para um grupo dividido, majoritariamente indefeso e temporariamente sem teto.

 As casas estavam quase vazias, tudo o que conseguiram foi para as crianças e Ian, mais zumbis chegaram. Ninguém mais apareceu ou chamou no rádio, a fome, a insegurança e o medo começaram a afetar mais do que o altruísmo. E no dia seguinte, assim que o sol nasceu eles partiram. Na placa branca da corretora de imóveis, deixaram uma última tentativa, as coordenadas do acampamento e meia dúzia de nomes pintados.

 Foram para o leste, por todo o caminho quase nenhum traço de civilização e quando pararam também não parecia haver nada em volta, só o típico cenário verde. Provavelmente esperavam cercas e paredes, e não um acampamento literal, considerando a expressão em seus rostos ao saberem que entrariam na floresta.

— Eles continuam lá – Will confirmou, de pé no teto da minivan, olhando o vale depois das árvores. Desceu antes de prosseguir – ok, são só alguns minutos de caminhada, mas fiquem atentos e não se separem do grupo, o terreno é meio escorregadio, tenham cuidado.

 Ele ia na frente, alerta para qualquer ameaça, Jordan logo atrás ajudando Lance, que resmungava aos montes. O restante caminhava devagar, ziguezagueando pelas pedras e raízes da superfície íngreme. Puderam ouvir a aglomeração logo abaixo bem antes de vê-la e assim que as primeiras barracas surgiram ao longe, o pesadelo os alcançou outra vez.

 O grito de um menino fez todos olharem para trás, a tempo de ver Aaron trazer o filho para longe de um zumbi, eles eram os últimos e nesse movimento o homem foi ao chão, protegendo a criança com o corpo quando o morto-vivo se debruçou sobre os dois. Will estava longe, correu de volta deslizando pela lama, entretanto antes que chegasse a esposa os alcançou, tirando o infectado de cima deles tarde demais.

 A atenção do zumbi se voltou para ela, a segurou pelos braços enquanto essa tentava se desvencilhar e de repente mais se aproximavam. Will tentou mirar na cabeça, mas podia acertar a mulher, então disparou contra a perna, fazendo-o tombar. A essa altura o restante já havia começado a gritar e correr para o vale, atropelando uns aos outros no caminho, Gen tropeçou apoiando Ian e os dois caíram perto demais dos mortos, atraindo-os para si.

  Will alcançou a mulher, abatendo o zumbi enquanto ela corria aos prantos para o filho, Aaron continuava sobre ele, jorrando sangue da garganta rasgada pela mordida. Janet atingiu os dois que se aproximavam de Olson, dois homens desconhecidos surgiram vindos do acampamento e acabaram com o resto. Os gritos pararam, quem sobrou parou de correr, Will olhou ao redor ofegante, a família de Aaron se abraçava ao lado do corpo, Megan, Lance e Jordan fizeram o caminho de volta e observavam tudo. Ele não havia notado Lisa ali até então, encolhida com a filha distante dos outros. Uma delas sangrava.

— Gen – ele chamou e lhe apontou as duas, Ian estava desacordado e a médica correu para elas.

— Quem são vocês? – Um dos estranhos perguntou, mais gente do acampamento se aproximava.

— Viemos pedir abrigo, fomos atacados no caminho – Lance se respondeu por todos. – O lugar onde estávamos caiu.

— Como souberam de nós?

— Eu contei – Will deu um passo à frente –, vim aqui há algum tempo, procurar uma pessoa. Podem nos receber?

— Quase não temos espaço, vocês são muitos – ele mantinha o rosto fechado, olhando sério de um para o outro.

— Por favor, temos crianças – pediu apontando a família, a mãe parecia distante, agarrada aos quatro completamente assustados.

— Não! Ela vai ficar bem! – Ouviram Lisa gritar entre as lágrimas, a menina agora se sentava ao seu lado para que Gen examinasse, na altura de seu ombro havia uma mordida.

— E infectados – o outro homem também notou, olhando da criança para Ian.

— Infectados não entram.

— Ele não está infectado e a menina não pode ficar aqui fora, já não é ruim o bastante o que aconteceu? – Will tentou, era uma regra impiedosa, contudo eles continuaram inabaláveis – por favor, nós nos responsabilizamos. Tenha alguma empatia!

— Eu não vou repetir, infectados não entram e se ele não está, é só que estão de tempo, não vai durar muito, não temos como ajudá-lo. Quando resolverem isso, desçam e poderão falar com o comandante, talvez ele os aceite.

— Não vamos deixá-los aqui! – Janet se posicionou.

— Como quiserem – o homem deu de ombros e se virou para ir embora, os outros fizeram o mesmo.

 Foi quando três novos tiros se fizeram ouvir. O primeiro acertou Aaron, o outro Ian e antes que alguém pudesse impedir, o terceiro passou por Gen e atingiu a menina. Todos na cabeça, disparados por Lance, que em um movimento rápido havia tomado a pistola do coldre de Jordan.

 Sob os olhares atônitos e o choro estridente de Lisa, com o rosto impassível ele baixou a arma, devolvendo-a. E novamente sem olhar para trás, andou sereno na direção dos anfitriões.

— Problema resolvido. Onde está o comandante?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Gostaram?
Nos próximos teremos a volta de alguns personagens e novos pontos de vista... :v



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Hecatombe" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.