Pera da Angústia escrita por Sweet Natália


Capítulo 1
Lágrimas no fogo




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Não precisei abrir os olhos para conseguir adivinhar o que mantinha Ébano tão assustado. Era de seu feitio miar para a janela assim que os mais míseros pingos de chuva escorriam pelas vidraças, o que acabava me acordando: o lado bom disso é que um gatinho pode servir como seu despertador natural sempre que as tecnologias mundanas não agem conforme o esperado. Mas isso não era tão proveitoso quando o bichano despertava antes mesmo das 6 horas, como naquele momento. O interior daquele cubículo que as irmãs comumente chamavam de "dormitório sagrado" não era confortável o bastante para que duas moças e um gato habitassem, porém a saída repentina de minha colega de quarto havia me favorecido nesse ponto. O segundo piso que abrigava o meu cômodo (e tantos outros dormitórios para jovens que, assim como eu, eram órfãos desabrigados), acima de uma das mais magnânimas e renomadas Igrejas de Plymouth (o "Centro da Salvação"), rangia à menor incitação dos ventos e, particularmente, estes estavam tornando a locação extremamente ruidosa nos últimos tempos. Mas me adaptei a esses rangidos, assim como à falta de familiares ou de uma casa.

De qualquer forma, acabei acordando com os grunhidos e miados agudos de Ébano, que agora arrastava as patas pelas janelas, como se a implorar para que abrissem. As mesmas vozes de antes pareciam perturbar minha mente, e nem o menear da minha cabeça mandava-as embora. Decidi ignorá-las e caminhar até as venezianas. Foi puxar os puxadores da janela para os gritos de desespero cessarem, tanto os do gato quanto os de minha cabeça, dando lugar ao tranquilo barulho da chuva constante. Ousei, finalmente, escorregar a ponta dos meus dedos pelo corpo frágil e negro de Ébano, acatando com o ronrono que eclodiu a partir desse gesto tão simples. Fui tomada por uma súbita fome, e então voltei-me para a porta, prestes a sair por ela em direção às escadas — e o teria feito, isso caso meu pé não pisasse em falso em uma das tábuas do assoalho, acabando por erguê-la e revelar um objeto nada convencional e, pelo menos, inusitado.

A caixinha tinha um tom de roxo peculiar, puxado para o índigo, e também possuía lindos detalhes prateados que a enfeitavam do início ao fim. Tentada a descobrir o que se escondia em seu interior, peguei-me vasculhando o assoalho com os dedos, em busca de outra tábua solta, tudo isso para encontrar uma chave que pudesse abrir aquele objeto curioso. Então encontrei. A chave oculta sob uma das madeiras apodrecidas era tão bonita quanto a caixinha; tinha o mesmo tipo de detalhes, mas com as cores inversas. Girei a chave na fechadura do artefato cuidadosamente, com medo de quebrar alguma coisa. O que encontrei como conteúdo me causou certo desapontamento, embora a fagulha da curiosidade ainda fervesse em meu interior. Agora as vozes retornavam, ecoando pela minha mente, e eu tentava focar nas letras miúdas impressas em um dos pequenos pergaminhos que eram mantidos naquela caixa. Fechei os olhos para tomar fôlego e apaziguar a guerra que mantinha-se em polvorosa em minha cabeça, o que pareceu funcionar pelos breves segundos que procederam. Então, e só então, mergulhei na leitura:
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ㅤㅤㅤㅤㅤㅤ"SALÉM, MASSACHUSETTS, 1690, DOIS ANOS ANTES DOS JULGAMENTOS POR BRUXARIA…“
ㅤㅤㅤO eclipse lunar dava abertura para uma corrida silenciosa em direção às florestas das redondezas da vila de Salém. O archote parecia querer queimar em minhas mãos, e por isso apressei os passos, virando-me para trás vez ou outra para conferir se estava ou não a ser seguida. Finalmente pude ver uma luz não muito distante — um sinal de que as mulheres já estavam reunidas. O pesar de saber que minha decisão era necessária fazia com que meus passos se tornassem ainda mais pesados conforme meus pés aproximavam-se da aglomeração de bruxas, e aquela, definitivamente, era uma de minhas escolhas mais difíceis. Percorri o olhar pelas seis mulheres que espalhavam-se ao redor do lago, todas de diferentes idades e vivências, e peguei-me rezando pelas almas dos gêmeos que carregava no ventre.
ㅤㅤㅤNão demorou para que eu me encontrasse deitada na grama — que, por sinal, parecia conter um odor fétido e pútrido, talvez pelas circunstâncias que me cercavam. O olhar lançado por uma das mulheres parecia ser capaz de desmembrar qualquer um que o encarasse, e por isso fechei os olhos, buscando coragem nos confins mais profundos de meu âmago. O ritual não demorou muito, ou pelo menos a sensação era de rapidez: grunhidos eram ecoados por cada uma das bocas presentes naquela floresta, que eram ligadas vez ou outra por um cântico uníssono. O nome da Deusa era mencionado com frequência, o que dava indícios de que sua presença era mais do que requisitada naquela noite de eclipse. Descerrei os olhos em determinado momento e pude ver uma reunião de sombras circundar os archotes das bruxas, cada uma berrando em meus ouvidos palavras sujas e frases tristes. De repente, entretanto, as sombras foram dissipadas e um fulgor domou meu peito, sinal de que meus bastardos agora haviam sido levados pela glória da Deusa: era necessário abrirmos espaço para frutos dignos de sua benevolência. E esse espaço anteriormente era ocupado por aqueles gêmeos.
ㅤㅤㅤO ritual destinado unicamente a dar início a uma era repleta de soberania Proctor aproximava-se cada vez mais do fim, e pude constatar isso quando Tituba, uma das mais poderosas bruxas de Salém, aproximou-se com um cálice. Nesse cálice uma pequena vela mantinha-se acesa, e senti minha cabeça ser erguida em direção a ela para que meus olhos marejados derramassem as lágrimas na vela. O pavio demorou para ser apagado: foram necessárias três lágrimas para que o fogo fosse extinto.
ㅤㅤㅤ — Três lágrimas. Um filho para cada gêmeo sacrificado, e uma filha para receber a soberania da Deusa — as palavras de Tituba deram início a mais um cântico, dessa vez destinado à minha filha, que pareceu enriquecer a floresta com as vozes femininas e mágicas de todas as seis ali reunidas.
ㅤㅤㅤFelizmente, quando um dos sacerdotes de Salém aproximou-se da floresta, o ritual já havia chegado ao fim. Os passos daquela figura masculina deram espaço para uma fuga rápida das bruxas, que correram em direções aleatórias, tudo para manter em completo sigilo a existência de um rito destinado a forças ocultas. Senti meu corpo vacilar algumas vezes antes de finalmente conseguir ficar de pé para correr por minha própria vida, cada vez mais alarmada pelos gritos do reverendo. Minhas pernas bambearam do início ao fim, enquanto meus pés apressavam-se em direção do interior da floresta. A voz do sacerdote já parecia muito mais distante do que anteriormente, mas isso não foi o suficiente para desacelerar minha corrida. Me apoiei vez ou outra em galhos dispostos pela floresta, tomando-os como impulso para meu curso desenfreado. Quando finalmente cheguei às margens de um lago para me refrescar, meus olhos pareciam ferver, isso antes de converterem as lágrimas em sangue.
ㅤㅤㅤO líquido espesso e rubro que vertia de meus olhos concedeu-me um pavor ainda maior assim que encostei em minhas bochechas, notando o sangue instalado nelas. Meus gritos de horror teriam acordado todos os animais que moravam na floresta, isso se fossem ouvidos: senti como se uma mão envolvesse meu pescoço e o comprimisse, impedindo a saída de minha voz. Acompanhando as lágrimas afogueadas, vultos negros voavam ao meu redor, concedendo-me visões horríveis e assustadoras. Giles Corey, o primeiro a morrer sob acusação de bruxaria em 1692, esmagado por pedras após um período de três dias. Bridget Bishop, a parteira que havia auxiliado no nascimento de três de meus filhos, a primeira a ser enforcada em praça pública. Rebecca Nurse, Sarah Good, Elizabeth How, Sarah Wild e Susanna Martin, enforcadas em julho de 1692. Conhecia todas as cinco, e três delas encontravam-se no ritual de meus gêmeos. Finalmente, um vulto que me concedeu a visão de agosto daquele mesmo ano: meu marido, John Proctor, com seu pescoço envolto por uma corda que impedia-o de falar, de respirar, de viver. Aquela visão foi o máximo que pude distinguir: fechei os olhos, aos berros e aos prantos, enquanto rastejava até o lago. Não me dei o trabalho de abrir os olhos enquanto mergulhei meu rosto nas águas geladas da floresta.

ㅤㅤㅤAbri os olhos, ofegante, como se tivesse acabado de me afogar. Ergui-me do chão e corri até a janela, ajoelhada ao lado de Ébano para conseguir respirar o ar puro e fresco que a chuva direcionava até meu quarto. Eu tinha essa incrível sensação de que aquilo não havia sido somente leitura, mas também um momento vivenciado através dela. Recordações de um passado distante, de séculos passados. Mas, ainda assim, acontecimentos que não eram apenas letras: eram verdades. Retornei até a caixinha arroxeada, armazenando o pergaminho que ainda residia entre meus dedos em seu interior, e decidi descer a escadaria para esclarecer os estranhos acontecimentos acerca daquele pequeno — e nada comum — artefato. Cada degrau superado parecia despertar cada vez mais as mesmas vozes de antes, que agora agitavam-se em minha mente. Dessa vez elas estavam mais nítidas, embora mais confusas do que nunca: "fuja, terceira, Salém, Elizabeth, você, você, você…”. Quando finalmente cheguei no final da escadaria, optei por não aventurar-me de imediato nas redondezas da catedral. O tom alerta da voz do padre secretava algo a alguma mulher, e me peguei curiosa para saber o quê.
ㅤㅤㅤ — Sarah, você não pode se render ao sentimentalismo. Estamos falando de gerações que dependem de um ritual para serem salvas, e sua vulnerabilidade às emoções humanas pode trazer o fim para nossa família. Ela nunca esteve entre nós, sempre foi uma promessa Dela.
ㅤㅤㅤPude distinguir a voz de minha mãe de criação, a irmã Sarah, entre tantas palavras emitidas pelo padre da tal aclamada "Centro da Salvação", e seu sentimento era explícito através de suas palavras lamuriosas. Espreitei a dupla, que encontrava-se pouco atrás da porta que dava em direção ao local de missas da Igreja. Eles pareciam não ter notado minha presença. Ainda assim, consegui vê-la opôr-se às palavras de Gerald conforme as mãos dele desciam pelas bochechas de minha única figura materna.
ㅤㅤㅤ — Mas... Detesto que as coisas tenham que ser feitas dessa maneira. Gerald, não há outra alternativa? Nossos antepassados podem ter contribuído para várias atrocidades, entretanto...
ㅤㅤㅤ— Minha querida — ele respirou fundo antes de replicar —, uma semente só fecundará o ventre do clã caso um sacrifício seja feito. Sabemos muito bem quão longe estamos dessa falsa cristandade, não é necessário fingir para mim.
ㅤㅤㅤSarah continuou, hesitante:
ㅤㅤㅤ— Sim, sei disso. Mas o fato é que me afeiçoei à menina, e eu não desejo machucá-la... Nem que seja por um segundo, ou mesmo por esse bem maior.
ㅤㅤㅤ— Pare com essas tolices, Sarah — ele ergueu a mão, prestes a batê-la nas faces. Ao ver a reação da pobre mulher, Gerald abaixou o punho com certo receio. — Não há como voltar atrás. Tantos sacrifícios, tantas fachadas mantidas por tanto tempo... Vai desistir de tudo por conta de uma adolescente que nada significa perante as vontades divinas?
ㅤㅤㅤMinha mãe permanecia acanhada diante do iminente ato violento, cedendo à vontade da figura masculina.
ㅤㅤㅤ— De-desculpe. Não sei onde estava minha cabeça. Ela é só um peão, assim como todos os outros.
ㅤㅤㅤ— Assim como todos os outros. Então o ritual será hoje.
ㅤㅤㅤ— Mas como devemos fazer? — Indagou ela, sem pestanejar pela primeira vez. — Digo, sem machucá-la?
ㅤㅤㅤ— Convide-a para uma missão cristã. Invente algo, dê seu jeito. Pegue aquelas "ervas-desmaiadoras" escondidas na cristaleira, misture-as em uma solução salina e ofereça a ela como uma limonada. Ela sequer sentirá o gosto salgado para poder desconfiar, isso se você usar todas as folhas...
ㅤㅤㅤNão posso descrever minha reação naquele momento, mas corri rápida e silenciosamente para meu quarto, o que tornou as últimas palavras do padre completamente desconexas. Minha mente martelava duramente, tentando compreender o que acontecera e o que viria a acontecer. Era de mim que falavam? E por quê desejavam me desmaiar? Ah, Deus, o que eu havia feito?! E, mais importante... O que eles haviam feito? Decidi que precisava descobrir mais sobre aquilo para agir, e a única fonte de conhecimento naquele instante estava lá, comigo. Tranquei a porta e olhei para o outro lado do dormitório: o gato preto ainda estava postado em frente à janela, e a chuva parecia cair cada vez mais forte. Não eram cinco horas da manhã quando acordei com os miados de Ébano, mas agora a luz matutina já podia ser distinguida no céu, mesmo com aquela chuva tornando-a cada vez mais difícil de ser vista. Plymouth não era uma grande cidade de Massachusetts mas, em compensação, tinha grandes chuvas. 

Desenrolei mais um pergaminho de dentro da caixinha que estava no mesmo lugar de antes, rente ao buraco deixado pela tábua que a escondia, e tornei a ler aquele pedaço de papel. Dessa vez, as letras miúdas da folha denunciavam os nomes das pessoas afligidas pelos julgamentos de bruxaria em Salém: eram vários os nomes, mas alguns estavam circulados. Entre eles, os nomes de John Proctor e de Elizabeth Proctor destacavam-se ainda mais do que os outros. Decidi puxar outro pedaço de pergaminho assim que terminei de ler todos aqueles nomes e, assim que o desembrulhei, comecei a ler.
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ㅤㅤㅤㅤㅤㅤ"SALÉM, MASSACHUSETTS, 1699, ALGUM TEMPO APÓS OS JULGAMENTOS POR BRUXARIA…“
ㅤㅤㅤFlores rubras desabrochando sob o brilho da lua cheia sempre foram sinais explícitos de que as pretensões das bruxas estavam para vingar. As mulheres divertiam-se a beça naquele ritual. Zisanda e Madinda corriam, seminuas, ao redor do mesmo lago que havia dado fim à vida de meus gêmeos. No meio delas estávamos eu e Florence, uma parente não tão distante de Bridget Bishop. Compartilhávamos um chifre de bode, com o qual bebíamos vinho, ajoelhadas em frente às águas que refletiam maravilhosamente a luz do luar. Nossa cantoria parecia acalentar a alma de Amalie, que não mais chutava minha barriga. As últimas gotas do vinho tinto foram concedidas a mim, e em uma só golada as tomei por completo.
ㅤㅤㅤ — Um, dois, três e quatro — Florence deslizou as mãos até meus ombros, empurrando-me para o chão enquanto Zisanda capturou o cálice de minhas mãos — levante o Diabo à nossa porta.
ㅤㅤㅤO farfalhar das folhas pisadas pelas mulheres parecia dar um toque ainda mais sombrio à cerimônia que prometia estabelecer a prosperidade na linhagem Proctor não somente em Salém, mas em todo o mundo. A alma de Amalie, por sua vez, era a "moeda de troca” para que o ritual fosse concluído com o sucesso merecido. Senti os dedos de Florence — encharcados pelo sangue de um dos pombos abatidos especialmente para o rito — escorregarem de meu queixo até meu umbigo, percorrendo meu corpo seminu e molhando-o com o líquido espesso e avermelhado.
ㅤㅤㅤ — Chame o porco, o lobo, o carneiro. Todos aqueles venham ao círculo — a cantoria começou a ser difundida pelas três, e não hesitei em unir-me ao cântico em conformidade. — Faça-o andar do chão ao telhado. Beba-lhe com chifre e casco. Um, dois, três e quatro.
ㅤㅤㅤErgui um pouco a cabeça após ter o corpo encostado no chão: o pequeno inchaço que encontrava-se em minha barriga não mais fazia-se visível. Me senti zonza por alguns momentos e optei por descansar a cabeça nas gramas, recuperando o fôlego para, mais uma vez, retornar para a cantoria. Porém, um barulho ressoado de não muito longe dali acabou interrompendo a espiritualidade do ritual, que foi findado em seu meio.
ㅤㅤㅤ — Elizabeth! Alguém está aqui! — A surpresa era clara no tom de voz de Zisanda, que em um sopro apagou algumas das velas mais próximas de si.
ㅤㅤㅤ — Precisamos ir — Madinda completou, sem pestanejar. Ela e Zisanda envolveram os braços abaixo de minhas axilas, auxiliando minha recomposição para que pudéssemos fugir daqueles que se aproximavam.
ㅤㅤㅤNão é necessário citar o fracasso do ritual. A prova de que tudo havia sido em vão, entretanto, revelou-se arrasadora: com uma diminuição contínua no número de bruxas de Salém, acabei notando que o sacrifício de Amalie havia acarretado em absolutamente nada. Na madrugada do dia 14 de novembro de 1703, preenchida pelo remorso, corri em direção da mesma floresta que havia acolhido as almas dos gêmeos e de Amalie. Ergui-me em uma altura favorável enquanto enrolei uma corda grossa em um tronco de uma árvore qualquer do bosque de Salém, suspensa pelas altas raízes dela. Assim que finalizei um nó ao redor de meu próprio pescoço com a extremidade inferior da corda, respirei fundo e lancei o corpo para frente, deixando de estar segura sobre as raízes da árvore.

ㅤㅤㅤArregalei os olhos, largando o pergaminho sobre a caixa roxa assim que livre do transe induzido pela leitura. Dessa vez, as vozes em minha cabeça distinguiam-se plenamente: “Salém precisa da terceira filha de Elizabeth. Todas nós precisamos! Mas precisamos de você viva. Fuja! Fuja!”. Alguns lampejos de acontecimentos de anos atrás surgiam em disparada na minha mente. Morte, desilusão, amor, ódio, rancor, piedade, sacrifícios. Principalmente sacrifícios, como os de John e de sua esposa enforcada.

Enfim, pude compreender tudo: embora levasse Lowhert no nome, o fato de ser descendente dos Proctor havia sido trazido à tona. Agora… qual havia sido o método utilizado para tornar-me o receptáculo daquele bebê do século XVII? A identidade duvidosa de meus pais, que há muito me abandonaram na porta da Igreja, agora ficava ainda mais misteriosa na minha mente. Certamente eles tinham alguma relação com tudo aquilo... Não era possível. Meus devaneios poderiam levar-me a várias outras suposições, isso caso eles não fossem interrompidos repentinamente pela voz daquela que mantinha tantas dúvidas em minha cabeça:
ㅤㅤㅤ — Querida, acorde! Gerald e eu iremos iniciar a missa. Precisamos de você. Acorde!
ㅤㅤㅤA única coisa que consegui fazer foi dizer um “tudo bem” no mesmo tom que Sarah havia falado. Só que não estava tudo bem. Na verdade, estava tudo mal. Mas aquele era exatamente o momento que eu estava procurando. Encostada na porta do quarto, esperei ouvir os passos de minha mãe — ou, pelo menos, da mulher que me criou — finalmente descerem as escadas. Corri em disparada até a bifurcação que iniciava-se assim que a escada terminava: uma das ramificações levava à porta dos fundos da Igreja, e outra ao local onde Gerald e Sarah com toda certeza estariam, o centro da catedral. Me deparei com um armarinho rente à saída daquele antro de malucos, e abri todas as gavetas numa pressa crescente que parecia ser a única motivadora de meu equilíbrio.

Encontrei, por fim, meu objeto de desejo: algumas notas de cem dólares, dinheiro que o padre reservava para as despesas. Apiedada ao lembrar-me dos outros adolescentes da catedral, acabei levando comigo um terço do dinheiro que lá estava. Então, lembrei-me de uma coisa: eu havia esquecido de meu celular! Voltei correndo ao meu quarto, passando por várias portas abertas e aposentos vazios — sinal de que os outros órfãos já estavam na missa — e, assim que cheguei ao meu cômodo, liguei para um táxi através de meu telefone, suando frio. Enfiei poucas roupas em minha mochila, já que nela não cabia extravagância, e disparei pela escadaria, capturando Ébano em meio ao trajeto. Claro que eu não poderia esquecer da caixinha curiosa em meu quarto, e por isso me assegurei de levá-la comigo na mesma bolsa que recentemente havia pego.

Disparei em direção à rua das Amendoeiras, não muito depois da rua do "Centro da Salvação", ignorando o gotejo do chuvisco remanescente enquanto firmava o bichano em meus braços. É impossível descrever a emoção que senti ao ouvir, após curta espera, a buzina do táxi em frente à casa de um dos contribuintes da Igreja. Ali era o local exato em que eu havia planejado o tão esperado encontro com o motorista desconhecido.
ㅤㅤㅤUm biscoito para gatinhos foi tudo que precisei para acalmar Ébano. O taxista me olhava, com o olhar completamente curioso à vista de uma mocinha descabelada, arfante e molhada pelos últimos pingos de chuva. Pulei para dentro do automóvel com meu gato e deixei escapar um pequeno pedaço de papel da mochila assim que fechei uma das portas do táxi, tudo isso no passo em que o taxista se preparava para iniciar a corrida.
ㅤㅤㅤ — Para onde, mocinha?
ㅤㅤㅤMe peguei sem resposta por alguns segundos. Olhei para Ébano, que devorava o resto do biscoito, e depois olhei para a janela. A chuva já havia parado, dando espaço para o sol: por conta disso, um arco-íris instalara-se nos céus de Plymouth, engrandecendo a visão de qualquer um que ousasse olhar para cima. Nervosa para dar uma resposta rápida ao taxista, me vi capturando o papelzinho jogado no banco traseiro do táxi. Um sorriso fez-se visível em meus lábios, e mostrei o monte de notas de cem para o taxista antes de respondê-lo:
ㅤㅤㅤ — Leve-me para Salém.


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