Você Do Passado - Hiatus escrita por Eu-Pamy


Capítulo 2
Abra os olhos, Gil.


Notas iniciais do capítulo

Olá você aí do outro lado, tudo bem?
Essa história demora alguns capítulos para ganhar ritmo, mas quando ganha não para mais.
Para quem leu a sinopse, sabe que o Gil está passando por um momento muito complicado e isso acaba afetando muito a Alice. No caso, a narração deste capítulo é feita sem qualquer tipo de humor, porque está refletindo a personagem.

Mas as coisas vão melhorar. Se você está se sentindo para baixo, pode se identificar nessa leitura, mas a tristeza aqui não é a intenção, essa é uma história que mostra que tudo tem uma saída.

Se você se sente triste e sozinho, procure ajuda. A vida vale à pena.

Boa leitura, nos vemos lá embaixo.



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Capítulo 2 – Abra os olhos, Gil.

Essa não era a casa de Alice. O fato era que ela nem ao menos residia naquele bairro, sua casa estando há mais de vinte minutos de ônibus. Ainda assim, possuía uma cópia da chave da entrada, a qual havia mandado fazer por conta própria dois anos atrás, depois de vivenciar um terrível evento em uma noite por não ter chave para entrar.  

Depois daquela noite toda vez que voltava a abrir essa porta sentia algo estranho dentro de si, uma angústia que surgia em seu peito estivesse ou não prestando atenção.

E foram incontáveis as vezes que isso aconteceu. Mesmo que seu dia tivesse sido bom, mesmo se seu humor estivesse divertido e leve, de repente, quando enfiasse a chave no trinco e girasse para destrancá-lo, a horrorosa sensação voltaria e sua expressão estremeceria de antecipação.  

O medo às vezes a congelava de tal forma que Alice não conseguia mais entrar, sem conseguir ter controle dos próprios músculos, apenas, encarando a porta, encarando a porta... Esperando juntar qualquer coragem para livrá-la daquele mau súbito.

Mesmo o cansaço deste dia não impediu Alice de hesitar com a mão na maçaneta.

Alguns segundos se passaram.   

Na outra mão, havia a garrafa de água pela metade e os saltos pendiam pelas alças enroladas nos dedos. Pulseiras de metal no pulso, pés contra o piso gelado... Uma das bolsas escorregava pelos seus ombros, assim como uma gota de suor escorregava pelo rosto bonito.

O corredor estava vazio e silencioso.

Com a fisionomia carregada de seriedade, Alice juntou fôlego e forçou-se a adentrar o cômodo escuro, finalmente.

Não se permitiu pensar em nada. Sua mente poderia não ser totalmente confiável naquele momento.   

Caminhou até o interruptor e acendeu a luz. A lâmpada estava fraca, oscilou três vezes dando sinais de que iria queimar, antes de estabilizar sua luz artificial pelo cômodo. Tentaria lembrar disso em sua próxima visita ao supermercado.  

Alice estava na sala-de-estar, sozinha.  

O apartamento de Gil não era grande, com apenas cinco cômodos, dois quartos, um banheiro, sala e cozinha. Nada extraordinário, mas era um ambiente confortável, com cômodos largos, paredes altas e uma estrutura acolhedora.

Ela caminhou até a janela lateral. 

Em razão do condomínio ser uma estrutura construída em uma rua elevada, quase um morro, a cidade parecia se estender abaixo deles, dando uma vista incrível.

Alice suspirou ao dar de cara com as cortinas fechadas, outra vez. O ar do cômodo estava denso por causa daquilo.

No momento que abriu a janela o vento tocou seu rosto do jeito que ela gostava, num carinho delicado.  

Porém, ela não passou muito tempo aproveitando essa sensação ou admirando à vista – milhões de pontos de luz tomando toda a paisagem como um enxame de vaga-lumes, o maior e mais brilhante enxame de vaga-lumes que jamais existiu.

Ao invés disso, caminhou até o sofá e nele deixou seus pertences.

Seus ombros agradeceram a liberdade do peso das bolsas e logo Alice se espreguiçava, esticando a coluna até ouvir alguns estralos. Necessitaria mais que isso para relaxar, mas já era um começo.  

Se dirigiu até o banheiro no corredor.

 O cômodo azulejado parecia da mesma forma que havia deixado, como se naquele tempo todo tivesse ficado intocado.

Percebendo que um pouco de terra havia entrado pelo vitro aberto da janelinha dentro do box, esticou o braço e fechou-a. Estava ventando muito lá fora e talvez mais tarde chovesse.

Lavou suas mãos e seu rosto. Àquela altura sobrava pouquíssima maquiagem em sua pele e o restante ela limpou com um dos panos umedecidos que havia deixado dentro do pequeno armário do banheiro.

Olhava-se no espelho enquanto limpava o rosto, vendo-se com olheiras profundas e, ainda, notando que sua pele que sempre foi tão bonita agora possuía rugas de cansaço e que, mesmo amarrado, seu cabelo mostrava-se opaco e quebradiço nas laterais. 

Quando saiu do banheiro voltou para a sala, depois pegou uma de suas bolsas e a levou para a cozinha, que ficava ao lado.

Deixou sua bolsa na bancada de mármore, dentro desta havia o resultado de uma rápida passada ao supermercado durante seu horário de almoço. Tinha comprado coisas fáceis de se fazer e outras importantes que sabia que estavam faltando.

Levou tudo para a geladeira e armários, e aproveitou para olhar a validade de algumas coisas que pareciam abandonas há muito tempo naquelas prateleiras.

Em um pequeno armário, procurou por uma panela.

Já eram oito e meia da noite agora, segundo o relógio na parede da cozinha.

Ele está um dia inteiro sem comer...

Alice lançou um olhar preocupado em direção a entrada do corredor. No final deste ficava o quarto do dono do apartamento, Gil, seu amigo de infância. Ignorou essa sensação e se apressou a escolher uma panela.

Começou a cozinhar, cortou legumes, preparou o arroz, um caldo, a salada e mais algumas coisas simples, mas deliciosas. O cheiro dos sabores cozinhando a fazia relaxar, assim como o barulho de comida fervendo e talheres batendo contra porcelana, enquanto picava alguns temperos.

Demorou quase meia hora, Alice orgulhava-se de saber cozinhar bastante comida em pouco tempo. Poderiam ser apenas duas pessoas, mas havia feito comida para mais de três dias para um homem adulto comer sozinho, e também, daquela comida sairia a marmita que ela levaria ao trabalho na manhã seguinte, afinal, estava cansada e queria aproveitar o máximo de tempo para descansar quando chegasse em sua casa.

Foi até os armários e procurou por pratos, normalmente usava sempre os mesmos que ficavam sempre no mesmo lugar.

Aquela parecia uma cena gravada que ficava se repetindo a cada vez que estivesse ali, eternamente.

Colocou pratos, talheres e copos sobre a mesa, depois serviu-os com um pouco de tudo que havia preparado, o caldo de ervilhas, o arroz, o feijão tropeiro que descongelou e temperou e agora fervia com um ótimo cheiro, e bastante legumes. A salada de alface e tomate ficou no centro da mesa em uma bandeja redonda, a disposição de quem quisesse comer.

Gil gostava de saladas, Alice bem sabia, mas atualmente eram raras às vezes que ele se permitia comer qualquer coisa que gostasse.

Alice preparou o suco no liquidificador, colocou água gelada, açúcar e dois maracujás. Quando ficou pronto, coou e serviu na jarra. Colocou sobre a mesa ao lado dos copos.

Estava tudo pronto, percebeu, vendo a comida que lentamente começava a esfriar.  

Seu olhar seguiu para a entrada do corredor, aquela mesma sensação no peito de anteriormente: preocupação, ansiedade e medo, tudo misturado. Só que desta vez, Alice não ignorou e ao contrário de antes, caminhou para o corredor, percorrendo-o inteiro, até a última porta, onde Gil estava.

A lâmpada do corredor estava apagada, mas a luz da sala iluminava-o parcialmente.

Alice olhou para a porta sem expressão, levou o punho até ela e bateu algumas vezes.

— Vou entrar — alertou pouco antes de realmente fazê-lo.

O quarto estava escuro, mas diferente dos outros cômodos, a escuridão deste estava carregada com energia negativa, que tornava o ar mais difícil de respirar. Mas o costume fez com que Alice se adaptasse a melancolia que navegava como ondas magnéticas no ambiente e carregava o silêncio com um profundo sentimento de vazio, e não se importasse mais.

Entrou completamente no cômodo, não ascendeu a luz, Gil não gostava quando ela fazia isso e Alice estava cansada para discussões.

Deu-se por satisfeita em simplesmente afastar as cortinas da janela, permitindo certa claridade entrar.

A janela de Gil, diferentes dos outros cômodos, tinham vista para a garagem, que era a pior vista de todo o apartamento.

Aquele era o pior cômodo para se fazer um quarto, pequeno e abafado, e possivelmente por isso Gil o escolheu.

Contendo-se para não suspirar, Alice manteve a expressão serena, a medida do possível. Depois se virou e olhou para a cama de casal há um metro de distância de onde estava.

 Apesar do vento lá fora e da promessa de chuva trazer umidade ao ar, a noite estava muito quente e, assim mesmo, o rapaz mantinha um grosso edredom sobre seu corpo.

— A comida está pronta — Alice o avisou.

Aproximou-se dois passos só para confirmar que Gil não estava olhando-a.

— Mesmo que você não coma, vai me fazer companhia. E vou avisando, eu tive um dia ruim — seu tom era firme, mas não rude.   

Por mais que não visse seu rosto nitidamente, Alice sabia que Gil estava acordado por causa do ritmo de sua respiração.  

Demorou dois segundos para ela sair do quarto, não bateu a porta e nem a fechou completamente.

Foi para a cozinha e se sentou à mesa, no seu lugar habitual, esperando.

Foram necessários longos e arrastados minutos, dez ao todo. Alice já estava perdendo as esperanças de comer qualquer coisa quente àquela altura, quando Gil finalmente apareceu arrastando seus pés para dentro de sua cozinha.

Ele parecia exausto e sua imagem não era nada agradável, trajando uma roupa amassada e suja.

Por mais que o coração doesse, ela se manteve impassível, e apenas começou a comer quando Gil se sentou em sua cadeira usual, sem fitá-la nenhum instante.

A mesa era pequena e redonda, de vidro com cadeiras de ferro nada confortáveis para alguém que ficou a tarde inteira sentada no trabalho, como ela, mas quando começou a comer se sentiu bem.

Gil não falava nada e demorou a começar a comer, mas nem isso incomodou Alice.

Contanto que ele coma alguma coisa...

Ela comeu a salada praticamente sozinha. E repetiu mais uma vez, colocando mais legumes e arroz, enquanto Gil fazia daquilo uma tortura lenta, engolindo tudo com grandes dificuldades e esforços.

Alice sabia que o respeito e amor que o rapaz sentia por ela eram as únicas razões para ele tentar, não só comer, mas também tentar sobreviver. Ele não poderia tentar viver por causa dela, não, Alice não era suficiente para isso, mas ao menos, ela era capaz de mantê-lo respirando.

Era inacreditável pensar que eles tinham chegado a este ponto.

A jovem lembrava-se da primeira vez que os dois jantaram naquele apartamento... Fazia tanto tempo agora, quase uma vida atrás, no entanto, se lembrava de todos os detalhes, mesmo que não conseguisse mais reconhecer aquelas duas pessoas de suas memórias.

A primeira vez que entrou pela porta daquele apartamento também nunca se esqueceria.

Foi em outro mundo aquilo, todo aquele dia mágico e cheio de sonhos ao lado de Gil, com sorrisos e promessas para o futuro, não, aquilo nunca aconteceria de novo com ela. Eram só lembranças.    

Aquele garoto e aquela garota não existem mais nesse mundo, nem podem voltar a existir algum dia, eles foram engolidos pela vida e apagados pelo tempo, hoje são só sombras, fantasmas sem rostos que não vale à pena relembrar porque dói demais.

Os anos se passaram e a vida veio e aconteceu, destruiu todos os sonhos daquelas crianças, levou a fé, a coragem e só deixou o pó.

E de fato, era somente isso que Alice via quando se olhava no espelho: poeira, restos de alguém que aos pouco ela esquecia.

Vivia sozinha em uma casa sem cor, literalmente sem cor, sobre a promessa de uma reforma que nunca começava. Tinha 32 anos e nunca havia se casado, porque essa também foi mais uma promessa que acabou deixando para trás.

Quando a vida acontece e te encontra, você percebe, ninguém é capaz de sair inteiro disso. É como um furacão que arrasa tudo.

Alice estaria sozinha, no fim. Dormiria sozinha e acordaria para um amanhecer que não poderia ser compartilhado. Ela trabalharia pelos outros e gastaria seu dinheiro com os outros e, mesmo com todo seu esforço para ser aceita, ainda se sentiria mal.

Porque quando se olhava no espelho não se reconhecia. Aquela não poderia ser ela.

Não fazia sentido, aquela mulher que a encarava e dizia ser seu reflexo estava quebrada, rasgada e sendo esmagada, era tudo, menos Alice.

Mas ela não era a única quebrada ali.

Gil...

Alice terminou seu jantar, recolheu seu prato, os talheres que havia usado e terminou de beber o suco, depois levou para a pia e começou a lavar, em silêncio.

Quando ela estava quase terminando de lavar, Gil se aproximou da pia com o prato com a refeição pela metade.

— Eu faço — ele disse sem expressão, nada na voz além de cansaço.

Essa era como uma cena fadada a se repetir todas as vezes. Alice seguiu seu papel:

Agiu como se não tivesse escutado, pegou os objetos da mão do rapaz e começou a lavar. O resto da comida no prato foi para a lixeira.

— Tome um banho — disse. Com o canto dos olhos lançou um olhar rápido ao amigo — Por favor — completou, os seus grandes olhos jabuticabas repletos de emoção contida, brilhando como a lua lá fora no céu da cidade.

Gil estava um caco, sua aparência era a de um completo estranho. A barba comprida e negra escondia seu rosto. Os olhos eram amargos, os lábios frios e rachados, a pele malcuidada e aquelas roupas...

Quem era aquele homem?

Gil olhou para Alice de uma maneira estranha e por um momento ela pensou que ele pudesse sorrir e fazer uma piada, mas não, não esse homem, não esse estranho.

Assentindo para a ordem que recebeu, ele caminhou para fora da cozinha.

Alice ficou aliviada quando reconheceu o som da porta do banheiro abrindo e depois fechando.

Respirou fundo.   

Este homem de olhos tão frios... O que aconteceu com você?

Os próprios olhos de Alice estavam quentes pelas lágrimas que vieram e logo saltavam, escorrendo pelo rosto claro, caindo fortes e em muitas.

Aquele homem que nunca sorria, que nunca tinha qualquer reação e desejo...  

Gil...

As lágrimas continuaram, Alice inclinou o rosto, as mãos cheias de espumas apoiadas na pia, e logo sentiu os pés sendo molhados pelas lágrimas salgadas. Abriu-os levemente, encarando os pés descalços com tristeza.

Há alguns dias, ela havia esquecido a sapatilha que sempre usava para pegar ônibus e metrô, aqui na casa de Gil, e desde então teve que usar os terríveis saltos no trajeto — não tinha paciência para entrar em uma loja para comprar uma nova sapatilha, até porque aquela era insubstituível.

Alice fechou a torneira esquecida aberta há pouco, depois olhou para onde tinha estado sentada anteriormente. Foi até lá e ajoelhou-se no chão, esticando o braço até alcançar com sua mão suja de espuma, um objeto esquecido embaixo do armário da parede. Ali estava a sua querida sapatilha branca.

O objeto era quase como sua companheira. Alice a tinha há muitos anos, estava velha e larga, mas jamais a trocaria por nada.

Seus dedos afundaram-se no material da sapatilha, com remorso.   

No mesmo momento, vindo do corredor, ela escutou o barulho do chuveiro sendo ligado.

Mais lágrimas escaparam dos seus olhos, desta vez seguidas de alguns soluços. O corpo da menina largado no chão gelado, assustada e perdida.

Ela se encolheu e desejou voltar ao passado, onde era seguro. 

O que aconteceu com nós?

Olhou mais uma vez os calçados que Gil havia lhe dado de presente no seu primeiro dia de trabalho na universidade, três anos atrás.

Naquele dia, quando voltou para casa, ele a pediu em casamento com uma festa surpresa, suas famílias e amigos reunidos num dos momentos mais felizes de suas vidas. Os dois haviam dançado juntos, rido, bebido, feito promessas que não poderiam cumprir e no fim, ele disse que a amava.   

Sem se dar conta, o choro cessou.

Aquilo havia acontecido em outra vida. Nada mais daquelas pessoas existia. São somente sombras que deveriam ser apagadas do seu coração.  

Tantas coisas haviam acontecido, Alice não era forte suficiente para consertar tudo, sabia disso, mas não podia parar de tentar.

Os últimos anos foram horríveis.  

Se levantou, calçou as sapatilhas e voltou a lavar a louça.

Mas ao menos eles estavam conseguindo sobreviver.

A única pergunta que ainda importava era: até quando isso será suficiente?


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Notas finais do capítulo

Oi de novo! O que vocês acharam? Eu ainda não tenho comentários, que tal alguém me dizer um oi?
Eu fico feliz até com acompanhamentos. Só de saber que tem alguém lendo já é o bastante.

Eu posto toda semana, mas não tenho dia certo. Estou escrevendo outras histórias também, visitem o meu perfil, se quiserem.

Podem me mandar mensagens também, eu amo conversar e sou animada. Responderei a todos com educação, prometo.



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