Desabafos escrita por Yurie


Capítulo 24
Something bad




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[https://www.youtube.com/watch?v=ScNNfyq3d_w]

...

Sei que é um começo extremamente clichê - ainda mais se tratando de mim—, mas eu não sei muito bem o que vim escrever aqui hoje. 

Eu deixei isso um pouco abandonado, eu sei - quase largado às moscas, se formos ser honestos -, e eu não gosto disso nem um pouco. Mas não poderia ser de outro jeito. 

Estou ficando cansado, sabe? 

De tudo. Da rotina, da escola, das provas, do mundo, de mim. 

É tudo sempre tão a mesma coisa... Acorda. Põe aquele uniforme de bosta. Vai para aquelas aulas chatas, com as mesmas pessoas, sobre as mesmas coisas. Volta para casa, almoça, estuda feito um condenado, toma um banho que deveria relaxar, mas não relaxa. Assiste dois episódios de uma série qualquer, um vídeo idiota do YouTube, e vai para a cama. 

Minha vida virou algo tão monótono que me dá ódio. 

Canso só de pensar em levantar. Canso só de pensar em ter que me arrastar para mais um dia, mais 86 400 segundos apenas existindo, sem nenhum propósito, nenhum grande acontecimento. 

Eu tenho quase certeza de que vou rodar legal na Fuvest. E na prova de Matemática. Rodei na de Física, com certeza, e talvez na de Biologia. Não quero nem ver a nota de Filosofia, e me fodi legal em Química. 

E a cada dia que passa, mais me volta a sensação de que não sou nada além de um fardo; um peso morto que as pessoas carregam por aí por pura pena. 

Eu só queria voltar para quando eu sabia sorrir. 

Pintei meu cabelo de azul nessas férias, sabe? Finalmente... Fiz uma tatuagem, também, e coloquei um alargador. Aí quando vou sair coloco uma roupa legal, crio coragem e me olho no espelho e... Uau. Realmente, sou eu ali. Naquela imagem, aquilo é o Yurie de verdade, a pessoa que eu queria ser - esteticamente falando, é claro, mas ele parece muito legal. 

Mas aí eu volto para a escola e me torno o ser esquisito com o cabelo azul. Me sobressaio no espelho do banheiro feminino, todo o mundo me nota passar. É estranho escrever e meu braço não ser totalmente liso: tem um desenho em aquarela lá, agora. 

E tudo o que me vem à cabeça é: "eu sou estranho". 

Cara, por que eu tinha que ser tão estranho? Tão confuso? Sem amigos, sem auto-estima, sem nenhum motivo para seguir em frente e continuar vivendo. 

Por que eu tinha que ser o Yurie? 

Posso voltar? À época em que tudo era mais fácil, em que eu conseguia passar de ano, em que vestibular era uma prova distante, em que eu tinha amigos... 

Posso voltar a ser a Nathy? 

Eu me derramo sobre isso tantas vezes... Falo sobre isso comigo mesmo, contra o travesseiro. Grito isso na minha mente durante o banho e me xingo enquanto escovo os dentes. Me odeio intrínseca e ferrenhamente, cada dia um pouquinho mais. 

Mas eu acho que nunca falei sobre isso com ninguém. 

E eu tenho vontade de fazer uma coisa... Ruim, sabe? 

Às vezes, é o primeiro pensamento que me ocorre de manhã. O segundo são todos os motivos pelos quais eu não deveria. Outro dia, me esqueci quais eram. 

Mas aí eu lembrei que era porque eu não podia magoar a mamãe e o papai. 

Porque eu sei que eles iriam descobrir. E eles iam se machucar. E eu não posso deixar eles se machucarem comigo assim; já sou uma decepção grande o suficiente com as coisas estando como estão. 

Mas eu quero. Todo dia, entro no banheiro, encaro a gilete, e eu quero. Inegavelmente, indubitavelmente, eu quero desesperadamente sentir a lâmina sobre a pele pálida do pulso. Sentir dor. Sentir o frio do metal, o fio rompendo as células frágeis da derme, rompendo os vasos sanguíneos... 

Viciosamente, eu faria isso dia após dia, até que fosse o fim, talvez. 

Mas não aqui. Não com mamãe e papai por perto. Não quando alguém pode descobrir. 

Deixa isso para depois. Quando eu morar sozinho, ou com alguém que não (se) importe tanto. Então, eu me destruirei em paz, e ninguém precisará saber. 

Como posso ser tão egoísta, você talvez se pergunte. Como posso realmente pensar em deixar minha família para trás tão simplesmente, e me afogar tão depressa, fácil e normalmente em tudo isso? 

Mas então eu lhe respondo: como posso continuar sendo tão egoísta, impondo isso— essa criatura estranha, chata e bizarra que insiste em se chamar de Yurie, como se isso importasse alguma coisa - para o mundo? 

Como posso continuar a fazer as pessoas me suportarem, se nem eu me suporto mais? 

E eu deveria estar dormindo, porque amanhã eu tenho prova de Matemática, mas estou aqui. 

Porque eu não consigo tirar isso da cabeça. E quanto mais eu tento tirar, mais fixo se torna. E quanto mais fixo, mais atraente. 

E talvez um dia eu realmente o faça. 

E então, bem, que importa? 

Mas até lá, não. Até lá, podem ficar tranquilos. 

Sou covarde demais para deixar de ser egoísta. 


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